Resumo: Este artigo faz um breve apanhado sobre o novel instituto conhecido como “pejotização”, em que é substituído o clássico contrato de trabalho por um contrato de prestação de serviços, estimulando-se o trabalhador a constituir uma pessoa jurídica. Assim, buscar-se-á analisar esta prática à luz da legislação atual, de forma a discutir sua legalidade e saber como os tribunais vêm tratando o tema.
Palavras-chave: pejotização, pessoa jurídica, prestação de serviços, trabalhador
Sumário: 1. Introdução, 2. Descaracterizando a “pejotização”: nulidade do contrato de prestação de serviços e reconhecimento do vínculo de emprego, 2.1. Requisitos da relação de trabalho, 2.2. Primazia da realidade: a pejotização como verdadeira relação de trabalho, 3. Conclusão. Referências.
1. Introdução
Neste breve artigo, demonstrar-se-á a ilegalidade da medida adotada por empregadores ao contratar trabalhadores sob a forma de pessoa jurídica de forma a tentar burlar a legislação trabalhista a fim de reduzir custos.
Esse tipo de conduta tem se espalhado pelo país e consiste em coagir o empregado a constituir uma pessoa jurídica – fenômeno conhecido como “pejotização”, transformando a relação de emprego num contrato de prestação de serviços, eximindo-se, deste modo, o empregador de suas obrigações legais, tais como o recolhimento do INSS, depósito do FGTS, seguro-desemprego etc.
O referido modelo de contratação ganhou novo fôlego a partir da publicação da Lei nº. 11.196/2005 que prevê em seu art. 129:
“Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.”
Percebe-se que este dispositivo incluiu mecanismo que sujeita a prestação de serviços, inclusive de natureza científica, além da artística e cultural, à legislação das pessoas jurídicas.
No Estado do Mato Grosso, p. ex., o Ministério Público do Trabalho (MPT) anunciou[1] que iria investigar a contratação de médicos pelo Instituto Pernambucano de Assistência e Saúde (IPAS), Organização Social que administra o Hospital Metropolitano no município de Várzea Grande (PE).
Importante destacar que não se trata de entender como ilegal toda e qualquer contratação de pessoa jurídica. Em princípio, não há qualquer irregularidade em contratar uma pessoa jurídica para prestar serviços. Contudo, quando esta prática é utilizada com o intuito de ardilosamente fugir das obrigações legais que cabem ao empregador, de forma a não garantir os direitos do empregado, torna-se flagrante a ilicitude do ato. E é dessa “pejotização” que se cuida aqui.
Assim, passa-se a analisar os requisitos para a configuração da relação de trabalho e que são fundamentos para a descaracterização do contrato de prestação de serviços por pessoa jurídica.
2. Descaracterizando a “pejotização”: nulidade do contrato de prestação de serviços e reconhecimento do vínculo de emprego.
Como visto anteriormente, a “pejotização” pode ser definida como um mecanismo que procura burlar a legislação trabalhista. Assim, o empregador exige do empregado que este crie uma personalidade jurídica. Então, é realizado um contrato de prestação de serviços entre a pessoa jurídica formada pelo “empregado” e a empresa.
Destarte, enquanto o empregador obtém muitas vantagens, ficando numa situação bastante cômoda (diminui gastos com as garantias do trabalhador, como FGTS recolhimento do INSS, férias, 13º salário, aviso prévio etc.), o empregado fica completamente desamparado, numa situação aviltante, já que a qualquer momento pode ser demitido, não tem garantias contra acidentes de trabalho entre outros.
Com efeito, o fenômeno da “pejotização” degrada o ambiente laboral, sendo elemento de enfraquecimento dos direitos trabalhistas e da dignidade da pessoa humana, garantia constitucional.
Novamente, faz-se pertinente advertir que a contratação de pessoa jurídica para prestar serviços não é intrinsecamente irregular, isto é, por si só ilegal, mas só pode ser considerada “pejotização” se restar configurada como meio de fraude aos direitos do trabalhador.
Nesse sentido, leciona Maurício Godinho Delgado[2]:
“Obviamente que a realidade concreta pode evidenciar a utilização simulatória da roupagem da pessoa jurídica para encobrir prestação efetiva de serviços por uma específica pessoa física, celebrando-se uma relação jurídica sem a indeterminação de caráter individual que tende a caracterizar a atuação de qualquer pessoa jurídica. Demonstrado, pelo exame concreto da situação examinada, que o serviço diz respeito apenas e tão somente a uma pessoa física, surge o primeiro elemento fático-jurídico de relação empregatícia”.
Deste modo, há que se avaliar minuciosamente o caso concreto a fim de aferir se, de fato, é possível extrair-se do contexto fático elementos que caracterizem o ímpeto do empregador em eximir-se do cumprimento das normas trabalhistas.
2.1. Requisitos da relação de trabalho
Faz-se importante conhecer os requisitos que configuram a existência da relação de trabalho, quais sejam: onerosidade, não eventualidade, subordinação e pessoalidade, nos termos do art. 3º, caput, da CLT:
“Art. 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.”
O primeiro requisito indicado é a pessoalidade. Esse elemento é composto por dois sentidos[3] que se relacionam. Para haver a pessoalidade, é necessário que o trabalho seja prestado por pessoa natural; e que seja exercido intuito personae, isto é, pela mesma pessoa, não havendo substituição por outra na realização da atividade laboral.
Destarte, ensina DELGADO[4]:
“É essencial à configuração da relação de emprego que a prestação do trabalho pela pessoa natural, tenha efetivo caráter de infungibilidade no que tange ao trabalhador. A relação jurídica pactuada – ou efetivamente cumprida – deve ser, desse modo, intuito personae, com respeito ao prestador de serviços, que não poderá, assim, fazer-se substituir intermitentemente por outro trabalhador ao longo da concretização dos serviços pactuados”.
Em relação à não eventualidade, significa dizer que a relação de trabalho deve ter um caráter perene, ou seja, permanente. Ainda, pode-se falar que a não eventualidade se relaciona com a ideia de certeza, no sentido de que o trabalho não depende de condição ou motivo fortuito, consoante esclarece DELGADO[5]:
“Nesse sentido, para que haja relação empregatícia é necessário que o trabalho prestado tenha caráter de permanência (ainda que por um curto período determinado), não se qualificando como trabalho esporádico. A continuidade da prestação (antítese da eventualidade) é, inclusive, expressão acolhida pela Lei n. 5.859/72 (Lei do Trabalho Doméstico) que se refere a ‘serviços de natureza contínua’”.
A terceira característica da relação de trabalho é a onerosidade que é referente à contraprestação salarial, isto é, à remuneração devida pelo empregador ao empregado graças ao contrato celebrado e ao trabalho realizado.
Dessa forma, para DELGADO[6]:
“(…) ao valor econômico da força de trabalho colocada à disposição do empregador deve corresponder uma contrapartida econômica em benefício obreiro, consubstanciada no conjunto salarial, isto é, o complexo de verbas contraprestativas pagas pelo empregador ao empregado em virtude da relação empregatícia pactuada. O contrato de trabalho é, desse modo, um contrato bilateral, sinalagmático e oneroso, por envolver um conjunto diferenciado de prestações e contraprestações recíprocas entre as partes economicamente mensuráveis”.
Por fim, o último item caracterizador da relação trabalhista é a subordinação, considerada por grande parte da doutrina[7] como a principal qualidade distintiva desta relação.
A subordinação guarda estreita ligação com os poderes do empregador (de direção, organização, controle e disciplinar), podendo-se inclusive dizer que é decorrente daqueles. Em suma, a subordinação é a sujeição do trabalhador ao comando do empregador (que não é absoluto, mas sofre restrições legais) relativo ao modo de realização das tarefas.
DELGADO[8] define como a:
“(…) situação jurídica derivada do contrato de trabalho, pela qual o empregado compromete-se a acolher o poder de direção empresarial no modo de realização da sua prestação de serviços”.
Assim, descortinados os elementos caracterizadores da relação de trabalho, passa-se à análise da desconstituição da “pejotização”, atentando-se para os mecanismos que permitem descaracterizar o contrato de prestação de serviços de pessoa jurídica fraudulento que na verdade é típica relação de trabalho.
2.2. Primazia da realidade: a “pejotização” como verdadeira relação de trabalho.
Como visto anteriormente, a “pejotização” é um fenômeno segundo o qual o empregador utiliza-se de contrato de prestação de serviços de pessoa jurídica para fraudar a lei trabalhista. Esta situação impede que o trabalhador tenha acesso a direitos fundamentais e ataca frontalmente os valores constitucionais e a dignidade que deve nortear o trabalho.
No entanto, tal modelo de degradação do trabalho não pode prosperar, sob pena de se compactuar com o descumprimento da lei e dos princípios que permeiam a relação social entre empregador e empregado.
Assim, foram desenvolvidos mecanismos de avaliação que permitem analisar a situação fática e investigar se o contrato de prestação de serviços é regular, ou se, na verdade, trata-se da famigerada “pejotização”.
Quando confrontados com uma reclamação trabalhista que pede o reconhecimento do vínculo empregatício, o empregador, em geral, defende que a relação existente é apenas de prestação de serviços, sendo então apresentado o contrato como prova do alegado.
Contudo, é possível se descaracterizar o contrato se restar comprovado que, na prática, a relação era permeada por verdadeiro pacto trabalhista, com o cumprimento dos requisitos formulados no tópico anterior.
Assim prescreve DELGADO[9]:
“Desse modo o conteúdo do contrato não se circunscreve ao transposto no correspondente instrumento escrito, incorporando amplamente todos os matizes lançados pelo cotidiano da prestação de serviços. O princípio do contrato realidade autoriza, assim, por exemplo, a descaracterização de uma pactuada relação civil de prestação de serviços, desde que no cumprimento do contrato despontem, concretamente, todos os elementos fático-jurídicos da relação de emprego (trabalho por pessoa física, com pessoalidade, não-eventualidade, onerosidade, e sob subordinação”(grifos nossos).
Destarte, esta norma leva à preponderância da realidade prática, do que de fato acontece, sobre a formalidade do contrato celebrado, protegendo o trabalhador contra ataques a seus direitos.
Nesse sentido, a CLT dispõe em seu art. 9º:
“Art. 9º – Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.”
Significa dizer, então, que, existentes os requisitos essenciais caracterizadores da relação trabalhista (pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação), pouco importa o que prevê o contrato, podendo ser desconfigurada a relação civil e reconhecido o vínculo empregatício.
É como vêm decidindo os Tribunais trabalhistas, senão vejamos:
“RELAÇÃO DE EMPREGO. CONFIGURAÇÃO. FENÔMENO DA PEJOTIZAÇÃO. 1. Os fatos narrados nos autos correspondem ao fenômeno da pejotização que, segundo a melhor doutrina, consiste na utilização da figura da contratação de pessoa jurídica para burlar a legislação trabalhista e evitar pagar aos trabalhadores as verbas a que eles têm direito como empregados celetistas. Esta prática ilegal e ilícita que pode diminuir um empregado, individualizando-o, no intuito de não estabelecer uma situação legal entre empregador/empregado camufla o princípio da dignidade humana e os direitos fundamentais expressos na nossa Constituição Federal.
2. Comprovado o trabalho nos moldes do artigo 3º da CLT, há que ser mantida a sentença que reconheceu a existência do vínculo de emprego e as parcelas daí decorrentes” (Acórdão nº. RO-0000811-18.2011.5.08.000. TRT 8ª Região. Terceira Turma. Relatora: Des. Francisca Oliveira Formigosa. 09.11.2011).
“RECURSO ORDINÁRIO. VÍNCULO. PEJOTIZAÇÃO. PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE. A exigência de prestação de serviços permanentes pelo trabalhador, com pessoalidade, descaracteriza a pretensa relação comercial entre duas empresas. Demonstrando-se que só o obreiro era aceito para a realização do trabalho, irrelevante que exista pessoa jurídica constituída, pagamento mediante entrega de notas fiscais ou quaisquer outras formalidades dessa espécie. Todos esses elementos considerados criam e evidenciam um vínculo distanciado da simples prestação de serviços (trabalho autônomo) propalada pela demandada. Na verdade, apesar do conteúdo desforme, em face da própria especificidade do trabalho, a subordinação jurídica aqui é palpável, especialmente em se considerando a exigência de controle de jornada e submissão direta a ordens, informação dada em depoimento pessoal pelo autor e não contestada pela demandada, bem como fornecimento, pela ré, de condições essenciais para o desenvolvimento do trabalho (…)”. (Acórdão nº.: RO 1506006820095070011. TRT 7ª Região. Primeira Turma. Relatora: Des. Rosa de Lourdes Azevedo Bringel. 23.02.2012)
E mais recentemente o Tribunal Superior do Trabalho:
“RECURSO DE REVISTA. CONTRATAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. ÁREA DE INFORMÁTICA. CONSTITUIÇÃO DE PESSOA JURÍDICA. NULIDADE. CARACTERIZAÇÃO DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO. A constituição de pessoa jurídica pelo reclamante não tem o condão de, por si só, afastar a caracterização da relação de emprego, uma vez presentes os pressupostos contidos no art. 3º da CLT. Por essa razão, cabível, em tal hipótese, à luz do princípio da primazia da realidade, a nulidade do contrato de prestação de serviços (art. 9º da CLT) e, por conseguinte, o reconhecimento do vínculo de emprego com o suposto tomador dos serviços. Não configurada violação dos arts. 110, 113 e 114 do Código Civil Brasileiro. Precedentes”(Acórdão nº. TST-RR-650-80.2010.5.03.0004. Primeira Turma. Relator: Flávio Portinho Sirangelo. 15.02.2012).
A descaracterização vem sendo regra quando, p. ex., torna-se claro a partir dos fatos que o trabalhador que forma a pessoa jurídica para prestar serviços ao empregador é submetido a mecanismos típicos de comando, como controle de ponto, cumprimento de jornada de trabalho, pagamento com caráter salarial, execução de atividade fim da empresa etc. Tais elementos, juntamente com outros, são hábeis a comprovar a ocorrência da “pejotização”.
4. Conclusão
A contratação de pessoas jurídicas para a prestação de serviços pelas empresas é um instrumento importante de dinamização econômica e controle de custos, porém tal eficiência não pode ser buscada a partir do sacrifício de direitos trabalhistas.
O Santo Padre, Papa Leão XIII, descreveu em sua famosa Encíclica Rerum Novarum[10], de 15 de maio de 1891, os deveres de patrões e empregados:
“Entre estes deveres, eis os que dizem respeito ao pobre e ao operário: deve fornecer integral e fielmente todo o trabalho a que se comprometeu por contrato livre e conforme à equidade; não deve lesar o seu patrão, nem nos seus bens, nem na sua pessoa; as suas reivindicações devem ser isentas de violências e nunca revestirem a forma de sedições; deve fugir dos homens perversos que, nos seus discursos artificiosos, lhe sugerem esperanças exageradas e lhe fazem grandes promessas, as quais só conduzem a estéreis pesares e à ruína das fortunas.
Quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do Cristão. O trabalho do corpo, pelo testemunho comum da razão e da filosofia cristã, longe de ser um objecto de vergonha, honra o homem, porque lhe fornece um nobre meio de sustentar a sua vida. O que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços”(grifos nossos).
Nesse sentido, a “pejotização” deve ser encarada como uma deformidade, visto que afronta diretamente os direitos trabalhistas, princípios e garantias constitucionais e a dignidade humana do empregado, causando verdadeiro enriquecimento ilícito do empregador, visto que reduz custos e aumenta seu faturamento utilizando-se da degradação das condições de trabalho.
Assim, importante notar que o direito e a Justiça vêm dando uma resposta satisfatória, combatendo essa malfadada estratégia e contribuindo para a defesa dos direitos trabalhistas.
Advogado bacharelado em Direito pela UFPA
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