Pedro Henrique de Paula Morais[1]
Introdução
O novo coronavírus, causador da doença Covid-19, espalhou-se por todo mundo, atingindo drasticamente a forma de viver em sociedade, os sistemas de saúde, políticos, econômicos, e como não poderia deixar de ser, o sistema jurídico. Se nos homens o principal sintoma da doença é a dificuldade respiratória, no direito é a insegurança jurídica trazida por sua disseminação.
Com o avançar da doença e a necessária adoção de medidas de isolamento social, para desacelerar o contágio, inclusive através de determinações do poder público, o sistema econômico/empresarial colapsou, impactando, de maneira jamais antes vista, as relações contratuais.
As circunstâncias geraram dificuldades inéditas de se cumprir contratos, levando o operador do direito, num primeiro momento de incerteza, a justificar o incumprimento de maneira genérica, buscando romper o nexo causal através do caso fortuito ou força maior (art.393 do CC), ou mesmo se utilizar de maneira abstrata da teoria da imprevisão (art.317 do CC) e da onerosidade excessiva (art.478 a 480 do CC), para justificar uma revisão compulsória ou a resolução dos contratos.
Ainda que diante de dificuldades desconhecidas, a resolução destas se dará pela utilização de instrumentos jurídicos há muito tempo conhecidos. Dessarte, é imperativo que sua aplicação se afaste de soluções passionais que buscam uma rápida resposta para decifrar o cenário caótico que vivemos. Esta é a posição dos professores Flávio Tartuce[2], Daniel Dias[3], Carlos Eduardo Pianovski[4], Eduardo Nunes de Souza[5] e Anderson Schreiber[6], a qual nos filiamos.
Revisão e resolução de contratos em tempos de coronavírus
Assim, mesmo diante das atuais circunstâncias, e principalmente em razão delas, é necessário prestigiar princípios clássicos, como o da boa fé e da força obrigatória dos contratos, enriquecidos pela Lei da Liberdade econômica (art.2 e 7,º§1º da Lei de Liberdade Econômica), da função social do contrato (art.421, CC) – não justificando sua resolução, mas sua manutenção, e, claro, quando for o caso, da vulnerabilidade do consumidor (Art.4, I, CDC). A revisão, e especialmente a resolução do contrato, por ser medida radical, precisa ser aplicada de maneira comedida e específica, atenta a natureza do contrato firmado, as partes envolvidas e as obrigações nele estipuladas.
O Projeto de Lei 1179/2020, criado em caráter emergencial para regular as relações jurídicas privadas durante o período de calamidade pública, fixa o marco inicial da pandemia no Brasil (20/03/2020), suspende prazos prescricionais, determina a não retroatividade dos efeitos do art.393 do CC nas execuções dos contratos, suspende o direito de arrependimento do art.49 do CDC, entre outras medidas. Todavia, como é natural que aconteça, não soluciona a maior parte dos casos envolvendo o não cumprimento contratual durante o período da crise.
Mesmo que busquemos a continuidade dos contratos, mesmo com a promulgação do citado projeto de lei, é inegável que haverá a impossibilidade de cumprimento em incontáveis pactos, nestes casos, é necessário particularizar as razões que impossibilitaram o cumprimento.
Hipóteses concretas de revisão e resolução durante o período de crise
O professor Bruno Miragem[7] explica que o incumprimento poderá ser definitivo ou temporário. No primeiro a impossibilidade não desaparece ou atenua com o fluir do tempo, já no segundo, embora sem prazo futuro determinado, poderá se concretizar. Ensina ainda que pode ser absoluto ou relativo.
Neste ponto, utilizamos da reflexão sobre as hipóteses de resolução em tempo de coronavírus, desenvolvida pelos professores Eduardo Nunes de Souza e Rodrigo da Guia Silva[8].
Antes de tratarmos destas possibilidades, cumpre-nos trazer importante ponderação realizada pelos professores, quanto à aplicação do art.393 do CC, que versa sobre caso fortuito e a força maior. A excludente de responsabilidade é de certo a figura mais exposta neste período de anomalia[9], o que, segundo eles, embora compreensível, não está em consonância com a melhor técnica, na medida em que não se trata de “hipótese autorizadora da resolução” do contrato, muito menos de revisão, mas de exclusão de responsabilidade civil, que teria, portanto, solução através de uma ação indenizatória.
Raciocínio assemelhado é o do Professor José Fernando Simão[10], que defende a utilização do caso fortuito e força maior de maneira subsidiária, na medida em que, a impossibilidade na maior parte das vezes será transitória, e não definitiva. Sustenta ainda o literato, que o art.317 do CC, ao tratar da base jurídica do negocio e na possibilidade de sua revisão diante de circunstâncias imprevisíveis, atende de maneira muito mais eficaz a instabilidade jurídica vigente.
Retornando as hipóteses desenvolvidas pelos professores, temos no primeiro grupo, a impossibilidade de cumprimento em razão do fato do príncipe, ou seja, derivada da intervenção do Estado através de normativas que proíbem determinadas atividades ou condutas. Nestes casos, haveria a “ocorrência de impossibilidade jurídica superveniente”, o que poderia levar a posterior pedido de resolução, sem, contudo, imputar culpa as partes.
Neste cenário, não há também incidência de encargos moratórios, como defende Marcelo Matos da Silveira[11], diante da impossibilidade de constituição de mora (art.389, 394 e 395 do CC) por inexistir fato imputável ao devedor (art.396 e 408 do CC), melhor dizendo, como não há culpa, afastasse a mora e as obrigações dela derivadas.
Ainda tratando dos casos que o cumprimento se tornou impossível, questiona-se: E quando a relação for de consumo? O professor Daniel Dias[12] chama atenção sobre a lacuna existente no CDC, que embora trate da recusa no cumprimento da obrigação pelo fornecedor (art.35 do CDC), só menciona a impossibilidade no art.84,§1º, convertendo a tutela específica em perdas e danos.
Ocorre que, não se trata de situação de recusa, e sim de impossibilidade, pelo que os efeitos da responsabilidade do fornecedor pelo vício do serviço (art.20 do CDC), não devem ser aplicados[13]. Desta forma, cabe-nos utilizar do regramento do Código Civil sobre a matéria, não havendo que se falar em conversão em perdas e danos (art.84,§1º do CDC), posto a completa impossibilidade de cumprimento da obrigação pelo devedor.
O segundo grupo trata das hipóteses “em que uma das partes não mais encontra interesse útil na prestação a que faria jus”[14]. Nestes casos, como bem sintetiza o Flávio Tartuce: “incide a tese da frustração do fim da causa, que, como visto, tem relação com a função social, resolvendo-se este sem a imputação de culpa a qualquer uma das partes.”[15]
Parece-nos que o raciocínio desenvolvido pelo Professor Bruno Miragem, em relação a incerteza de cumprimento ou de utilidade da prestação, pode ser somado ao segundo grupo. Apresenta como possível solução a utilização do art.477 do CC, e a exceção de inseguridade, estendendo a interpretação, por interpretação, alcançando não apenas situações em que exista diminuição do patrimônio da partes, mas também outras relacionadas com a pandemia[16].
A terceira hipótese de contratos afetados pela atual crise, refere-se aqueles que tiveram a capacidade de adimplemento severamente comprometida pelos efeitos derivados da pandemia, impondo condição diversa da pactuada originalmente. Nesta admite-se a revisão, ou mesmo resolução, diante da imprevisão (art.317 do CC) ou da onerosidade excessiva (art.478, CC).
Salienta Carlos Eduardo Pianovisk, que a aplicação das teorias supra citadas, deve ser realizada caso a caso, observando as características do negócio jurídico firmado e considerando e real repercussão da disseminação na doença na capacidade de cumprimento do contrato.
Tratando-se de relação de consumo, acreditamos ser mais adequada, neste caso, a utilização do fixado pelo art.6, V do Código de Defesa do Consumidor, que garante “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que os tornem excessivamente onerosas”. Atentos ao dispositivo, mesmo diante da crítica situação, a revisão e resolução dos contratos envolvendo relação de consumo, deverá observar a vulnerabilidade do consumidor e os princípios que norteiam esta relação.
Considerações finais
É certo que as hipóteses apresentadas não irão solucionar todos os contratos afetados pelo novo coronavírus, pode servir, contudo, como balizador durante este período. Parece-nos, ser consenso entre os prestigiados autores mencionados, que a generalização da revisão, ou mesmo da resolução contratual, não é o caminho para transpor este novo desafio, pelo contrário, a uniformização de interpretações poderá estender ao período e o sintoma (insegurança jurídica) que a pandemia impõe ao direito.
Prestigiar o contrato, atentos as singularidades das partes nele envolvidas, mormente quando se tratar de relação de consumo, buscando uma manutenção harmônica a boa-fé objetiva e a sua função social, indubitavelmente minimizará os efeitos da crise em longo prazo nas relações contratuais.
Como bem apontado pelo Professor Tartuce, reside na colaboração entre as partes, instrumento poderoso para diminuir litígios futuros, devendo elas “deixarem de se tratar como adversários e passarem a se comportar como parceiros de verdade”[17].
A resolução contratual, mesmo no atual cenário, deve ser tratada como medida excepcional, porém, acreditamos que a revisão, seja pela impossibilidade imediata de cumprimento da obrigação, seja pela imprevisão ou mesmo pela onerosidade excessiva, será uma constante nos tempos que virão.
As dificuldades estão postas, cabe agora, aos operadores do direito, utilizar das ferramentas que já conhecem, ou, talvez, desenvolver novas, como por exemplo, o projeto de lei indicado, para fazer com que a desordem gerada pela crise não se estenda
[1] Mestre em Justiça Administrativa pela Universidade Federal Fluminense. Especialista em Direito do Consumidor e Práticas Comerciais pela Universidade Candido Mendes. Advogado.
[2] TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos – Extinção, revisão e conservação – Boa-fé, bom senso e solidariedade, Migalhas Contratuais, 27 de Março de 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322919/o-coronavirus-e-os-contratos-extincao-revisao-e-conservacao-boa-fe-bom-senso-e-solidariedade
[3] DIAS, Daniel. Coronavírus e o CDC: O vírus que revela a vulnerabilidade da Lei Hospedeira. JOTA, 18 de Março de 2020. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/coronavirus-e-o-cdc-o-virus-que-revela-a-vulnerabilidade-da-lei-hospedeira-18032020
[4] PIANOVSKI, Carlos Eduardo. A força obrigatória dos contratos nos tempos do coronavírus. Migalhas Contratuais, 26 de Março de 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322653/a-forca-obrigatoria-dos-contratos-nos-tempos-do-coronavirus
[5] SOUZA, Eduardo Nunes; SILVA, Rodrigo da Guia. Resolução contratual nos tempos do novo coronavírus. Migalhas Contratuais. 25 de Março de 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322574/resolucao-contratual-nos-tempos-do-novo-coronavirus
[6] SCHEREIBER, Anderson. Devagar com o andor: Coronavírus e contratos – importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Migalhas contratuais. 23 de Março de 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322357/devagar-com-o-andor-coronavirus-e-contratos-importancia-da-boa-fe-e-do-dever-de-renegociar-antes-de-cogitar-de-qualquer-medida-terminativa-ou-revisional
[7] MIRAGEM, Bruno. Coronavírus: repercussões sobre os contratos e a responsabilidade civil. GEN Jurídico. 27 de Março de 2020. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2020/03/27/coronavirus-responsabilidade-civil/
[8] SOUZA, Eduardo Nunes; SILVA, Rodrigo da Guia. op. cit.
[9] Folha de São Paulo. 02 de Abril de 2020. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,para-advogados-crise-do-coronavirus-pode-levar-a-judicializacao-de-contratos,70003257292
[10] SIMÃO, José Fernando. O contrato nos tempos da COVID-19. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Migalhas Contratuais. 03 de Abril de 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/323599/o-contrato-nos-tempos-da-covid-19–esquecam-a-forca-maior-e-pensem-na-base-do-negocio
[11] MATOS DA SILVEIRA, MARCELO. Encargos moratórios, coronavirus e a boa-fé objetiva. JUSBRASIL. 22 de Março de 2020. Disponível em: https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/823561131/encargos-moratorios-coronavirus-e-a-boa-fe-objetiva
[12] DIAS, Daniel. op. cit.
[13] MIRAGEM, Bruno. op. cit.
[14] SOUZA, Eduardo Nunes; SILVA, Rodrigo da Guia. op. cit.
[15] TARTUCE, Flávio. op. cit.
[16] MIRAGEM, Bruno. op. cit.
[17] TARTUCE, Flávio. op. cit.
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