Resumo: O presente artigo busca promover a discussão acerca do uso medicinal da maconha e a atual proibição dessa erva dentro do país, para que sejam, assim, demonstrados os benefícios que a sua utilização e estudo trariam para toda a população brasileira. Desse modo, tendo em vista que a saúde é um direito fundamental previsto na Constituição, é imprescindível que a sociedade conheça sobre os avanços da medicina e o quanto a utilização de remédios provenientes da Cannabis podem auxiliar nos tratamentos, desconstruindo a impressão de que as drogas fazem parte apenas do cenário do tráfico mundial de drogas.
Palavras-chave: Maconha medicinal; Direito fundamental à saúde; Mercado de medicamentos.
Abstract: This article will promote the discussion about the medical use of marijuana and the current prohibition of this herb in the country, to demonstrate the benefits that its use and study would bring to the entire Brazilian population. Thus, given that health is a fundamental right provided for in the Constitution, it is imperative that society knows about the advances of medicine and how the use of medicines from Cannabis can help in the treatments, deconstructing the impression that drugs are only part of the global drug trade scenario.
Keywords: Medical marijuana; Fundamental right to health; Drug market.
Sumário: Introdução. 1 Atual contexto social das drogas e a Lei de Drogas nº 11.343 de 2006. 2 O tráfico de drogas e a sua economia clandestina. 3 O uso medicinal da maconha. 3.1 O uso medicinal da maconha no estrangeiro. 3.2 Direito fundamental à saúde. 3.3 A burocracia no Brasil. 3.4 Mercado de medicamentos e seus aspectos econômicos. Considerações finais.
INTRODUÇÃO
A maconha, cientificamente chamada de Cannabis sativa, é considerada uma erva milenar existente nas mais diversas sociedades. Seu uso encontra-se atrelado aos rituais religiosos, ao uso recreativo bem como ao uso medicinal.
Diante disso, será analisado em um primeiro momento o atual contexto social que envolve as drogas e a última Lei de Drogas decretada em 2006. E ainda, neste contexto, será abordado o tráfico de drogas internacional e seus desdobramentos básicos, principalmente no que tange a economia bilionária e clandestina envolvida, adentrando, especificamente, no assunto do uso medicinal da maconha.
Assim, para uma melhor compreensão dessa temática, será analisado o seu uso no estrangeiro e, posteriormente, toda a burocracia que ocorre no Brasil. Desta forma, para fundamentar a aplicação, faz-se necessário explaná-la como um direito fundamental à saúde e os benefícios que o mercado de medicamentos dessa planta proporcionaria.
O presente estudo envolve uma relevância social muito significativa para a sociedade brasileira como um todo. Pois cabe a análise de que a proibição legal da Cannabis exerce uma forma de restrição ao alcance das contribuições que o desenvolvimento do estudo dessa planta poderia trazer para a saúde pública.
Nesse sentido, pode-se contribuir bastante para resolver problemas da sociedade, problemas estes ligados a sintomas e doenças que podem ser controlados e tratados por intermédio ou auxílio do uso medicinal da maconha.
Para finalizar, é pertinente mencionar que no Brasil o tema esbarra na proibição legal e vários são os componentes da maconha que ainda não possuem seus efeitos estudados em decorrência a isso. Portanto, diante dessa problemática e enorme burocracia no que se refere ao acesso a esses tratamentos, cabe à reflexão: até que ponto esse proibicionismo da Cannabis no país impede a efetivação do direito fundamental à saúde do cidadão?
Com o objetivo de alcançar o escopo principal desse artigo, utilizar-se-á o método fenomenológico, haja vista que se trata de uma problemática que busca o seu resultado na reflexão do próprio caráter que originou esse fenômeno. Assim, acerca desse método, os autores Orides Mezzaroba e Cláudia Servilha Monteiro afirmam (2005, p. 98):
“A fenomenologia se apresenta como uma forma rigorosa e descritiva de tratar das ideias, uma atitude cognitiva que busca incansavelmente as essências primeiras em seus objetivos: os fenômenos”.
Desse modo, para o presente estudo, é indispensável fazer uma abordagem teórica de especialistas e seus respectivos entendimentos em face ao tema trabalhado. Evidencia-se, assim, que serão utilizados grandes estudiosos da temática, como Eugenio Raúl Zaffaroni, Alessandro Baratta e, o pioneiro no estudo da maconha medicinal no Brasil, Elisaldo Carlini.
1 ATUAL CONTEXTO SOCIAL DAS DROGAS E A LEI DE DROGAS Nº 11.343 DE 2006
As drogas constituem, de certo modo, um ingrediente antropológico de qualquer civilização humana, haja vista que toda sociedade conviveu intimamente ou não com algum tipo de substância alteradora do estado de consciência por diversos pretextos, podendo ser por razões alimentícias ou mesmo por razões religiosas.
Entre essas substâncias alteradoras do estado de consciência encontra-se a maconha, sendo a sua relação com a humanidade intrínseca. Isso significa dizer que desde os tempos primórdios elas convivem juntas. Acredita-se que a agricultura da Cannabis date a mesma época que os humanos aprenderam e passaram a dominar a técnica da agricultura. Utilizada para diversos fins distintos, destacou-se primeiro na confecção de papel e tecidos feitos da sua fibra, como também, para fins medicinais.
O primeiro registro do contato entre os humanos e a Cannabis data aproximadamente 6.000 anos atrás, sendo ela original da região ao norte do Afeganistão, nos pés do Himalaia, onde se tornou a primeira planta cultivada pelo homem com usos não alimentícios. Esta espalhou-se por toda a Ásia e depois Europa e África. No Brasil, a planta chegou por volta do século XVI, época em que foi trazida pelos negros escravos oriundos da África, sendo o nome “maconha” do idioma típico dessa região de origem.
Durante séculos, a droga foi tolerada no país e muito utilizada em rituais de candomblé. Porém, em 1830 ocorreu a primeira lei restringindo a planta no Brasil. Os primeiros documentos que relatam essa proibição da Cannabis no Brasil são das Câmaras Municipais do Rio de Janeiro, cujos documentos tornaram ilegais tanto o uso quanto a venda da droga na cidade, estabelecendo penalidades para os contraventores. Vale a ressalva de que a primeira forma de lei proibicionista era mais rigorosa com o usuário do que com o traficante, e isso se devia ao fato de que o vendedor vinha da classe média branca e o usuário, normalmente, negro e escravo.
Até a década de 1930, a proibição não tinha causado grande repercussão. Contudo, com o processo de urbanização nesse século bem como com a aproximação do Brasil com os pensamentos predominantes nos Estados Unidos, a maconha passou a ser enxergada perante a sociedade como um problema. Diante disso, o Estado se viu obrigado a controlar e promover campanhas para a erradicação do seu consumo e do seu cultivo.
Nesse cenário ao qual o Estado encontrava-se, o controle realizado por intermédio do sistema penal apresentou-se como a alternativa mais eficaz para garantir a repressão no que tange as drogas. Assim, a primeira Lei de Drogas nº 6.368 de 1976 expunha como seu escopo principal medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que provoquem dependência psíquica ou física nos usuários, bem como outras providências e sanções.
Deste modo, essa lei tinha como objetivo a incriminação do uso de drogas, como previsto no seu artigo 16 que dispõe:
“Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa.”
Entretanto, com o advento da nova Lei de Drogas, a Lei nº 11.343 de 2006, o tratamento referente ao uso de drogas foi modificado com o intuito de permitir e proporcionar a prevenção e reinserção social do usuário / dependente, não havendo, assim, mais a previsão de pena de reclusão ou detenção, como disposto no artigo 28 da presente lei:
“Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;”
Apesar da amenização quanto a aplicação da Lei de Drogas, cabe levantar uma discussão referente ao objetivo que essa forma de atenuar teve quando proposta pelo legislador, haja vista que beneficia apenas aos usuários de drogas, mantendo a repressão total quanto ao tráfico das mesmas.
Essa realidade traz à baila um aspecto muito importante, mencionado anteriormente, que diz respeito a quem eram os usuários e traficantes nas décadas passadas, quando o negro e escravo que eram os usuários e a classe média que possuía o domínio das vendas; atualmente, o quadro se inverte e as classes média e alta apresentam-se como as maiores consumidoras de drogas e a classe menos favorecida como a detentora do tráfico de drogas.
Essa nova relação de consumidor do mercado de drogas permite afirmar que o proibicionismo, hoje existente, em torno das drogas configura-se como uma manobra política para reafirmar a sociedade estratificada e cada vez mais capitalista, encaixando a esfera criminal como a detentora da responsabilidade por essa subdivisão da nossa sociedade.
Assim, no que diz respeito a esse fenômeno, existe uma ciência específica que vai tratar exatamente acerca dessa temática do controle social, ciência esta que oferece grande utilidade para o direito penal e para a política penal de qualquer país que queira atuar racionalmente sobre esse aspecto.
Essa ciência é denominada criminologia, e por ela entende-se que “Criminologia é a disciplina que estuda a questão criminal do ponto de vista biopsicossocial, ou seja, integra-se com as ciências da conduta aplicadas às condutas criminais.” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2001, p. 157).
Dessa forma, essa vertente levanta outras questões que correspondem a outras ciências também, que são a biologia, psicologia e a sociologia, todas elas voltadas para a área criminal e que se vinculam, necessariamente, à filosofia, à história e à política do governo vigente.
Pode-se inferir que todas as políticas criminais adotadas dentro de uma determinada sociedade abrangem e reafirmam todo um contexto social que lhe for de melhor proveito. E justamente acerca desse assunto, o autor Alessandro Baratta (1999; p. 198-199) traz a seguinte reflexão:
“[…] o sistema das imunidades e da criminalização seletiva incide em medida correspondente sobre o estado das relações de poder entre as classes, de modo a oferecer um salvo-conduto mais ou menos amplo para as práticas ilegais dos grupos dominantes, no ataque aos interesses e aos direitos das classes subalternas, ou de nações mais fracas.”
Assim sendo, no âmbito das drogas, percebe-se que as medidas preventivas da atual sociedade inverteram suas diretrizes, no qual basta analisar quem são os alvos dessas medidas bem como quem mais sofre com sistema penal brasileiro, qual seja: as classes mais desfavorecidas.
2 O TRÁFICO DE DROGAS E A SUA ECONOMIA CLANDESTINA
Nos dias que correm, pode-se dizer que existem duas vertentes para o tráfico de drogas. O tráfico de drogas no âmbito das favelas e seus arredores e o tráfico de drogas internacional. Este último é responsável pelo segundo maior item de circulação de dinheiro no mundo todo, caracterizando-se como uma verdadeira economia clandestina, dificultando, assim, a possível legalização das drogas em esfera mundial.
O tráfico internacional de drogas teve seu boom durante os anos 80, e conseguiu atingir, atualmente, uma movimentação que chega, aproximadamente, a US$ 500 bilhões, perdendo apenas para o tráfico de armamento[1].
Esse dado serve para ter uma ideia a respeito da pressão que esse narcotráfico desempenha em cima das economias dos países, principalmente daqueles países mais atrasados. E isso ocorreu devido ao grande salto do consumo nos EUA e na Europa somado com a queda dos preços das matérias-primas, tornando os países monoprodutores em países narcoprodutores. Como por exemplo, na América Latina, Colômbia, Peru e Bolívia.
Consequência disso foi a forte dependência desses países narcoprodutores em relação ao tráfico internacional de drogas, uma vez que a economia dos mesmos passou a pertencer, na sua maior parte, ao setor informal.
Além disso, como o narcotráfico destacou-se por ser um negócio de grande circulação de montante, há um grande envolvimento dos bancos. Estes realizam a “lavagem do dinheiro” no sistema financeiro, no qual legalizam essa verba suja através da conversão da mesma em ativos, empresas ou imóveis, e para isso que criaram os famosos “paraísos fiscais”.
Diante desse contexto, o historiador, professor e autor Osvaldo Coggiola traz a seguinte reflexão:
“Estamos, portanto, diante de uma vasta operação política que visa, sob pretexto de repressão ao tráfico de drogas, acabar com a independência nacional dos países atrasados e reforçar a direitização do Estado capitalista nos EUA. Incapaz de cortar a "oferta", o que exigiria atacar a fundo o direito de propriedade (sigilo bancário), o capitalismo em decomposição é mais impotente ainda para enfrentar a demanda, já que é absolutamente incapaz de abrir uma via progressiva para o desenvolvimento social. O fim da droga é insolúvel diante do capitalismo.” (grifo nosso)
Destarte, pode-se dizer que enquanto houver mercado consumidor, a certeza da impunidade e o interesse econômico por detrás desse narcotráfico o mesmo se perpetuará.
Mas, nos dias atuais, alguns países do mundo estão evoluindo no que se refere à legalização de certas drogas, como é o caso da legalização da maconha. A maconha já foi legalizada em alguns países como a Holanda, a Espanha e os Estados Unidos, no qual a produção, o cultivo e a venda da Cannabis para consumo já é liberada.
Na América do Sul, o Uruguai foi o primeiro país a ter um projeto para controlar a venda da maconha ao consumidor. Além disso, Canadá e Israel também já possuem programas legais de cultivo de maconha para uso medicinal, mas não permitem o cultivo de maconha para seu uso recreativo.
3 O USO MEDICINAL DA MACONHA
Como mencionado anteriormente, o século passado foi marcado por uma forte repressão no que tange a erradicação do consumo e do cultivo de drogas por todo o mundo. Entretanto, esse pensamento começou a ser modificado a partir de 1961 quando ocorreram convenções internacionais de entidades sobre o controle de drogas que tinham como principal objetivo regular o uso medicinal e científico da Cannabis, mas mantendo a contínua repressão quanto ao uso recreativo e afim.
Diante disso, apesar dessas convenções buscarem ao máximo a adesão das nações estrangeiras, muitos países permaneceram adotando a repressão total. Repressão essa que se perpetua até os dias atuais, como é o caso do Brasil.
Em contrapartida, já há uma lista de países que permitem o cultivo da maconha para o seu uso medicinal e científico, como é o caso dos Estados Unidos, Canadá e Israel.
3.1 O USO MEDICINAL DA MACONHA NO ESTRANGEIRO
Israel foi o primeiro país do mundo a legalizar o uso medicinal da planta. Mas reportagens e estudos atuais já demonstram a propagação da maconha medicinal no mundo todo[2].
Na América do norte, o Canadá teve a sua legalização no ano de 2001 e o país já tem, hoje, 37 mil pacientes realizando o uso regular da maconha, no qual existem medicações de todos os tipos disponíveis. Nos Estados Unidos a legalização foi a partir de 1996, no qual atualmente 23 Estados mais a capital legalizaram o uso medicinal, mas federalmente não possui propriedades terapêuticas reconhecidas.
Na Europa, alguns países adotaram a legalização de determinados remédios oriundos da erva, como por exemplo: Sativex, Marinol e Nabilone, mas vale ressaltar que a sua utilização é específica para tratamentos autorizados, no qual cada país permitiu um rol de doenças para a sua utilização. Alguns países como Itália, Bélgica, Finlândia, Inglaterra, Holanda, Espanha, Suíça e Eslovênia.
Na Ásia, o uso da maconha nunca foi proibido, haja vista que se trata de um costume cultural dos povos daquela região. E no Oriente Médio, cabe destacar Israel, no qual desde 1993 o uso médico foi autorizado, e, atualmente, são 12 mil pacientes registrados das mais diversas doenças, no qual desde 2007 o governo possui um programa de distribuição gratuita.
Por fim, a América do Sul apresenta-se como a região mais repressora ao uso medicinal da maconha, sendo o Uruguai o primeiro país a legalizar a partir de 2013 e, o Chile, a partir de 2015, por intermédio de um projeto-piloto do governo, poderão seus pacientes receber remédios oriundos da maconha gratuitamente.
3.2 DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE
Essa questão traz à baila um debate fervoroso em torno de toda uma discussão do que pesa mais numa balança pela justiça em que a igualdade e o equilíbrio estão previstos em nossa Constituição e são inerentes ao Estado de Direito. Assim sendo, a dicotomia reside na proibição das drogas disposta na Lei nº 11.343/06 e no direito fundamental à saúde.
O artigo 5º da Constituição Federal brasileira de 1988 dispõe que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
O direito à vida é garantido pelo Estado constitucional democrático brasileiro aos cidadãos brasileiros bem como aos cidadãos estrangeiros que se encontrem em território nacional. Vê-se, portanto, que em âmbito nacional, o debate acerca da vida é tido como um direito humano fundamental. Logo, sobre esse assunto, o autor Daury Cesar Fabriz (2003, p. 267) afirma que:
“A vida, antes de ser um direito, é pressuposto e fundamento maior de todos os demais direitos. A vida, no âmbito do Direito Constitucional brasileiro, configura-se como um princípio que deve ser observado a todos sem distinção, de modo que os seus titulares são todas as pessoas que se encontram submetidas ao ordenamento jurídico brasileiro”.
Nesse mesmo sentido, o mesmo autor ainda acrescenta que:
“O direito à vida, não obstante a vida ser encarada de formas diversas pelas diferentes culturas, deve ser interpretado da maneira mais ampla possível e jamais de maneira, levando-se apenas em consideração tão-somente a vida biológica, baseado na dicotomia vida e morte.” (2003, p. 268)
Entretanto, quando a discussão envolve um direito fundamental faz-se necessário pensar: quais são os limites desse direito? O direito à vida deve constituir-se em um direito absoluto? Esses e outros questionamentos surgem na medida em que a garantia do direito fundamental requer a tutela do Estado. Porém, os demais direitos e deveres, como por exemplo, o dever previsto na Lei das Drogas nº 11.343/06, também requerem a tutela estatal. Assim, o Estado encontra-se em um dilema no qual não se vê capaz de garantir, ao mesmo tempo, um direito e um dever quando, na realidade, um acaba impedindo a eficácia do outro.
Somado a isso, o direito à vida tem apresentado-se como alvo para várias indagações interdisciplinares bem como aos avanços biotecnológicos. Nessa nova abordagem é que surge a Bioética como uma nova ciência.
“A nova ciência Bioética tem propiciado a interdisciplinaridade, o pluralismo e a harmonização internacional das normas de nível interno e externo. Suas reflexões procuram o conhecimento dos princípios regulativos das limitações que podem ocorrer em torno das investigações e dos avanços da tecnologia. As ciências biomédicas têm uma incidência direta sobre o ser humano e todo o processo vital. […] Os procedimentos específicos da intervenção do direito, no âmbito das ciências médicas, são cada vez mais amplos. Em todos esses momentos surgem debates em torno do direito à vida e sua proteção”. (BARACHO, 2000, apud FABRIZ, 2003, p. 272).
De tal modo que para compreender todas essas indagações, faz-se necessário, primeiramente, refletir acerca da proibição das drogas e a sua relação com todo o contexto social de sua implementação no Brasil, período no qual, a partir do século XX, a proibição das drogas estava diretamente ligada às técnicas de vigilância e represamento das classes determinadas como as “classes perigosas”. Assim, acerca desse assunto, o professor Thiago Rodrigues (2004, p. 143) afirma em um dos seus artigos que:
“Um dos estratagemas para o controle social no presente, alvo dessa reflexão, é a proibição das drogas. A situação de ilegalidade de um leque amplo de substâncias psicoativas talvez seja um dos mais recentes acréscimos táticos à roda totalizadora do sistema punitivo contemporâneo, pois há cerca de um século não existiam vedações à livre produção, venda e consumo de psicoativos hoje proibidos.”
Vale mencionar que a criminalização e o combate ao uso e venda das drogas ilícitas potencializou-se na década de 70 com a emergência do narcotráfico, compreendido como um complexo empresarial clandestino que conecta várias redes de produções e comercialização.
Por isso, qual a razão de ser da lei que proíbe as drogas? Será que o escopo principal da lei em questão era impedir o acesso e a utilização dessas drogas na área medicinal também? O legislador infraconstitucional ao redigir a Lei nº 11.343/06 aponta os objetivos pretendidos com a presente lei. Assim, eis que o texto legal dispõe sobre medidas de prevenção, atenção e reinserção social dos usuários e dependentes bem como a repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas.
Todavia, desde a criação da lei, a meta de erradicar o negócio e o consumo de psicoativos no mundo não ocorreu, tampouco houve o trabalho de reinserção social dos usuários e dependentes de forma eficaz, mas apenas se manteve como uma estratégia de controle social até os dias atuais.
Vê-se, pois, que a razão de ser da lei não trata necessariamente do uso medicinal das drogas ilícitas, sendo assim, não há disposições ao contrário. Portanto, não há que se falar em fundamentação nesse sentido para negar provimento no que tange ao uso medicinal da maconha.
3.3 A BUROCRACIA NO BRASIL
Neste contexto, como dito, a nação brasileira se apresenta como um desses países que permaneceram com a repressão total. Essa posição pode ser evidenciada por meio da última Lei de drogas nº 11.343 de 2006, que no seu artigo 2º dispõe:
“Art. 2º – Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas (…)”. (grifo nosso)
Diante do exposto, coube especificar em lei ou em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União quais são as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, e que são, consequentemente, proibidos no Brasil. Nesse cenário, a maconha, portanto, encontra-se presente na lista dessas substâncias proibidas.
Apesar desse proibicionismo, há o desenvolvimento de pesquisas científicas que apontam descobertas feitas acerca do potencial terapêutico do uso medicinal da maconha para uma infinidade de doenças. Assim, acerca desse assunto, o psiquiatra Lester Grinspoon, 86, autor de um dos primeiros artigos a desmistificar os males da maconha, afirma sobre a mesma que “Ela será a maravilha do nosso tempo, como foi a penicilina no passado”.
Assim sendo, cientistas, médicos e especialistas da área apontam e enumeram o uso dos subtratos extraídos da maconha para o tratamento de diversos sintomas e doenças, tais como: o efeito analgésico no alívio de dores; o controle de náuseas e vômitos, especialmente para pacientes que fazem quimioterapia; para desnutrição e estímulo do apetite, como em pacientes com AIDS ou câncer; no tratamento da esclerose múltipla para o alívio dos seus sintomas, especificamente os espasmos musculares; no controle de epilepsias; na diminuição da pressão intraocular dos pacientes com glaucoma; e entre outros.
Entretanto, existe um obstáculo enorme quanto a aplicação desses tratamentos com o uso medicinal da maconha nos pacientes que possuem os sintomas ou doenças supracitadas. E isso se deve, principalmente, ao fato de que muitos dos estudos realizados e desenvolvidos encontram na legislação uma barreira para o desenvolvimento e posterior aplicação das descobertas realizadas em benefício da sociedade.
Neste contexto surge um grande problema para a sociedade brasileira, no qual essa problemática seria o fato da Lei de Drogas incidir diretamente, de forma a impedir e dificultar, o direito à saúde que se apresenta, desde a Constituição Brasileira de 1988, como um direito fundamental e inerente a pessoa humana. Assim sendo, em decorrência a isso, vários são os componentes da maconha que ainda não possuem seus efeitos estudados.
Portanto, diante da reflexão acerca do proibicionismo da maconha versus o direito à saúde no Brasil, surge o confronto entre o âmbito jurídico e a ciência. No que se refere a esse assunto, o psicofarmacologista Elisaldo Carlini, professor da Unifesp, argumenta que a discussão acerca do tema tem de deixar de ser emocional. "Existe uma diferença entre a legalização e a aprovação do uso terapêutico. Não há justificativa para proibir a maconha medicinal do ponto de vista médico. Dados científicos destroem esses fatos", explica.
O psicofarmacologista acima mencionado é conhecido por tentar, desde 2010, criar a Agência Brasileira da Cannabis Medicinal, no qual esse órgão seria responsável por regular e controlar o cultivo medicinal da maconha, bem como esclarecer à população sobre os benefícios e riscos do tratamento.
Assim, a proibição legal da Cannabis e toda essa burocracia que envolve o seu uso medicinal e terapêutico exercem uma forma de restrição ao alcance das contribuições que o desenvolvimento do estudo dessa erva poderia trazer para a saúde pública.
Isso se deve ao fato de que os tratamentos permitidos no Brasil não estão sendo suficientes para a garantia da integridade física, psíquica e moral dos doentes. Assim, esses novos tratamentos poderiam, de certa forma, mostrarem-se mais eficazes no controle dessas doenças. Mas vale a ressalva de que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), responsável por todos os setores relacionados a assuntos que podem afetar a saúde da população brasileira, é responsável pela liberação de substâncias proibidas no País, em casos de exceção, assim como controla todos os usos.
Posto isto, destaca-se, neste contexto social, um fato muito importante e atual: a luta na Justiça dos pais pela liberação do remédio derivado da maconha, especificamente aquele derivado do Canabidiol (CBD), para o tratamento da doença dos seus filhos, que possui como principal sintoma convulsões diárias e repetitivas. Apenas esse remédio derivado de um dos componentes da Cannabis funciona e é eficaz para o controle das convulsões, que chegam de 80 crises por semana até zero crise por semana com o uso desse remédio em questão.
Cientistas afirmam que o futuro do uso terapêutico da maconha está associado com o desenvolvimento de substâncias puras e não com o fumo da mesma. De tal modo que todo o discurso proibicionista imposto por décadas faz com que as pessoas olhem com desconfiança e preconceito para a maconha, dificultando ainda mais essa mudança no cenário social.
3.4 MERCADO DE MEDICAMENTOS E SEUS ASPECTOS ECONÔMICOS
Quando o assunto envolve saúde pública, o Brasil não pode se ater a uma simples profilaxia, isto é, na aplicação de medidas para prevenir ou atenuar doenças em nível populacional através de diversas medidas que vão desde procedimentos mais simples, como o uso de medicamentos, até aos mais complexos; mas deve investir também no estudo para a criação de medicamentos bem como patenteá-los.
Assim, perante todo esse quadro exposto, surge uma área muito pouco citada, pensada e trabalhada no cenário atual, qual seja o mercado de medicamentos e todos os seus aspectos econômicos. Evidente é que o uso medicinal da maconha já se alastrou dentro da área médica, tratando-se de uma questão de tempo até a sua liberação ser total.
Fato este que pode ser demonstrado após a Resolução nº 268, de 07 de outubro de 2014 do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo que permite a utilização de remédio oriundo da Cannabis, especificamente da substância conhecida como canabidiol, para alguns casos específicos. Como resolve a seguir (Resolução Cremesp nº 268):
“Art. 1º. O canabidiol poderá ser prescrito pelo médico mediante assentimento do paciente e consentimento livre e esclarecido assinado pelo seu responsável legal, para o tratamento das epilepsias mioclônicas graves do lactente e da infância refratárias a tratamentos convencionais.
Art. 2º. A presente Resolução entrará em vigência na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.”
Em decorrência a isso, o país deveria se antever no estudo científico dessa planta, proporcionando, assim, o conhecimento de substâncias novas e suas possíveis utilizações bem como a criação de novos fármacos. Esse investimento na ciência possibilitaria colocar o Brasil em uma posição de vantagem.
Essa vantagem mencionada embarcaria um rol de fatores positivos para o Brasil, como a presença de laboratórios especializados e preparados para o estudo da Cannabis, a patente de possíveis medicamentos que viessem a ser criados e o conhecimento aprofundado das substâncias e os seus benefícios.
Entretanto, o Brasil já se encontra em desvantagem, haja vista que a sua liberação para o uso medicinal ainda não foi totalmente aprovada. Assim sendo, se o país aguardar a aprovação do seu uso para, a partir desse momento, passar a investir na área científica da Cannabis, isso remeteria, automaticamente, na dependência nacional dos medicamentos oriundos dos demais países que, atualmente, já investem nesse setor da saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A legalização das drogas é um assunto que continuamente nos remete a vários posicionamentos, ideias e estereótipos que se perpetuam ao longo do tempo na história. Como fora evidenciado, as drogas desde sempre se mostraram presentes nas sociedades e, hoje, são o motivo para a máquina capitalista impor a sua forma de controle social.
A lei de drogas, portanto, surge como uma medida que visa conter o tráfico de drogas e o seu respectivo consumo. Entretanto, vale destacar que o tráfico de drogas apresenta-se como uma tradição em vários países que dependem da sua economia para sobreviver.
Por conta disso, quando o foco recai apenas sobre o lado econômico, outras visões acabam sendo obscurecida, como é o caso do uso medicinal da maconha. O seu uso medicinal, por consequência, acaba sendo mais aceito dentro daqueles países, que hoje, já permitem ou estão em processo de reconhecimento e legalização. Mas, nos países em que a forma de repressão é mais absoluta, há muita resistência quanto ao seu emprego.
O Brasil, nesse contexto, enquadra-se por ser um país que ainda apresenta oposição, apesar de começar a permitir o seu uso em alguns casos específicos, como a Resolução nº 268 do Cremesp assim o dispõe.
Assim, ante o exposto, é visível que a legalização do uso medicinal da maconha garantiria à sociedade o seu direito fundamental à saúde. Esse fato infere-se de estudos acerca dos benefícios que tratamentos com as substâncias derivadas da Cannabis são capazes de proporcionar.
Por intermédio de uma legalização total, seria possível desconstruir a imagem depreciativa por detrás da maconha. No qual cabe reconhecer que existe sim o lado ruim da droga em questão, sendo este o tráfico de drogas e a sua economia paralela.
Todavia, este motivo não pode se sobrepor aos benefícios, visto que estes estão intrinsecamente relacionados à saúde pública e, consequentemente, fere a Carta Maior vigente no país.
De acordo com os prós do uso medicinal da maconha, algumas principais vantagens se destacam. Primeiramente, pode-se citar o próprio desenvolvimento de pesquisas relacionadas à temática em voga e, em decorrência a isso, o aparecimento e a produção de novos fármacos, proporcionando, assim, um novo meio de fonte de renda por intermédio dessa comercialização. E, por fim, a promoção da saúde.
Esta última caracteriza-se por ser o objetivo primordial desse estudo, isto é, buscar explanar e assegurar o bem da vida em questão, que neste caso, refere-se à dignidade humana, o direito à vida e à saúde do cidadão.
Acadêmica de Direito na Fauldades Integradas de Vitória FDV
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo, especialista em política internacional pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Mestre em direito Internacional e comunitário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Doutor em direitos e garantias fundamentais na Faculdade de Direito de Vitória – FDV, Coordenador Acadêmico do curso de especialização em direito marítimo e portuário da Faculdade de Direito de Vitória – FDV, Professor de direito internacional e direito marítimo e portuário nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito de Vitória – FDV.
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