Nome do autor: Marcel Figueiredo Gonçalves. Especialista em Direito e Processo Penal (PUC-SP). Mestre em Ciências Jurídico-Criminais (Universidade de Lisboa). Editor do site cienciacriminal.com. E-mail: marcel@cienciacriminal.com.
Palavras-chave: direitos humanos; política criminal; abuso de poder.
Esta é, sem dúvida, uma das perguntas que mais surge em qualquer roda de conversa entre amigos e conhecidos, assim quando descobrem que trabalhamos na área criminal. Até graduados em Direito, lamentavelmente, ainda possuem uma percepção malformada sobre o tema.
Para provar que o assunto é mesmo disseminado, veja o título desta notícia ainda de 2018 retirada da BBC Brasil, sobre pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos naquele ano[1]: na opinião de dois em cada três brasileiros, os direitos humanos defendem mais os criminosos que suas vítimas. A pesquisa é de 2018, a percepção é viva até hoje.
A “boa notícia” é que, dentre os entrevistados nesta pesquisa, 21% entendem que os direitos humanos se referem à ideia de “igualdade de direitos de todos”, o que estaria, de forma ampla e geral, acertado em termos técnicos e históricos. O lado “ruim” é que, logo em seguida, com 20% das respostas dadas sobre o significado dos direitos humanos, os entrevistados disseram que se trata de “direito que defende os criminosos”. Observe que a palavra “ruim” está em aspas, para enfatizarmos duas coisas: 1ª) defender os direitos humanos do criminoso não é algo ruim, é algo humano; 2ª) sim, as políticas de direitos humanos se preocupam bastante com os condenados criminalmente, então, a percepção geral não é de todo equivocada, é apenas mal interpretada. Vejamos.
Não há como fugir. Para entendermos o assunto, é necessário se voltar para a história. E vamos tentar fazer isso em poucos parágrafos, respondendo apenas à seguinte pergunta: de onde surge esta ideia de “direitos humanos”? Acabando de ler, garanto, você vai entender o porquê da coisa.
Especialistas em direitos humanos se referem a diversos documentos históricos (alguns até da Baixa Idade Média) para tentarem mostrar a origem destes direitos. Uns falam da Magna Carta de 1215, outros do Petition of Rights de 1628, outros do Bill of Rights de 1689, dentre tantos documentos. O saudoso Desembargador William Couto Gonçalves, por exemplo, procurou esta gênese na antiga filosofia grega, em sua obra intitulada “Gênese dos direitos humanos na antiga filosofia grega”[2]. Enfim, a busca pelo embrião é constante entre os juristas.
Não obstante, um ponto é comum entre todos estes que pesquisam nos documentos históricos: o de que a Declaração do Povo da Virgínia, dos Estados Unidos, de 1776, e a Declaração Francesa dos Direitos do Homem, de 1789, são dois dos principais documentos que, definitivamente, impulsionaram para todos os cantos do mundo a ideia de que o homem possui uma dignidade nata, e que ela nunca é perdida, independentemente de seus atos. É o que diz, por exemplo, a Declaração Americana de 1776: “Que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos inatos, dos quais, quando entram em estado de sociedade, não podem por qualquer acordo privar ou despojar seus pósteros e que são: o gozo da vida e da liberdade com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança“.
A questão é saber o contexto da origem de todos estes documentos. Ou seja, por que surgiram estes documentos? Exatamente porque neste período (século XVIII e anteriores) o que tínhamos eram os chamados Estados Absolutistas. O próprio nome já diz muito: um Estado que era governado por um Rei Absoluto, que mandava e desmandava em tudo. Ele era a lei, o juiz e o administrador ao mesmo tempo. Detinha todos os poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário). E, para aumentar ainda mais seu poderio, em certo período histórico, era ele tido como alguém “enviado por Deus”, isto é, um representante de Deus na Terra, que, inclusive e por isso, não cometia erros (daí a expressão usada à época: “the king can do no wrong” – “o rei não erra”). Logo, nada do que ele dissesse poderia ser contrariado, claro, senão estaríamos contrariando ao próprio Deus. Então, ele tomava seus bens quando quisesse, te jogava na fogueira por picuinhas, te chicoteava por suas opiniões pessoais etc. Quem teria coragem de contestar o representante de Deus em tempos que ser lançado à fogueira ou ser decapitado não era tão incomum?
Até que, no século XVIII, um movimento político, filosófico e jurídico, chamado “Iluminismo”, surge para questionar todas estas abusividades do Estado. Neste contexto é que surgem estas duas principais Declarações: a da Virgínia e a Francesa. Estes documentos, assim como os anteriores a estes dois, previam direitos do cidadão frente a possíveis abusos estatais. Este é o ponto principal. Exemplo: direito de não ter seus bens tolhidos pela Coroa sem um processo legal contra si, sem um direito de resposta. Outro exemplo: que os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário devem ser separados, e não estarem ao arbítrio de uma única pessoa, o rei. E assim sucessivamente.
Consegue observar? É uma luta contra o Estado existente à época. Isto é, os direitos humanos surgem em documentos que visam limitar os abusos do Estado, não abuso de pessoas particulares, até porque estas não possuem poderes, só o Estado possui. Você só pode abusar daquilo que possui, logo, só o Estado, em princípio e de modo geral, é quem pode cometer “abuso de poder”, assim, é contra ele que se lutará[3].
Está vendo por que os direitos humanos atacam tanto a polícia? Exatamente porque esta instituição é um dos representantes do Estado e, quando esta abusa de seu poder (como quando tortura alguém, ou executa um suspeito sem motivo), lá estará a política de direitos humanos atuando.
A morte de um suspeito pela polícia, em regra, não pode ser encarada como algo ofensivo aos direitos humanos, pois, em princípio, está ela atuando em legítima defesa. O problema está nos abusos, que ainda ocorrem. Quando um policial ou qualquer agente do Estado abusa de seu poder, o Estado não está agindo segundo o fim para o qual fora criado: atender ao bem de todos. Não existe (ou não deve existir) luta contra a polícia ou contra o Estado, mas sim contra os abusos. Eventuais exageros ou atuações ilógicas de um ou outro representante dos direitos humanos não podem fazer com que briguemos contra nós mesmos, contra os direitos humanos! Podemos ser os próximos a estarmos em uma situação em que o Estado abusará de nós, logo, a batalha é de todos e por todos.
Além deste fator histórico que explica por que se ataca tanto as instituições do Estado (quando abusam), há também o fator lógico de atuação política concreta. Como assim?
Os direitos humanos atuam como qualquer outra atividade política. Vamos a um exemplo bem didático. Na cidade de São Paulo há muitos alagamentos, pois chove muito. A Prefeitura precisa agir, precisa fazer sua política concreta referente à mobilidade urbana. Você é o Prefeito. Por onde vai começar? Seja como for, a palavra que você terá em mente é uma só: prioridades. E, por conta desta prioridade, é óbvio que você vai analisar:
A mesma coisa faz a política de direitos humanos. Onde a violência é mais covarde? Onde ela fere mais o sentimento coletivo de empatia? Onde ela causa mais danos? Onde é ela mais comum e constante?
Existe violência mais covarde do que aquela realizada pelo próprio Estado (quem deve atuar contra a violência) dentro de um presídio (estabelecimento em que o Estado é o “Rei Absoluto”)? É o famoso ditado cadeeiro: “aqui é onde nego chora e a mãe não escuta“. Consegue perceber que é o Estado quem seria o responsável pela investigação e, nesta situação, basta abafar o caso? Percebe que ninguém, nunca, irá descobrir? Uma tortura realizada por um agente penitenciário do Estado, portanto, é um exemplo de luta constante das políticas de direitos humanos, exatamente pelo seu grau altíssimo de reprovabilidade. Assim, é uma prioridade. Simples.
O mesmo raciocínio se dá com o desaparecimento forçado de pessoas. Em tempos de ditaduras, o Estado, responsável pelas investigações oficiais, quando some com seus inimigos políticos, não terá um concorrente que possa oficializar uma investigação, uma busca ao desaparecido. Ou seja, eu, Estado, dito as regras (legislo); eu, Estado, descumpro as regras se quiser (executo ilegalmente); eu, Estado, me omito nas investigações (não investigarei nem julgarei). Nada pode ser mais covarde, nada pode ser mais atentatório à dignidade. Logo, é outra prioridade.
Em suma, são a todos resguardados os direitos humanos (inclusive aos policiais), mas a atuação desta política, seja pelas razões históricas apontadas, seja pelas razões de prioridades mencionadas, é voltada mais para um ou outro segmento. Se esta percepção precisa mudar é uma outra questão. O nosso intuito foi demonstrar o porquê de ser assim. E, o fato de não pertencermos, eventual e diretamente, a um destes segmentos, não pode nos fazer lutar contra os direitos humanos. Seria lutar contra nós mesmos…
BIBLIOGRAFIA:
GONÇALVES, William Couto. Gênese dos direitos humanos na antiga filosofia grega. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
SHALDERS, André. Dois em cada três brasileiros acham que ‘direitos humanos defendem mais os bandidos’, diz pesquisa. In: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44148576. Acesso em 4/11/2021.
[1] A reportagem completa de André Shalders pode ser acessada em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44148576. Acesso em 4/11/2021. Todas as informações da pesquisa citada foram retiradas deste site.
[2] GONÇALVES, William Couto. Gênese dos direitos humanos na antiga filosofia grega. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
[3] Claro que há exceções para esta regra. Essa a que nos referimos seria uma abusividade “oficial”, mas existem diversas outras formas de abuso. Há abusos advindos da cultura, como daquela que diz que o homem tem poder sobre a mulher e, por isso e em vários casos, abusa de tal poder, violentando-a. É muito comum ver a atuação dos direitos humanos nestes casos também, na relação entre particulares, porque, como veremos, trata-se de uma prioridade desta política. Uma manifestação concreta da horizontalização dos direitos humanos.
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