O presente trabalho tem a missão de identificar até que ponto os juízes estariam legitimados a criar o direito. É a tentativa de enfrentar o poder criativo do ato jurisdicional a partir de uma visão hermenêutica filosófica.
INTRODUÇÃO
Este estudo parte da necessidade em identificarmos até que ponto os juízes estariam legitimados a criar o direito. Mesmo que saibamos que na prática a atividade criativa no ato jurisdicional verdadeiramente ocorre, nos importa neste estudo vislumbrarmos até onde essa liberdade (de criar), a par de uma visão hermenêutica, chegaria.
Nessa senda partiremos da caminhada positivista dos séculos XVI e seguintes, para, num segundo momento, devidamente cientes da gênese do significado do movimento positivista, analisarmos a nova função do Poder Judiciário advinda com a formação do Estado Democrático de Direito, para, em seqüência, entendermos o porquê da necessidade do Poder Judiciário deixar de lado o famigerado conservadorismo (dogmatismo, positivismo) que impera em nosso sistema jurídico, fruto da tradição dogmática a qual encontramo-nos assentados, passando de mero espectador a uma figura atuante.
Ao procedermos à análise do limite de criatividade a que os juízes estariam submetidos, o que faremos sob a ótica da hermenêutica filosófica gadameriana, analisaremos a dicotomia existente no ato jurisdicional entre o poder arbitrário e o discricionário, fixando nosso olhar no ato interpretativo, este entendido como a verdadeira pedra de toque da atividade criadora no direito.
1. O POSITIVISMO JURÍDICO, O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E O PODER CRIATIVO DOS JUÍZES
O positivismo jurídico consistiu e consiste – dada sua resistência[1] – numa teoria “usualmente considerada como analítica, descriptiva y explicativa”.[2] Não podemos olvidar que o mesmo, por assim, desde sua criação, negou veementemente a existência do direito natural[3], o qual até o século XVIII tinha precedência enquanto que o direito positivo se definia negativamente. O direito (natural), nesta ótica, era algo imanente à natureza e compulsório para o homem. Sua busca era o permanente, o universal, o comum para todos. Nessa perspectiva o direito positivo era o não-natural, o estabelecido por arbítrio e, pois, sem permanência, mutável por assim às condições sociais variáveis.
Após o século XIX o direito cada vez mais é posto sendo estabelecido pela autoridade do Estado. Daí que o positivismo se traduz numa teoria que trata de determinar que deve ser o direito, não em relação ao conteúdo, mas em relação à forma. O positivismo, de acordo com os ensinamentos do mesmo Campbell,
describe el Derecho como um conjunto de reglas discretas que son identificadas, comprendidas y aplicadas mediante el conocimiento técnico de los aplicadores del Derecho, cuyo trabajo está al margen de los desacuerdos morales y políticos de la vida diaria.[4]
A caminhada positivista tem início no Estado Moderno, século XVI, perante como referimos a instituição de outro paradigma, o do direito natural.[5] Este começou a ser abandonado na medida em que o estado burguês se implantava após a revolução francesa, juntamente à ascensão do capitalismo. Antes, de acordo com o ideal iluminista exaltava-se a razão, ápice do direito natural, reservando pouco espaço ao direito posto. Com a revolução industrial tornou-se inviável o direito costumeiro, tornando-se por assim a lei como a principal fonte do direito.
A mutabilidade deste, de acordo com a lição de Ferraz Júnior, passou a ser o usual, o que deu origem à positivação do direito, tendo como expoentes na França o Código Napoleônico e o surgimento da escola exegética, a qual pretendeu como uma de suas bandeiras a redução do direito à lei, o que atendia aos interesses da burguesia.[6] Com efeito:
A burguesia, emergente no mundo moderno, detentora de poder econômico, mas desprovida de poder político, lutava por adquiri-lo. Associado ao status de nobre economicamente vinculado à propriedade da terra, o poder político escapava de todo das mãos da burguesia. Cumpria-lhe, pois dissociá-lo daquela condição […] Conseqüência natural de tudo isso o retirar-se o econômico do âmbito político, reservando-se para o Estado a função de policiar a convivência social de modo a garantir o livre jogo das forças econômicas, submetidas exclusivamente às leis do mercado, suficientes para discipliná-la, se também garantida a livre manifestação da autonomia privada, que no contrato teria o instrumento perfeito para harmonizar vontades, interesses e necessidades [..] A lei revela-se como a mais avançada e racional forma de o povo expressar, de modo genérico, abstrato e prévio as regras da convivência social. Editada por intermédio de seus representantes, fixa os limites da atuação de todos.[7]
Michael Tigar e Madeleine Levy explicam a euforia positivista de tal época (séc. XVIII) face à necessidade da classe burguesa:
[…] uma classe social tão firmemente enraizada, mais ainda assim tão temerosa de seus contestadores, julgará especialmente útil um sistema de pensamento que nega seu próprio passado revolucionário e focaliza o caráter concreto, no tempo presente, de seu poder. [8]
Para J. J. Calmon de Passos[9] a vocação do mundo moderno nasceu comprometida com determinado pensamento filosófico, que embasou uma compreensão do mundo e do homem que necessariamente defluiu das expectativas econômicas e políticas postas por uma burguesia emergente. Todavia, com o surgimento do Estado Liberal a exegese foi sendo abandonada, substituindo-a o positivismo voluntarista Kelseniano.[10]
O jurista-filósofo alemão Hans Kelsen desenvolveu toda sua teoria sob a impossibilidade de se fundarem empiricamente os juízos de valor, raciocínio de base para a elaboração do que denominou de Teoria Pura do Direito. Para Kelsen há que se diferenciar um direito que é e um direito que deve ser. O que realmente sustentou com tal afirmação? A partir da concepção de empirismo – da comprovação, repudiando sentidos – com base nas teses de Bacon, Hobbes e Locke, Kelsen legou que o conhecimento científico deveria ser neutro, sem a emissão, assim, de qualquer juízo de valor, celebrando ao extremo a denominada neutralidade científica.
Diz-se então, justamente por isso, que o positivismo jurídico não tem conseguido aceitar o giro interpretativo[11] na filosofia do direito, o qual trouxe ao papel dos juízes e da cultura jurídica a possibilidade de aplicação das regras com diferentes interpretações[12], o que por certo contraria o positivismo clássico. Lembra-nos nisso a lição de Norberto Bobbio, para quem o positivismo defende um dever absoluto à lei, sobre quem um bom juiz humilharia sua razão, uma vez que seria instruído para julgar segundo ela, e não para julgá-la[13] – remetendo-a à gênese do que denominou ordenamento jurídico.
Esse ordenamento, para Bobbio, consistirá num verdadeiro sistema jurídico primado pela unitariedade e completude[14] (ainda que relativas, dada a existência de antinomias e lacunas) – rumando à objetividade e à clareza, não se prestando a tolerar indeterminações, pretendendo construir uma linguagem rigorosa para o direito, objetivando a segurança jurídica. Como criá-la? A partir da norma jurídica, única forma para garantir a coexistência pacífica entre o homem.
Com base nisso tem-se que no positivismo jurídico o Direito é objetivo. Ele é considerado uma ciência autônoma em relação à moral (valores) e à política. A norma jurídica não será necessariamente a norma justa ou a norma eficaz, mas, sim, a norma válida. Por outro lado, o próprio direito determinará quais serão as normas válidas, ou seja, quais normas pertencem ao sistema. Por isso que Kelsen afirma que a fonte do direito só pode ser o direito. [15]
A partir da evolução do Estado e das diferentes formas políticas organizacionais pelas quais o mesmo ultrapassou passou-se a analisar o positivismo numa visão assemelhante até então, tendo em vista que no Estado Democrático de Direito o direito passa a ser transformador[16], porquanto a Constituição passa a referir pelas “possibilidades para o resgate das promessas incumpridas pela modernidade, questão que assume relevância ímpar em países de modernidade tardia como o Brasil, onde o welfare state não passou de um simulacro”. [17]
Essa é a razão pela qual o constitucionalismo social e democrático (ou neoconstitucionalismo) atua em verdadeira incompatibilidade com o positivismo jurídico, eis que enquanto neste a lei ordinária ocupa posição soberana, no neoconstitucionalismo a Constituição é que determina a função e a hierarquia do restante do sistema jurídico.
Observa-se, nessa mesma esteira, no Estado Democrático de Direito, um deslocamento do centro de decisões do legislativo e do executivo para o Judiciário, na medida em que este se constitui como uma nova via a ser utilizada na busca pela realização de direitos tutelados, tendo a característica de ultrapassar as razões do Estado Liberal, impondo novos elementos transformadores da sociedade.
Se com o advento do Estado Social e o papel fortemente intervencionista do Estado o foco de poder/tensão passou para o poder executivo, no Estado Democrático de Direito há uma modificação desse perfil. Inércias do Executivo e falta de atuação do Legislativo passam a poder ser suprimidas pelo Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito. [18]
Nesse novo contexto impõe-se ao Judiciário que deixe de lado o famigerado conservadorismo (dogmatismo, positivismo) que impera em nosso sistema jurídico, fruto da tradição dogmática a qual encontramo-nos assentados, passando de mero espectador a uma figura atuante, percebendo ainda que sempre é criador do direito.[19] Isso significa naturalmente a (re)introdução pelo direito de juízos de valor na construção do pensamento jurídico, aceitando-se que a atividade do juiz é formada por um ato de inteligência constituído por um ato criador do direito indispensável à sua própria evolução. [20] Com efeito, segundo a lição do jurista Amilton Bueno de Carvalho:
Os principais criadores do Direito […] podem ser, e freqüentemente o são, os juízes, pois representam a voz final da autoridade […] Se interpretar significa penetrar os pensamentos, inspirações e linguagem de outras pessoas com vistas a compreendê-las e – no caso do Juiz, não menos que no do musicista, por exemplo – reproduzi-los, ‘aplicá-los’, e ‘realizá-los’ em novo e diverso contexto, de tempo e lugar, como não existir cerca dose de liberdade? [21]
A lição de Plauto Faraco de Azevedo acerca do fato de que os juízes ao interpretar sempre acabam por criar o direito é extremamente esclarecedora: “esta atividade criadora e ordenadora é, na verdade, inerente à função jurisdicional, independendo o sistema jurídico em que se acha inserido o poder judiciário”. [22] Nestes termos, não há mais espaço para questionarmos acerca do poder criativo dos juízes, uma vez que na prática eles necessariamente haverão de criar o Direito.
2. OS LIMITES DE CRIAÇÃO JURISDICIONAL: UMA VISÃO HERMENÊUTICA
O problema a tal temática relacionado diz respeito aos limites da liberdade de decisão a que os juízes estariam submetidos. Como sustenta Plauto Faraco de Azevedo, tal se revela de extrema importância, porquanto
o poder criativo do juiz não é suscetível de uma medida exata ou de uma pesagem estreme de dúvidas, sendo, antes, como demonstra a história do pensamento jurídico, intrinsicamente variável, porque vinculado a determinada concepção subjacente do direito, que instrumentaliza certo tipo de lógica a ela necessariamente ajustada. [23]
O tema reflete-se num verdadeiro paradoxo, uma vez que a atividade criativa que referimos poderia facilmente ser confundida com arbitrariedade do Juiz na aplicação da lei ao caso concreto, ao qual facultar-se-ia criar uma norma para resolver o caso que não existia no momento do conflito. Lembra-nos sobre isso a crítica de Dworkin ao modelo positivista de Hart.
Para o primeiro[24] o juiz precisaria descobrir quais são os direitos das partes e não inventar novos direitos com caráter retrativo. Dworkin assim rejeita a possibilidade criadora do direito defendida (no modelo positivista) por Hart[25] (nos hard cases) porque nela o juiz estaria dando efeito retroativo a uma nova norma, o que seria inadmissível dado ao fato de que assim os juízes estariam legislando sem serem devidamente eleitos pelo povo (referindo-se ao sistema da common law).
O Autor não aceita a tese da discricionariedade judicial porque entende que utilizando o material jurídico composto por normas, diretrizes e princípios é possível se chegar a uma “boa resposta”.[26] Com efeito, leciona Dworkin:
El razonamiento es perfectamente conocido, pero em esta historia de sentido común hay outro nivel de subordinación subyacente que no siempre se advierte. Cuando los jueces legislan – tal es la expectativa – no sólo actuarán como diputados sino como representantes de la legislación. Legislarán movidos por pruebas y argumentos de caráter similar a los que moverían al órgano legislativo superior, se este estuviera actuando independientemente. Se trata de un nivel de subordinación más profundo, porque hace que toda comprensión de lo que hacen los jueces em los casos difíciles dependa de uma comprensión previa de lo que hacen continuamente los legisladores. Esta subordinación más profunda es, por ende, tanto conceptual como política. De hecho, sin embargo, los jueces no son ni deben ser legisladores, y el conocido supuesto según el cual cuando van más Allá de lãs decisiones políticas tomadas ya por algún outro, están legislando, es enganoso.[27]
A proposta de Dworkin encontraria subsídio dentro do próprio sistema[28], uma vez que as decisões judiciais deveriam ser baseadas em argumentos de princípios.[29] O problema é que esta solução para os positivistas seria inaplicável, haja vista que os princípios, por não serem “postos”, estariam fora do sistema do direito, razão pela qual não teriam aplicabilidade. Por isso mesmo é que o positivismo se apresenta como uma estrutura fechada sobre si mesma.
Todavia não podemos olvidar que a mera aplicação das normas não conduz necessariamente à concretização da justiça, o que torna forçoso reconhecer a tese positivista, até porque o positivismo “possui vícios que o tornam incompatível com as exigências do direito entendido nos quadros do novo constitucionalismo do século XX”[30], e, se não tal bastasse, é através dos princípios que sempre acabaremos encontrando a “boa resposta”.[31]
Seria então a arbitrariedade judicial um obstáculo ao poder criativo em julgar? Parece-nos, realmente, que não. É importante apontar que a arbitrariedade não se confunde com discricionariedade. Os juízes por vezes são chamados a exercer, como aponta Cappelletti, a “prerrogativa da escolha”[32], notadamente nos casos em que surge a dúvida sobre a decisão. Todavia ensina o processualista que
escolha significa discricionariedade, embora não necessariamente arbitrariedade; significa valoração, “balanceamento”; significa ter presente os resultados práticos e as implicações morais da própria escolha; significa que devem ser empregados não apenas os argumentos da lógica abstrata, ou talvez os decorrentes da análise lingüística puramente formal, mas também e sobretudo aqueles da história e da economia, da política e daética, da sociologia e da psicologia.[33]
Mostra-se igualmente oportuna a seguinte passagem de Darci Guimarães Ribeiro, para quem
o ato de julgar é insofismavelmente discricionário, em sua verdadeira acepção, não obstante posicionamentos em contrário, pois a discricionariedade é elemento imanente do ato de julgar, na medida em que sempre deverá haver interpretação quando da aplicação da lei ao caso concreto, pois, como disse alhures Hegel, a palavra é um mau veículo do pensamento, mesmo quando a lei for aparentemente clara […] Mas o que vem a ser chamado de poder discricionário, também próprio do ato de julgar? Quem o define é Karl Engish, quando nos diz: “O autêntico poder discricionárioé atribuído pelo direito e pela lei quando a decisão última sobre o justo (correto, conveniente, apropriado) no caso concreto é confiada à responsabilidade de alguém, é deferida à concepção individual da personalidade chamada a decidir em concreto, porque se considera ser melhor solução aquela em que, dentro de determinados limites, alguém olhado como pessoa consciente da sua responsabilidade, faça valer o seu próprio ponto de vista. Sem sombra de dúvida, o ato judicial é discricionário, em nada se confundindo com um ato arbitrário, pois a discricionariedade está calcada na legalidade e exige, obrigatoriamente, uma motivação na tomada da decisão considerada mais justa ao caso concreto. Tal fundamentação inocorre no ato arbitrário, pois é adotada uma posição não permitida pelo ordenamento jurídico para aquele caso em concreto”.[34]
Em contrapartida a discricionariedade, que teria suas raízes afixadas no positivismo jurídico[35], o qual não admite no sistema do Direito a presença de lacunas – eis que aquele não reconhece os princípios por não serem “positivados” – as quais acabariam preenchidas pela própria discricionariedade do juiz na aplicação da lei (ou na escolha entre princípios conflitantes) ao caso concreto, se transformaria em arbítrio do juiz. Sobre isto ensina Eros Roberto Grau:
O positivismo encontra dificuldades insuperáveis para explicar os chamados “conceitos indeterminados”, as normas penais em branco e as proposições carentes de preenchimento com valorações. O positivismo, assim, acaba por cair na discricionariedade (mas discricionariedade que se transforma em arbítrio) do juiz.[36]
Na verdade, até mesmo para a própria filosofia, é despiciendo o enfrentamento dessa dicotomia entre poder discricionário e a arbitrariedade quando tratamos do poder criativo dos juízes, porquanto, ao contrário do que prevê o positivismo[37], é justamente a validade substancial da lei que deve ser analisada ao se tratar deste tema, validade esta que somente pode ocorrer a partir dos valores consubstancias da Constituição.[38] Impressiona a perspicácia de Lenio Luiz Streck, para quem
não se pode ’dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa’, atribuindo sentidos de forma arbitrária aos textos, como se texto e norma estivessem separados […] como bem diz Gadamer, quando o juiz pretende adequar a lei às necessidades do presente, tem claramente a intenção de resolver uma tarefa prática. Isso não quer dizer, de modo algum, que sua interpretação da lei seja uma tradução arbitrária.[39]
Assim, o verdadeiro obstáculo do poder criativo do (no) ato jurisdicional é a própria Constituição, a qual assume o “topos hermenêutico” pelo qual passará a interpretação/aplicação do resto do sistema jurídico e, obviamente, dos atos do Poder Judiciário. Ovídio Baptista, em relação ao tema tratado, faz menção a dois tipos de juízes: o juiz-tipo e o juiz de carne e osso. Nesse sentido, ensina:
o aparente paradoxo entre a insistência com que procuramos mostrar que o juiz concebido pelo sistema é (deveria ser) uma entidade incumbida apenas de revelar a “vontade”da lei; e o juiz de nossa experiência que o nega, para tornar-se um magistrado criador do direito, resolve-se ao percebermos a distância existente entre o juiz-tipo – aquele magistrado que justifica a cadeia recursal que nos atormenta – e o magistrado de carne e osso, obrigado a lidar, como diz Luhmann, com o duplo problema de “complexidade”e da “contingência” de uma sociedade administrada e pluralista.[40]
Mas, afinal de contas, o que significa interpretar? Eis a razão de ser do labor hermenêutico-filosófico surgido com Hans-Georg Gadamer no que tange a pluralidade de sentidos oriundos do texto[41], o que confere um verdadeiro caráter produtivo (criativo) ao ato interpretativo. Do contrário, segundo afirma o mesmo Ovídio Baptista,
ficaríamos – como na verdade nos encontramos – a reproduzir a própria lei, numa tarefa puramente declaratória, apenas esclarecendo seu “verdadeiro” sentido. Isto não é interpretação. Ainda estaríamos submetidos à lógica matemática ou à lógica das ciências experimentais.[42]
Mostra-se reveladora a seguinte passagem em Lenio Luiz Streck, para quem
é preciso ter claro que as palavras da lei não são unívocas, mas plurívocas. O “elo” (imanência) que “vinculava” significante e significado está irremediavelmente perdido nos confins da viragem lingüística ocorrida no campo da filosofia. Isto porque […] alterou-se radicalmente a noção de conhecimento como relação entre pessoas (sujeitos) e objetos, percebendo-se agora na relação entre pessoas (atores sociais) e proposições. Daí que, pelo processo interpretativo, o jurista “não reproduz ou descobre o verdadeiro sentido da lei, mas cria o sentido que mais convém a seus interesses teórico e político. Nesse contexto, sentidos contraditórios podem, não obstante, ser verdadeiros. Em outras palavras, o significado da lei não á autônomo, mas heterônomo. Ele vem de fora e é atribuído pelo intérprete.[43]
Essa é razão pela qual a hermenêutica-filosófica coloca os textos no centro da discussão, inserindo-os no contexto de quem o interpreta, ou seja, no ambiente social em que vive o intérprete, de modo que, como ensina o jurista-filósofo Lenio Luiz Streck, a simples revelação do sentido originário da norma deve inserir-se no ambiente social em que o intérprete vive, eis que, em seu contexto, tem pré-compreensão própria da relação intersubjetiva (sujeito-sujeito) do mundo, haja vista estar inserido em uma situação hermenêutica que o coloca como refém da linguagem.[44]
Noutras palavras, a interpretação sempre será uma tarefa criativa, eis que o intérprete, por inserido num determinado contexto, numa tradição[45], tendo, portanto, pré-compreensão do mundo que o cerca, através da linguagem[46], manifestará (produzirá) sentido, e não simplesmente o reproduzirá: “o ato de interpretar implica uma produção de um novo texto, mediante a adição de sentido que o intérprete lhe dá”.[47] Sobre isso leciona Lenio Luiz Streck:
É neste ponto que reside o maior contributo de Gadamer à hermenêutica jurídica […] O processo hermenêutico é sempre produtivo […] Gadamer vai dizer, a partir disso, que é uma ficção insustentável a concepção de que é possível o intérprete equiparar-se ao leitor originário […]. O intérprete compreende o conteúdo da norma a partir de uma pré-compreensão, que é a que vai lhe permitir contemplar a norma desde certas expectativas, fazer uma idéia do conjunto e perfilar um primeiro projeto, ainda necessitado de comprovação, correção e revisão através da progressiva aproximação à coisa por parte dos projetos em cada caso revisados, com o que a unidade de sentido fica claramente fixada.[48]
Nas palavras do próprio Gadamer,
o horizonte de sentido da compreensão não pode ser realmente limitado pelo que tinha em mente originalmente o autor, nem pelo horizonte do destinatário para quem o texto foi originalmente escrito. [49]
CONCLUSÃO
Pelo que vimos nesta exposição a criatividade do juiz é um elemento inexorável do ato interpretativo. O magistrado, inserido num determinado contexto, tendo, por assim, pré-compreensão do mesmo, estará apto a compreendê-lo e pois interpretá-lo, onde a linguagem assumirá a posição de condição de possibilidade para tanto.
Nesse diapasão, o limite de criatividade dos juízes é a Constituição, a qual, como vimos, assume, notadamente a partir da concepção de Estado Democrático de Direito, o “topos” hermenêutico do sistema, pela qual todas as decisões estarão submetidas.
A própria intepretação, por assim, sempre será uma tarefa criativa, eis que o intérprete, por inserido num determinado contexto, numa tradição[50], tendo, portanto, pré-compreensão do mundo que o cerca, através da linguagem[51], manifestará (produzirá) sentido, e não simplesmente o reproduzirá, adstrito, invariavelmente sempre, ao espírito da Constituição.
Advogado, professor Universitário, mestrando em direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos/RS
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