David Rechulski e Ricardo Pagés, advogados
O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidirá nessa quinta-feira se é legítima a execução antecipada da pena após decisão condenatória em segunda instância, antes do efetivo trânsito em julgado da condenação.
O ponto nodal está em saber se essa situação compatibiliza-se com a garantia constitucional da presunção de inocência ou se viola-a, devendo-se, por essa razão, aguardar que sobrevenha o trânsito em julgado da condenação criminal imposta ao acusado para o início do cumprimento da pena.
A nós, a Constituição é clara em estabelecer que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII) e que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente” (art. 5º, LXI), assim assegurando, em leitura alinhada com a essência de um Estado Democrático de Direito, que toda pessoa será presumida inocente até que se prove de forma definitiva sua culpa para a consequente execução da pena fixada.
Quer dizer, não tratam os dispositivos constitucionais sobre questões distintas, em que um versa apenas sobre a culpabilidade e o outro sobre prisão – como sustenta a linha que reconhece a possibilidade de execução provisória da pena já em segunda instância –, mas sim de princípios que se complementam, o que vem precisamente espelhado na letra (constitucional) do artigo 283 do Código de Processo Penal (“Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”, g.n.).
Essa, inclusive, a mesma premissa contida nos artigos 105 e 147 da Lei de Execução Penal, que dispõem, respectivamente, que “Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução” (g.n.) e que “Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares” (g.n.).
A conclusão é, pois, que, no nosso regime legal, conforme evidenciam os artigos transcritos acima, não se poderia, como regra, executar uma pena que ainda não é definitiva, sobretudo quando importa em cerceamento de liberdade. A prisão antecipada pressupõe considerar, na prática, o réu como definitivamente condenado, mas essa condição jurídica somente advém, com a certeza e segurança exigidas pela Constituição, com o trânsito em julgado da decisão condenatória. É somente nesse momento, em que esgotadas as vias recursais previstas pelo próprio sistema constitucional, que poderá então o Estado tratar o condenado como culpado, impondo-lhe o cumprimento de uma pena.
Em que pese entendimentos divergentes, não nos parece razoável querer fundamentar a constitucionalidade da execução antecipada em simples estatísticas, sob a alegação de que poucas são as decisões alteradas em sede de recursos especial e extraordinário. Esse viés se reveste de um pragmatismo que não se subsume nas premissas em que se baseiam as garantias fundamentais, pois a pena que atinja um inocente, impondo-lhe os efeitos de uma condenação ainda provisória (em especial, quando ela se volta contra a liberdade), perturba a ordem social muito mais do que o próprio crime que se pretenda punir, ao passo que cada um de nós, na condição de inocentes, podemos eventualmente vir a ser vítimas dessa mesma inusitada situação.
De mais a mais, o sistema recursal em qualquer país do mundo presta-se a evitar justamente que um inocente possa ser inculpado, e não contrário, que um culpado seja julgado inocente. O fato é que o sistema é indissociável da condição subliminar de culpado ou inocente, pois é justamente o julgamento do recurso que vai separar quem é o quê.
Logo, o cumprimento da pena em segunda instância é, na realidade, a precipitação de um cenário que, embora relativamente provável (confirmação definitiva da condenação e da pena), é naquele momento ainda inexistente, eis que sem o trânsito em julgado.
É importante que se diga que a necessidade de se aguardar o julgamento de recursos previstos em lei não é sinônimo certo de impunidade. Aliás, é o anseio punitivista desenfreado de parcela da sociedade e dos órgãos de persecução penal que verdadeiramente traz riscos à garantia da efetividade da lei penal, na medida em que a violação das normas constitucionais e legais em algum momento culminará no reconhecimento de nulidades, as quais, por sua vez, implicarão na consequente anulação de processos e não raro poderão ensejar a ocorrência da prescrição. Ou seja, a sensação de impunidade decorre muitas vezes da via torta e açodada que trilham os órgãos de persecução na busca por uma condenação a qualquer custo.
Daí porque a maior flexibilização do princípio da presunção de inocência à luz de uma premissa de combate à criminalidade é, para o sistema jurídico, tão deletéria quanto as próprias práticas ilícitas que se busca combater.
Em conclusão, não há espaço para interpretar de forma diversa o que já está suficientemente claro na Constituição Federal e na legislação processual penal, independentemente da bandeira social e política que se hasteie para justificar a flexibilização das garantias constitucionais, que, não nos esqueçamos, a todos alcança.
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