A ilusão tecnológica
Em trabalho anterior[1], ao mencionar os riscos decorrentes das ilusões criadas pela tecnologia, tivemos a oportunidade de dizer:
“Provavelmente é a velocidade atordoante do computador que deixa muitos de nós cegos para o fato de que por trás de todo procedimento computacional está a programação humana, ou seja, que um computador apenas serve aos objetivos definidos por seu programador. Somente com o conhecimento prévio de tais objetivos e de todos os procedimentos envolvidos na busca deles se pode afastar os riscos da manipulação e, por assim dizer, garantir a “imparcialidade” da máquina. Uma visão por demais romântica ou mistificada da tecnologia pode levar-nos a três suposições filosoficamente equivocadas sobre o computador: a) que o seu desempenho possa superar o de qualquer organismo vivo, inclusive o ser humano; b) que ele possa ser infalível; c) que, por não estar vivo, seja dotado de uma imparcialidade estrutural inata”.
Quando se fez tal afirmação já se generalizava a adoção do registro eletrônico de jornada de trabalho – o chamado “ponto eletrônico” – em substituição aos antigos relógios de ponto mecânicos. Naquele momento, alertava-se que a utilização maciça da nova tecnologia alçava o controle patronal sobre o trabalhador a um novo patamar. E tal mudança se dava de forma unilateral, não regulada pelo Estado nem sujeita à mediação sindical, segundo os critérios e conveniências apenas do empresário, reforçando seu poder de direção. O mais grave é que tamanha utilização da tecnologia em benefício exclusivo do empregador se dava sob a falsa premissa de a máquina poderia se manter neutra quando envolvida em um processo de disputa. Este tipo de ilusão, de ufanismo tecnológico, é muito incentivado por alguns cientistas, empresários da indústria de computação e futuristas em geral, que insistem em promover uma certa “divinização” do computador. .[2] Esse êxtase quanto aos benefício da tecnologia solapa o espírito crítico e oblitera a visão quanto às conseqüências danosas advindas da supostamente inofensiva substituição dos relógios de ponto por registros eletrônico.
A modificação legal e o desequilíbrio na relação de trabalho
O sinal de partida para a substituição dos controles mecânicos de ponto pelos eletrônicos foi dado pela Lei n º. 7.855 de 24/10/89, que modificou o parágrafo 2º do Art. 74 da CLT. A antiga redação, introduzida pelo Decreto-Lei nº. 229 de 28/02/67, previa a obrigatoriedade da anotação da hora de entrada e saída do trabalhador em registros mecânicos ou não. O novo artigo passou a ter a seguinte redação:
“Art. 74 – O horário do trabalho constará de quadro, organizado conforme modelo expedido pelo Ministro do Trabalho, Indústria e Comercio, e afixado em lugar bem visível. Esse quadro será discriminativo no caso de não ser o horário único para todos os empregados de uma mesma seção ou turma.
§ 1º – O horário de trabalho será anotado em registro de empregados com a indicação de acordos ou contratos coletivos porventura celebrados.
§ 2º – Para os estabelecimentos de mais de dez trabalhadores será obrigatória a anotação da hora de entrada e de saída, em registro manual, mecânico ou eletrônico, conforme instruções a serem expedidas pelo Ministério do Trabalho, devendo haver pré-assinalação do período de repouso
.§ 3º – Se o trabalho for executado fora do estabelecimento, o horário dos empregados constará, explicitamente, de ficha ou papeleta em seu poder, sem prejuízo do que dispõe o § 1º deste artigo”. (destacamos)
A doutrina e a jurisprudência nacionais sempre entenderam as normas relativas ao controle de ponto previstas no Art. 74 da CLT como tendo, pelo menos, dois objetivos: a) facilitar a execução do contrato de trabalho, propiciando um controle compartilhado quanto à jornada de trabalho realizada pelo empregado; b) estabelecer uma prova pré-constituída em relação a eventuais horas extras prestadas pelo empregado, em prol da segurança jurídica de ambas as partes. Conforme Saad, o primeiro objetivo cumpre um duplo fim: “o de a empresa saber quantas horas o empregado trabalhou e o de o empregador verificar se o seu salário corresponde às horas efetivamente trabalhadas”[3]. Está em jogo, portanto, mais do que apenas o controle recíproco quanto ao cumprimento do contrato individual de trabalho; há, também, o interesse público no sentido de que a execução do contrato ocorra dentro dos parâmetros previstos em lei. Como já se disse em outro trabalho[4], “a finalidade precípua do Art. 74 parágrafo 2o da CLT sempre foi a de permitir que o empregado, seu sindicato, a fiscalização trabalhista e a Justiça do Trabalho exercessem um controle eficaz dos horários cumpridos pelos empregados por meio da exigência de registros diários de jornada que deveriam ser mantidos pelo empregador”. Ou seja, há de se perceber que, no caso de controle de jornada de trabalho, eventual desequilíbrio contratual compromete também a possibilidade de um controle social sobre a jornada de trabalho efetivamente praticada, em especial no que concerne ao respeito aos limites constitucionais de jornada (Art. 7º, XIII, XIV), períodos de repouso (Art. 7º, XV) e remuneração de horas extras (Art. 7º, XVI)[5]. Como bem lembra o Auditor-Fiscal mineiro José Tadeu Medeiros de Lima, a sonegação de direitos aos trabalhadores representa, também, uma lesão econômica indireta para toda a sociedade, pois provoca grande redução na arrecadação de contribuições previdenciárias e do FGTS, recursos utilizados para financiar moradias populares e saneamento básico.[6] Já o segundo objetivo está claramente direcionado ao processo do trabalho, se destina a criar uma prova pré-constituída, em benefício de ambas partes, mas, principalmente, em benefício do empregador[7].
Em regra geral, presume-se que a jornada dos trabalhadores seja controlada em decorrência do poder de direção do empregador[8]. Cumpre, assim, ao Estado estabelecer limites a esse poder de direção, em atendimento ao “valor social do trabalho”, fundamento do Estado Democrático de Direito, mitigando a unilateralidade que emerge objetivamente da relação laboral. No caso específico do controle de jornada, pretendeu o legislador criar mecanismo de recíproco controle, pelo qual “a operacionalização do controle de ponto seja feita pelo empregador, por meio de equipamentos de sua propriedade e viabilizado por pessoal específico designado pelo empregador”, mas de forma que tal operação, nitidamente unilateral seja contrabalançada por “meios de fiscalização que, adequadamente, propiciem ao empregado um certo controle sobre o resultado final de tal operação (ao fim e ao cabo, um relatório de horários de trabalho, de forma que este represente, de alguma forma, um consenso entre as partes envolvidas sobre a quantidade de tempo de trabalho diário prestado pelo empregado ao empregador”.[9]
Desse modo, nas empresas com mais de dez empregados,[10] o parágrafo 2º do Art. 74 da CLT obriga o empregador – que, como titular do processo produtivo, deve manter o histórico laboral – a apresentar, quando solicitado em processo judicial, registros diários da jornada de cada empregado, bilateralmente produzidos, de modo a tornar possível a perfeita reconstituição dos tempos de trabalho apropriados pelo empregador ao longo do contrato de trabalho.
Processualmente, uma vez alegada pelo empregado a prestação de jornada extraordinária, inverte-se o ônus da prova que, em geral, compete ao empregado, a teor do Art. 818 da CLT e do Art. 333 do CPC. Contestado o trabalho extraordinário, a não apresentação injustificada dos controles de freqüência gera a ”presunção relativa da veracidade da jornada declinada na petição inicial”[11], a qual poderá ser elidida por prova em contrário (Súmula nº 338 do TST)[12].
Exatamente porque tais registros constituem prova pré-constituída, as exigências formais são rigorosas. Entende-se como não fidedignos os registros que contenham rasuras ou as marcações não indeléveis (como no caso de anotação a lápis)[13]; ou quando as marcações são manifestamente inverídicas (como no caso das chamadas “anotações de horário britânico”, que não registram as horas extras, mas apenas o horário de trabalho oficial. A presunção de certeza dos registros fica irremediavelmente comprometida, passando estes a serem entendidos como simples início de prova, sujeitos a serem desconstituídos por outro tipo de prova, como por exemplo, a oral ou pericial[14].
Fica claro, então, que, nas empresas com mais de dez empregados, boa parte do sistema de proteção ao trabalhador contra exigências patronais abusivas em relação à jornada de trabalho ilegais ou contra o não pagamento de jornadas de trabalho excedentes à legal repousa na efetividade das normas do Art. 74 da CLT. Tal sistema se compõe de alguns elementos essenciais, sem os quais todo o arcabouço protetivo se esboroa:
– Obrigatoriedade, pelo empregador, de promover o controle de jornada nos moldes previstos em lei, registrando o horário de cada entrada e saída do trabalhador;
– Bilateralidade na produção dos registros diários de entrada e saída, uma vez que somente são válidos os registros realizados pelo próprio trabalhador. Não se aceitam registros feitos por prepostos do empregador, como no caso dos chamados “apontadores”;
– Imediatidade das marcações, ou seja, a exigência de que cada anotação seja feita no exato momento da entrada ou saída do trabalhador. Não se aceitam registros de ponto elaborados posteriormente.
– Aposição do horário exato de entrada e saída, não se aceitando arredondamentos “ponto britânico” ou marcação pré-assinalada de horários (os chamados “FIPS” do Banco do Brasil)[15]. Aqui, portanto, a clara exigência de que o sistema seja integrado por um relógio, seja este interno ao próprio sistema de registro (relógio de ponto) ou mesmo externo (e, nesse caso, evidentemente, acessível ao empregado para conferência).
– Depósito obrigatório pelo empregador da documentação produzida pelo sistema de ponto. Torna-se, assim, o empregador no guardião legal de um documento comum às partes e de interesse público, respondendo pela incolumidade dos registros tal como foram produzidos ao tempo de cada marcação de entrada e saída do trabalhador.
– Obrigatoriedade de apresentação da documentação produzida pelo sistema à Fiscalização Trabalhista e, em caso de processo, ao Poder Judiciário.
A implantação do controle de ponto eletrônico altera significativamente o equilíbrio desse sistema protetivo, tornando-se praticamente inócuo. Antes de tudo, porque o empregador é o proprietário do sistema, pode utilizá-lo de forma a sonegar ao empregado informações que somente são disponibilizadas aos administradores do sistema (prepostos do empregador); não mais permitir a fiscalização dos registros originais (que se tornam internos ao sistema, não mais acessíveis ao empregado); manipular/alterar os dados obtidos sem que seja possível, sem a permissão do administrador, reconstituir os dados originais e nem mesmo rastrear tais operações; manipular os cálculos que decorrem dos dados coletados (horas extras, noturnas, etc.), sem “abrir” a memória de cálculo, inviabilizando a conferência por terceiros; produzir relatórios unilaterais, sem que a veracidade dos dados possa ser conferido, já que os dados originais não são preservados.
Registros eletrônicos são alteráveis por natureza. Os meios comuns de armazenamento (memórias, fitas e discos magnéticos) são facilmente regraváveis. Mais do que isto, a regravação pode ocorrer incontáveis vezes sem que restem traços perceptíveis. O ponto crucial, então, é a não preservação dos dados originais, uma vez que não é obrigatório o arquivamento permanente das marcações digitais dos horários do empregado; tampouco é mandatório protege-las contra tentativas de alteração. Na medida em que o sistema de ponto eletrônico permite que as marcações sejam produzidas e/ou alteradas a qualquer tempo, por qualquer pessoa com acesso ao sistema informatizado, mesmo em situação remota – e tudo sem o consentimento ou ciência do empregado! – evidentemente não se pode mais falar em bilateralidade ou imediatidade; a certeza da originalidade de cada marcação fica irremediavelmente comprometida; a documentação apresentada pelo empregador à Fiscalização Trabalhista ou em processo judicial deixa de ter qualquer credibilidade; há um claro descumprimento, por parte do empregador, de seu dever de manutenção incólume da documentação original.
Como já se teve oportunidade de dizer, sem regulamentação, os sistemas de controle de ponto tornam-se “uma simples máscara de certeza e confiabilidade, tecida pela mistificação tecnológica, acobertando a manipulação de informações essenciais ao contrato de trabalho”[16].
A constatação das fraudes nos controles eletrônicos de ponto.
Infelizmente, confirmaram-se os piores temores quanto à possibilidade de manipulação dos controles de ponto eletrônicos por parte de empregadores em fraude aos direitos dos seus empregados.
Em inúmeros processos judiciais, por todo o país, verificou-se que as empresas utilizam as facilidades propiciadas pelos sistemas atuais para fraudar o direito dos trabalhadores a horas extras. A prova, dessas fraudes, em geral, foi obtida por depoimentos de testemunhas ou por perícias técnicas, onde especialistas em informática constataram a fragilidade e insegurança em geral dos sistemas de controle de jornada.
Também foram realizadas inspeções judiciais[17], com idêntico resultado.
O mesmo foi constatado pelos Auditores-fiscais do Ministério do Trabalho. A inspeção do trabalho do M.T.E. foi inundada por denúncias de fraudes nos sistemas de ponto eletrônico, em especial os grandes magazines do comércio varejista e redes de supermercados. Tais denúncias partiam de trabalhadores, sindicatos profissionais, requisições do Ministério Público do Trabalho para instruir procedimentos investigatórios e requisições da Justiça do Trabalho.
Através do trabalho excepcional de pesquisa pelo já referido Dr. José Tadeu Medeiros Lima, constatou-se que, praticamente, todos os softwares de controle de ponto comercializados no país permite, sem qualquer tipo de restrição, o acesso do empregador aos registros eletrônicos originais dos horários de entrada e saída dos empregados, admitindo todo tipo de alteração sem deixar qualquer traço da manipulação realizada.[18]
Mais: algumas empresas de software utilizam essa possibilidade de fraudar os registros como uma “vantagem comercial” dos softwares que produzem, chegando a anunciar, despudoradamente, que, através da compra de seu programa, o empregador deixará de se preocupar com as horas extras de seus empregados.[19]
Analisando os materiais publicitários e os manuais de operação dos programas extraídos dos sítios dessas empresas na internet, foi constatado que os dispositivos e programas propiciam fraudes que foram classificadas, por José Tadeu de Medeiros Lima em quatro espécies bem definidas:
“-Sistemas de controle de ponto eletrônico que permitem ao empregador, mediante senha, acesso posterior às marcações efetuadas pelos empregados, permitindo sua alteração sem deixar qualquer vestígio;
– Sistemas que permitem ao empregador configurar o sistema de forma a permitir a marcação de ponto somente em horários pré-determinados a cada marcação de horário, bloqueando a marcação em horários diversos. Em alguns casos, o sistema se encarrega de “corrigir” automaticamente o horário marcado, registrando como se fosse o horário pré-determinado pelo empregador. Alguns programas chegam ao requinte de prever uma “situação de pânico” (provavelmente a chegada do Auditor-Fiscal!), de forma que, ao um simples teclar o sistema “desbloqueia” imediatamente e aparentemente funciona em normalidade.
– Outros sistemas permitem a parametrização ou configuração de forma que prescindem do empregado e geram marcações independentemente de ser o ponto batido ou não.
– A grande maioria dos sistemas permite a criação de diversos bancos de horas, em que as marcações originais de horários de entrada e de saída são “perdidas” de forma definitiva, restando apenas o resultado das compensações de horas realizadas pelos programas sem que seja possível verificar se estão corretas ou não.”
Desde 2001, a Associação dos Magistrados do Trabalho da Quarta Região (Amatra IV) e a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) aprovaram, em seus congressos, teses em que propunham a normatização da matéria, de forma a coibir as fraudes e resgatar a credibilidade dos registros de ponto como documentos de produção bilateral e, assim, valiosos como prova pré-constituída dos horários trabalhados pelos empregados,na forma prevista no parágrafo 2º do Art. 74 da CLT.
Em 26 de março de 2009, foi realizado em Porto Alegre um seminário sobre o tema, promovido pela Amatra e com o apoio do TRT 4ª. Região, em que participou o Dr. José Tadeu Medeiros de Lima, onde se avançou na discussão, chegando-se a importantes conclusões como a urgente necessidade de padronização das máquinas de controle de ponto (hardware).
Finalmente, em 21 de agosto, o Ministro do Trabalho e Emprego expediu a Portaria nº. 1.510, que disciplina o registro eletrônico de ponto, atendendo plenamente a expectativa dos que preconizavam a eliminação dos dispositivos eletrônicos que permitem a fraude trabalhista.
A Portaria nº 1.510 de 21 de agosto de 2009.
A Portaria 1.510 atende a um clamor dos operadores jurídicos do meio trabalhista que cobravam do Ministério do Trabalho a regulação da matéria. Tal normatização visou garantir que os sistemas de ponto eletrônico sejam desenvolvidos e utilizados de forma tal que se minimizem as possibilidades de fraudes no registro de jornada. Ela pretendeu resgatar a utilidade e eficácia do Art. 74, parágrafo 2º da CLT, coibindo as principais práticas fraudatórias.[20]
Responsabilidade solidária dos fabricantes pelo sistema
A Portaria inicia por definir “Sistema de Registro Eletrônico do Ponto” (SREP) como sendo “o conjunto de equipamentos e programas informatizados destinado à anotação por meio eletrônico da entrada e saída dos trabalhadores das empresas, previsto no Art.74 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452,de 1º de maio de 1943” (Art. 1º, parágrafo único).
Ao mesmo tempo em que a Portaria corretamente diferencia nos sistemas de ponto o equipamento (hardware) – que denomina Registrador Eletrônico de Ponto (REP)[21] – do programa (software) – que denomina “Programa de Tratamento de Registro de Ponto”[22]. Tal diferenciação é essencial para demarcar as responsabilidades de cada fabricante. Fica estabelecido claramente que ambos os elementos compõem um sistema que deve ser conjuntamente analisado[23], já que não se pode conceber o funcionamento de um programa sem o equipamento – e vice-versa. Desse modo, deve-se presumir a existência de uma responsabilidade solidária entre fabricantes de equipamentos e de programas se o sistema composto de ambos for considerado fraudatório. Essa presunção somente poderá ser afastada quando o fabricante demonstrar que seu produto atende estritamente as exigências da Portaria.
Talvez se possa objetar que um fabricante de equipamento não pode se responsabilizar por fraudes decorrentes de eventual programa associado ao equipamento por exclusiva decisão do empresário que adquiriu separadamente ambos os elementos. Ou, ao contrário, se poderá dizer que o fabricante do software não pode assegurar que seu programa não seja utilizado indevidamente por um empresário que o rode em um equipamento inseguro.
Tal não é tão simples assim, no entanto. Pelos termos da Portaria fica claro que os fabricantes de “hardware” devem garantir que as marcações originais sejam preservadas em um arquivo-fonte de dados que deve ser imune a qualquer alteração independentemente do programa de computador que, por decisão do empresário, utilize os dados originais captados pelo equipamento para geração de relatórios. Assim, as marcações de ponto originais devem ser arquivadas permanentemente em um sistema fechado, que fornece, por seus próprios meios, a qualquer tempo, relatórios fidedignos dos dados coletadas. Esse arquivo-fonte deve acessável a qualquer tempo pela fiscalização trabalhista ou, na eventualidade de um processo judicial, pelo próprio juiz ou seu auxiliar (em caso de inspeção judicial) ou pelo perito de confiança do juiz (em caso de perícia).
Por sua vez, os programas (softwares) não devem permitir alterações no arquivo-fonte de dados, nem permitir divergências entre os dados ali contidos e os relatórios gerados pelo programa. Para isso, devem obrigatoriamente ter mecanismos que permitam o rastreamento e visibilidade de todas as operações de tratamento de dados, de forma a assegurar que as marcações tidas como originais pelo programa são exatamente as que foram captadas do equipamento (hardware) e, se incorreção há, essas não decorreram do programa, mas do equipamento.
De fato, para que a fraude ocorra deve-se presumir que esta transpassou os mecanismos de prevenção e de segurança que tanto os equipamentos como os programas devem conter – inclusive, contra eventuais intentos fraudatórios que resultem de equipamentos/programas que com ele se associem.
Uma vez tendo o empresário optado pelo Sistema de Registro de Ponto, este deve ser o único meio de registro da jornada de trabalho, sendo proibido que a máquina onde são arquivados permanentemente os registros seja remota.[24]
Responsabilidade do fabricante de hardware
Conforme a Portaria, os equipamentos de hardware (REP) deverão marcar o ponto, identificando o trabalhador (sem intermediação de outro equipamento), vinculando a marcação a um horário indicado por um relógio interno, registrar tais dados em uma memória permanente a salvo de alterações e imprimir um comprovante para o trabalhador[25].
O REP deve ter as seguintes características[26]:
– possuir um relógio interno capaz de fornecer o horário correto e de permanecer funcionamento em caso de queda de energia elétrica por, pelo menos, sessenta dias;
– possuir um mostrador de horário;
– dispor de uma impressora em bobina de papel, integrada ao sistema e de uso exclusivo do equipamento, que forneça o comprovante para o trabalhador a cada marcação feita;
– manter uma memória de registro de ponto inacessível a outros programas e capaz de manter permanentemente os dados de ponto originais;
– manter uma memória de trabalho;
– uma porta USB externa, pronta para captura dos dados armazenados pelo Auditor-Fiscal do Trabalho.
– não depender de qualquer outro equipamento para marcação de ponto, sendo esta interrompida quando for feita qualquer operação que exija a comunicação do REP com outro equipamento.
O equipamento deve gravar em uma Memória de Trabalho (MT) os dados de identificação do empregador, do empregado e do local da prestação de serviço.[27] Já nas operações de marcação de ponto, o equipamento deve armazenar permanentemente[28] na memória (Memória de Registro de Ponto – MRP), em ordem seqüencial, os dados relativos às marcações de ponto, bem como qualquer alteração dos dados cadastrais e de eventuais ajustes no relógio interno. Tais dados não podem apagados ou alterados, direta ou indiretamente e gerarão um Arquivo-Fonte de Dados (AFD), em formato padronizado conforme Anexo I da Portaria[29], que será acessível à Fiscalização Trabalhista pela Porta USB (Porta Fiscal) ou pela emissão de um relatório das marcações efetuadas nas últimas 24 horas (Relatório Instantâneo de Marcações).
O fabricante do equipamento de Registro Eletrônico de Ponto (REP) deve se cadastrar junto ao Ministério do Trabalho e Emprego e solicitar registro de cada um dos modelos que produzir[30]. No processo de registro, o fabricante declarará, pelo seu representante técnico e seu representante legal, que o equipamento e os programas nele embutidos atendem as especificações da Portaria, especialmente que seu produto não permite alterações dos dados originais de marcação de ponto, não restringem a marcação de ponto em qualquer horário, não bloqueiam a marcação do ponto e que possuem dispositivos de segurança que impedem o acesso ao equipamento por terceiros.[31] Para o registro, ainda, deverá o fabricante apresentar “Certificado de Conformidade do REP à Legislação”, emitido por órgão técnico credenciado no Ministério do Trabalho e Emprego.[32] Qualquer alteração no REP ou nos programas residentes exigirá um novo registro.[33]
Deverá, ainda, o fabricante do hardware, quando for solicitado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, pelo Ministério Público do Trabalho ou pela Justiça do Trabalho, apresentar toda a documentação técnica do circuito eletrônico, bem como os arquivos-fonte dos programas residentes.[34]
Responsabilidade do fabricante do software
O Programa de Tratamento de Registros de Ponto (“sotware”)[35] deverá se apropriar dos dados originais da marcação dos horários de entrada e saída (exclusivamente o AFD fornecido pelo equipamento, limitando-se a acrescentar informações para completar eventuais omissões no registro de ponto ou indicar marcações indevidas. Estes acréscimos e indicações serão armazenados em um Arquivo Fonte de dados Tratado (AFDT). Não é permitida a alteração dos dados no AFD e não deve haver discrepâncias entre este e os relatórios gerados pelo programa. Ou seja, eventuais complementos ou correções de horário deverão ser explicitamente apresentadas e justificadas nos relatórios gerados pelo programa, sem deixar de constar expressamente quais foram os dados originais[36].
A apresentação dos relatórios do Programa de Tratamento de Registro de Ponto deverá seguir um formato padronizado, previsto no Anexo II da Portaria, onde são descritas todas as operações de tratamento de dados realizadas pelo programa sobre a base original de dados de entrada e saída do trabalhador. Não se trata, portanto, de um mero logfile das operações realizadas pelo programa, mas de um relatório padrão, onde as eventuais complementações e retificações dos dados originais sejam facilmente identificáveis e conferíveis. Assim, haverá o relatório “Arquivo de Controle de Jornada para Efeitos Fiscais”, de conteúdo idêntico aos dados originais do AFD e o arquivo “Espelho de Ponto Eletrônico”, onde haverá um campo específico para descrever as operações de complemento/retificação realizadas sobre os dados originais.
O fabricante do software deverá fornecer ao consumidor um documento denominado “Atestado Técnico e Termo de Responsabilidade”, assinado pelo responsável técnico e pelo representante legal da empresa. Este documento é a garantia de que o programa atende as determinações da Portaria, em especial, a de não permitir alterações no AFD e relatórios de dados inverídicos quanto ao real conteúdo do AFD.
Responsabilidade do empregador
O empregador, por sua vez, somente poderá utilizar o SREP[37]:
– se possuir o “Atestado Técnico e Termo de Responsabilidade” do fabricante do hardware, previsto no Art. 17 da Portaria, mantendo-o disponível para a Fiscalização Trabalhista;
– se possuir o “Atestado Técnico e Termo de Responsabilidade” do fabricante do software, previsto no Art. 18 da Portaria, mantendo-o disponível para a Fiscalização Trabalhista;
– se tiver cadastrado, via internet, no M.T.E. como usuário de SREP, tendo informado seus dados, equipamentos e softwares que utiliza;
– se mantiver o SREP permanentemente disponível, no local da prestação de serviço, para facultar à Fiscalização Trabalhista os arquivos gerados e relatórios emitidos pelo Programa de Tratamento de Dados do Registro de Ponto e pelo REP, seja através de meio impresso ou eletrônico (através da Porta Fiscal).
Salvaguardas do sistema
O resgate da confiabilidade dos sistemas de registro de ponto eletrônico se baseia em um tripé de salvaguardas, previstas na Portaria, descritas a seguir.
A existência da “porta fiscal” e dos relatórios obrigatórios.
Criam-se as condições para que o Auditor-Fiscal, a qualquer tempo[38], possa verificar a consistência das marcações de ponto, seja acessando diretamente o Arquivo-Fonte de Dados através de Porta Fiscal (Art. 7º. III) ou através da emissão dos Relatórios Instantâneos de Marcações (Art. 7º, IV) – ambos de responsabilidade do hardware – ou, ainda, pela emissão dos relatórios ”Espelho de Ponto Eletrônico”, “Arquivo Fonte de Dados Tratados” e “Arquivo de Controle de Jornada para Efeitos Fiscais” (Art. 12) – estes de responsabilidade do software. Haverá, ainda, a possibilidade do Auditor-Fiscal conferir toda a documentação técnica dos equipamentos (inclusive do circuito eletrônico) e dos arquivos-fonte dos programas do computador.
Todas as facilidades disponibilizadas ao Auditor-Fiscal para cumprir sua missão investigatória devem ser entendidas como extensíveis ao Ministério Público do Trabalho e à Justiça do Trabalho, seja em inspeção judicial, seja em perícia técnica.
Responsabilização administrativa, civil e criminal
Outra salvaguarda são os atestados técnicos e termos de responsabilidades para os software” e hardwares, sendo que, para os últimos ainda se exige o registro no M.T.E que, por sua vez, supõe um “Certificado de Conformidade do REP à Legislação”, emitido por órgãos técnicos credenciados pelo M.T.E.[39] Para se habilitar ao credenciamento, o órgão técnico deverá realizar pesquisa ou desenvolvimento e atuar nas áreas de engenharia eletrônica ou de tecnologia de informação e ser entidade de administração pública, direta ou indireta ou entidade de ensino, público ou privada, sem fins lucrativos.
Assim, as empresas que fornecerem atestados técnicos e termos de responsabilidades que não correspondam à realidade dos produtos que comercializam, além da responsabilidade civil por danos de terceiros, serão responsabilizados também criminalmente, pois terão cometido, pelo menos, os crimes previstos na lei penal para falsa declaração, falso atestado e falsidade ideológica.[40]
Já o empregador que utilizar, em seu SREP, produtos não cobertos por atestados técnicos e termos de responsabilidades nos termos da Portaria ou que não atendam as especificações da Portaria, terá todo o material apreendido, sendo lavrado auto de infração pelo Auditor-Fiscal do Trabalho.[41] A persecução criminal ao empregador que praticar fraude no ponto eletrônico será encargo do Ministério Público do Trabalho. O possível enquadramento penal será com base nos delitos previstos para os crimes de falsidade documental, sonegação fiscal, frustração de direito assegurado em legislação trabalhista e apropriação indébita. Em relação a este último, como lembram Antonia Mara Vieira Loguercio e Altamiro Borges, a fraude no controle de ponto eletrônico é uma forma de sonegação de direitos ao trabalho que se enquadra no crime de retenção dolosa de salário.[42]
Conforme Luiz Flávio Gomes[43], são objetos jurídicos dos delitos de falsidade documental a autenticidade, a perpetuação e o valor de prova do documento. A conduta do representante legal e do responsável técnico, ao declararem falsamente que seus produtos atendem as especificações da Portaria, incorre nos tipos criminais previstos nos arts. 301 § 1º e 299 do Código Penal. Já o empregador ao apresentar, como documentos idôneos, relatórios de ponto sabidamente adulterados, com o propósito de sonegar direitos de seus empregados a percepção de horas extras, incorre, além do referido Art. 299, também pode ser enquadrado no art 297 do Código Penal . Em todos esses casos, atenta-se contra a integridade do documento, , lesando suas funções de garantia, perpetuação e valor probatório.
O crime de atestado falso se configura quando os representantes legais e técnicos do fabricante, de software ou de hardware, assinam um “Atestado Técnico e Termo de Responsabilidade” que falseia a verdade no que tange às especificações do produto atestado. No caso do hardware, como já vimos, trata-se da declaração de que o equipamento “não possui mecanismos que permitam alterações dos dados de marcações de ponto armazenados no equipamento; que não possui mecanismos que restrinjam a marcação do ponto em qualquer horário; que não possui mecanismos que permitam o bloqueio à marcação do ponto e que possui dispositivos de segurança para impedir o acesso ao equipamento por terceiros”. Já para o fabricante de software, se trata de declarar que seu programa “não faz alterações no Arquivo-Fonte de Dados e não permite divergências entre o Arquivo-Fonte de Dados e os demais arquivos e relatórios gerados pelo programa”.
Conforme o Art. 301 do Código Penal, comete o crime de falsidade material de atestado ou certidão aquele que:
“Art. 301. (…)
§ 1º – Falsificar, no todo ou em parte, atestado ou certidão, ou alterar o teor de certidão ou de atestado verdadeiro, para prova de fato ou circunstância que habilite alguém a obter cargo público, isenção de ônus ou de serviço de caráter público, ou qualquer outra vantagem:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
§ 2º – Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se, além da pena privativa de liberdade, a de multa”.
O crime de falsidade ideológica está no Art. 299 do Código Penal, é consiste em :
“Art. 299 – Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa, se o documento é particular”.
Em tal crime de falsidade ideológica se enquadra, também, o empregador que apresenta relatórios de ponto eletrônico adulterados. Mais especificamente, o relatório de ponto é equiparável a documento público e, portanto, tal empregador também incide nas hipóteses do Art. 297 do Código Penal, ou seja, no crime de falsidade documental ou falsificação de documento público[44]. Este tipo de crime contra a fé pública, previsto no Título X do Código Penal, é caracterizado no Art. 297, com a redação que lhe deu a Lei nº 9.983/2000:
“Art. 297 – Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro: (…)
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
§ 3º Nas mesmas penas incorre quem insere ou faz inserir:
I – na folha de pagamento ou em documento de informações que seja destinado a fazer prova perante a previdência social, pessoa que não possua a qualidade de segurado obrigatório;
II – na Carteira de Trabalho e Previdência Social do empregado ou em documento que deva produzir efeito perante a previdência social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter sido escrita;
III – em documento contábil ou em qualquer outro documento relacionado com as obrigações da empresa perante a previdência social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter constado.
§ 4º Nas mesmas penas incorre quem omite, nos documentos mencionados no § 3º, nome do segurado e seus dados pessoais, a remuneração, a vigência do contrato de trabalho ou de prestação de serviços”.
Além dos crimes relativos à falsificação documento, há também o crime de sonegação fiscal por falsa declaração, já que a conduta do empregador lesa também o patrimônio público. O crime de falsa declaração está previsto no Art. 1º da Lei nº 4.729/65, que define os crimes de sonegação fiscal. Como o registro de ponto é o documento-base para cálculo do salário do trabalhador e, assim, das contribuições previdenciárias e fiscais, ele se constitui em documento fiscal, sendo declarações falsas a respeito do valor a ser recolhido à Previdência Social e ao Fisco enquadráveis criminalmente no inciso primeiro:
“Art 1º Constitui crime de sonegação fiscal:
I – prestar declaração falsa ou omitir, total ou parcialmente, informação que deva ser produzida a agentes das pessoas jurídicas de direito público interno, com a intenção de eximir-se, total ou parcialmente, do pagamento de tributos, taxas e quaisquer adicionais devidos por lei;
Pena: Detenção, de seis meses a dois anos, e multa de duas a cinco vezes o valor do tributo.”
Pode-se caracterizar também o crime de apropriação indébita[45], tipo-penal assimilável ao crime de retenção dolosa de salários previsto no Art. 7º, X da Constituição Federal. Diz o Art. 168 do Código Penal:
“Art. 168 – Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”.
Por fim, há de ser lembrada, ainda que muito pouco aplicada em nosso país, a normatividade relativa aos crimes contra a organização do trabalho, mais especificamente o Art. 203 do Código Penal, que diz respeito à frustração de direito assegurado pela legislação trabalhista:
“Art. 203 – Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho:
Pena – detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência.”
Controle exercido pelo próprio empregado.
Uma das intenções mais fortes da Portaria é resgatar a natureza bilateral das marcações de ponto. Assim, ela exige que todo equipamento tenha um mostrador de horário e, a cada entrada ou saída, seja fornecido ao trabalhador um “Comprovante de Registro de Ponto do Trabalhador”[46], registrando a operação feita, sua data e sua hora. O comprovante deve ser fornecido por impressora integrada ao REP em um formato padronizado.
O comprovante impresso é crucial para o êxito do projeto moralizador contido na Portaria do M.T.E.[47] Será, por certo, através do controle exercido pelos maiores interessados (os próprios trabalhadores) que as normas contidas na Portaria “sairão do papel” e chegarão à vida real. Aliás, foi justamente pelo caminho da pressão social exercida pelos sindicatos, pelas denúncias dos trabalhadores aos órgãos de fiscalização e pelas reclamatórias trabalhistas que se chegou ao conhecimento das fraudes largamente praticadas nos registros de ponto eletrônico, o que levou à edição da Portaria nº 1510. Tendo em mão os “comprovantes de registro de ponto”, os empregados terão uma prova concreta que poderá ser contrastada com eventuais relatórios de ponto falsos que algum empresário menos esperto e demasiado inescrupuloso insistir em apresentar à Fiscalização Trabalhista, ao Ministério Público do Trabalho ou à Justiça do Trabalho.
Por certo, seria altamente conveniente que tais comprovantes tivessem “certificação digital”, como se chegou a sugerir em trabalho anterior[48]. Tal certificação não seria dispendiosa, nem teria grandes complexidades técnicas. Ela é usada corriqueiramente, por exemplo, nos sistemas de auto-atendimento bancário via Internet. O procedimento é mostrado, de forma bastante simplificada, na figura a seguir.
A descrição do processo matemático envolvido é por demais extensa para ser incluída neste artigo. Partindo da noção básica de que todas as informações são armazenadas nos computadores na forma de números, entretanto, podemos resumir tal processo da seguinte forma:
1. Um programa gerador cria duas “chaves”, que não passam de números muito grandes que mantêm entre si uma propriedade especial: um conjunto de dados encriptado com uma das chaves só pode ser decriptado com a outra chave e vice-versa. Uma dessas chaves é mantida privada enquanto a outra é divulgada para quem a quiser.
2. Um programa assinador calcula um somatório dos valores numéricos contidos em um documento (chamado de hash) e o encripta usando a chave privada, gerando uma assinatura digital.
3. A assinatura é anexada ao documento original, gerando um documento assinado. Este pode então ser armazenado ou enviado para alguém (via correio eletrônico, por exemplo).
4. Para verificar a autenticidade do documento assinado um programa verificador recalcula o hash do documento (sem a assinatura); depois ele decripta a assinatura digital usando a chave pública. Se os dois valores calculados forem idênticos conclui-se que o documento realmente provém do proprietário das chaves.
Com vistas a prevenir responsabilização indevida pela insegurança contida em softwares de terceiros, os fabricantes de REP deveriam atentar para a alta conveniência de dotar os comprovantes de registro de ponto de certificação digital, o que poderia provar decisivamente que eventuais fraudes não decorreram do equipamento (REP). Uma maneira de fazer isto seria construir um REP conforme o diagrama mostrado na figura a seguir.
Neste equipamento haveria um Módulo de Criptografia (MC) responsável por assinar digitalmente os relatórios produzidos, de modo a garantir a autenticidade dos mesmos. O equipamento funcionaria da seguinte maneira:
1. No momento da instalação o Gerador de Chaves cria um par de chaves. A chave pública é guardada em uma memória flash do MC e a chave pública é exportada (gravando-a em um pen-drive USB, por exemplo). Esse procedimento é executado uma única vez.
2. Cópias da chave pública são fornecidas à fiscalização do MTE e aos programas que processam os relatórios do REP, para que estes se certifiquem da origem dos dados.
3. As marcações são obtidas por um Leitor de Cartão (ou de impressões digitais, caso se use identificação biométrica). A identificação do empregado e a operação (de entrada ou saída) são fornecidas ao Programa Inclusor, que anexa a elas a data e a hora, obtidas de um relógio de precisão, e apenda o registro ao Acumulador de Leituras (AL).
4. O Gerador de Relatório lê os registros do AL e cria um relatório. Este documento é entregue a um Programa Assinador, que calcula devolve a Assinatura Digital correspondente. O relatório assinado é então exportado pelo REP (transmitido via rede ou salvo em um pen-drive, por exemplo).
5. A autenticidade de cada relatório pode ser verificada por um Programa Verificador externo, bastando que lhe sejam fornecidos o documento assinado e a chave pública.
A chave privada do REP nunca deve exportada. Isto, além de perigoso, é desnecessário pois os dados do AL já são exportados como relatórios assinados, que servem como cópias de segurança. A autenticidade destes relatórios pode ser facilmente verificada com a chave pública, da qual podem existir tantas cópias quanto se queira. A única precaução a tomar é gerar esses relatórios com freqüência (diariamente, pelo menos) para evitar perdas caso o REP sofra uma pane e deixe de funcionar.
Deve-se ressaltar, por fim, que a assinatura digital dos relatórios garante que eles correspondem aos dados originais, mas não que tais dados sejam verdadeiros. Por isto é necessário o comprovante impresso, que deixa em poder do empregado um registro que pode ser confrontado com o conteúdo dos relatórios.
Com vistas a prevenir responsabilização indevida pela insegurança contida em softwares de terceiro, os fabricantes de REP deveriam atentar para a alta conveniência de dotar os comprovantes de registro de ponto de certificação digital, o que poderia se constituir em uma prova decisiva de que eventuais fraudes não decorreram do equipamento (REP).
Além do mais, a certificação digital poderia ser também um elemento de segurança para o próprio empregador, já que, nesse caso, somente os comprovantes de registro de ponto certificados digitalmente pelo REP seriam aceitos como prova.
Efeitos imediatos da Portaria (a título de Conclusões)
A Portaria entrou em vigor imediatamente, exceto no que se refere à utilização obrigatória do REP e à exigência de apresentação padronizada dos relatórios dos programas de tratamento de dados, que serão obrigatórias a partir de 21 de agosto de 2010, um ano depois da edição da Portaria.
Assim, ainda que os equipamentos tenham ainda tal prazo para sua substituição, os programas de tratamento de dados, se não adequados aos termos da Portaria – exceto no que concerne à formatação dos relatórios – são, desde já, inservíveis para os fins de confeccionar relatórios aptos a servirem de prova dos horários de trabalho dos empregados. No que tange ao “Atestado Técnico e Termo de Responsabilidade” dos programas, a Portaria vigora plenamente. Ou seja, desde já, cabe ao Auditor-Fiscal do Trabalho exigir do empregador que apresente “Atestado Técnico e Termo de Responsabilidade”, assinados pelo responsável técnico e o responsável legal do fabricante do software, de que o programa segue as especificações do Art. 18 da Portaria.
Daí resulta que a esmagadora maioria dos programas atuais de tratamento de dados está em desacordo com a Portaria e devem ser imediatamente atualizados.
No que tange ao processo do trabalho, ainda que a Portaria não diga – e nem seria necessário dizer – que todos os softwares que descumprem o Art. 18 da Portaria e, portanto, permitem adulteração do ponto eletrônico, não são idôneos para produzir relatórios que sirvam de prova pré-constituída (Art. 74 parágrafo 2º da CLT), esse é o entendimento a que se chegou na jurisprudência, mesmo antes da edição da Portaria 1.510/09: no caso, a aplicação do entendimento contido na Súmula nº 338, III do TST, invertendo-se o ônus da prova para o empregador e prevalecendo, se dela não se desincumbir, o horário declinado na inicial.[49]
Por, diga-se que a edição da Portaria deve ser efusivamente saudada, como um significativo avanço para o equilíbrio das relações contratuais do trabalho. Por fim, criam-se efetivas condições para que as autoridades administrativas e judiciárias possam coibir os abusos até aqui praticados.
Engenheiro e Mestre em Ciência da Computação
Desembargador do Trabalho do TRT 4ª. Região
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