Pensão civil das filhas solteiras (Lei nº 3.373/58) e o entendimento do Tribunal de Contas da União – necessidade de respeito ao ato jurídico perfeito e ao princípio da confiança

Resumo: A Lei nº 3.373/1958 c/c a Lei nº 6.782/1980 estabelece que, ocorrendo o óbito de servidor público, suas filhas solteiras e maiores de 21 anos teriam direito ao recebimento de pensão. No âmbito da União, inúmeras pensões foram constituídas com fundamento nessa legislação. Segundo a referida lei, a filha perderia sua condição de pensionista se deixasse de ser solteira ou se viesse a ser “ocupante de cargo público permanente”. Todavia, o Tribunal de Contas da União – TCU, por meio dos Acórdãos nº 892/2012 e 2780/2016 – TCU – Plenário, estabeleceu critérios para fiscalização e manutenção do benefício pensional e asseverou que filha maior de 21 anos solteira, para fazer jus à pensão da referida lei, deverá comprovar dependência econômica em relação ao instituidor da pensão tanto na concessão da pensão civil quanto na sua manutenção e beneficiárias que tiverem recebimento de renda própria, perdem o direito à pensão. Ocorre que a aplicação dos referidos Acórdãos deve observar princípios constitucionais que regem a relação entre o Poder Público e os cidadãos, quais sejam, princípio do direito adquirido, do ato jurídico perfeito, da segurança jurídica, da proporcionalidade e razoabilidade, da boa-fé e da confiança legítima.

Palavras-chave: Pensão. Filhas. Tribunal de Contas da União. Segurança. Irretroatividade

Sumário: Introdução. 1. Direito Adquirido e a Impossibilidade de Aplicação Retroativa de Jurisprudência Restritiva do TCU – Acórdãos 892/2012 E 2780/2016 – TCU – Plenário. 2. Da Necessidade de Preservação da Confiança e da Boa-fé nas Relações entre o Poder Público e os Particulares. Conclusão. Referências Bibliográficas.

Introdução

No âmbito da União há milhares de pensionistas civis com fundamento na Lei nº 3.373/1958 c/c a Lei nº 6.782/1980, segundo a qual as filhas de servidores públicos teriam direito a recebimento de pensão desde que na data do óbito do seu genitor ou genitora fossem solteiras e maiores de 21 anos.

Segundo a referida lei a filha solteira perderia sua condição de pensionista se deixasse de ser solteira ou se viesse a ser “ocupante de cargo público permanente”. Portanto, a manutenção da pensão temporária da filha solteira depende da permanência de sua condição de solteira e da permanência de sua condição de não ser “ocupante de cargo público permanente.

Ocorre que o Tribunal de Contas da União – TCU, por meio do Acórdão nº 892/2012 – TCU – Plenário, entendeu que a filha maior de 21 anos solteira, para fazer jus à pensão da referida lei, deverá comprovar dependência econômica em relação ao instituidor da pensão tanto na concessão da pensão civil quanto na sua manutenção, pois, segundo o TCU, uma eventual perda dessa dependência poderá ensejar a extinção do benefício.

Posteriormente, o Acórdão 2780/2016 – TCU – Plenário, restringindo ainda mais a interpretação do TCU acerca da Lei nº 3.373/58, asseverou que perdem o direito à pensão as beneficiárias que tiverem recebimento de renda própria, advinda de relação de emprego, na iniciativa privada, de atividade empresarial, na condição de sócias ou representantes de pessoas jurídicas ou de benefício do INSS, recebimento de pensão, titularidade de cargo público efetivo federal, estadual, distrital ou municipal ou de aposentadoria pelo Regime do Plano de Seguridade Social do Servidor Público, ocupação de cargo em comissão, de emprego em sociedade de economia mista ou em empresa pública federal, estadual, distrital ou municipal.

No entanto, a aplicação dos Acórdãos nºs 892/2012 e 2780/2016 ambos do Plenário do TCU, devem ser aplicados respeitando-se os princípios constitucionais do direito adquirido, do ato jurídico perfeito, da segurança jurídica, da proporcionalidade e razoabilidade, da boa-fé e da confiança legítima, que devem reger as relações entre Poder Público e os cidadãos.

1 Direito Adquirido e a Impossibilidade de Aplicação Retroativa de Jurisprudência Restritiva do TCU – Acórdãos 892/2012 E 2780/2016 – TCU – Plenário

Conforme o parágrafo único do art. 5º da Lei nº 3.373/1958 a perda da condição de beneficiária da pensão civil, sendo filha solteira e maior de vinte e um anos, só ocorrerá no caso de ocupação de cargo público permanente. Vejamos:

“LEI Nº 3.373, DE 12 DE MARÇO DE 1958

Art. 5º Para os efeitos do artigo anterior, considera-se família do segurado: (…)

II – Para a percepção de pensões temporárias:

a) o filho de qualquer condição, ou enteado, até a idade de 21 (vinte e um) anos, ou, se inválido, enquanto durar a invalidez; (…)

Parágrafo único. A filha solteira, maior de 21 (vinte e um) anos, só perderá a pensão temporária quando ocupante de cargo público permanente.” (Grifou-se)

Dessa forma, não resta dúvida de que os acórdãos do Tribunal de Contas da União estão inovando no ordenamento jurídico, criando restrição não prevista na legislação de regência, qual seja: a Lei nº 3.373/58.

 Além disso, está consolidado o entendimento no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o direito à pensão regula-se pela norma vigente ao tempo do óbito do instituidor (ARE 644801 AgR, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Primeira Turma do STF, julgado em 24/11/2015, Dje 07/12/2015; AgRg no AREsp 67.283/CE, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma do STJ, julgado em 20/03/2012, DJe 28/03/2012).

As únicas exigências que se depreendem da leitura do dispositivo são a manutenção da condição de solteira e a não ocupação de cargo público permanente. Esse, inclusive, é o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, a seguir destacado:

“RECURSO ESPECIAL Nº 1.584.572 – RN (2016/0050059-0)

DECISÃO (…)

No caso em comento, o Tribunal de origem entendeu que a ora recorrida não aufere renda que lhe assegure uma vida digna, nunca assumiu um cargo público, tampouco contraiu matrimônio e não considerou a dependência econômica como um requisito para o deferimento da referida benesse. No ponto (e-STJ, fls. 245/246): '(…)

11. Além disso, não há nos autos nenhum documento que indique que a impetrante ocupa cargo público permanente. Ao contrário, a declaração de ID. 4058400.878592, pág. 8, informa que a Sra. Cristina de Freitas Barreto manteve, junto à UFRN, apenas vínculo temporário e não efetivo. (…)

14. Inexistindo outros requisitos legais à concessão/manutenção do benefício, como a "dependência econômica em relação ao instituidor", outra medida não há que ser tomada a não ser a do acolhimento da pretensão formulada na inicial, já que a pensão foi concedida em conformidade com a Lei 3.373/58, não podendo o Acórdão Nº 892/2012/TCU/Plenário incluir novo requisito a um ato já consumado de acordo com a lei vigente ao seu tempo.'

Entendimento que se coaduna com a jurisprudência desta Corte, segundo a qual, "[…] com base numa interpretação teleológica protetiva do parágrafo único do art. 5º da Lei 3.373/1958, reconhece à filha maior solteira não ocupante de cargo público permanente, no momento do óbito, a condição de beneficiária da pensão por morte temporária" (EDcl no AREsp 784.422/RJ, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 4/2/2016). (…)” (Ministra DIVA MALERBI (DESEMBARGADORA CONVOCADA TRF 3ª REGIÃO), 17/03/2016) (Grifou-se)

“RECURSO ESPECIAL Nº 1.571.799 – AL (2015/0308044-9) DECISÃO

Desse modo, tratando-se de óbito anterior à edição da Lei 8.112/1990, como no casu, a jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de reconhecer à filha maior e solteira o direito à pensão temporária prevista na Lei 3.376/1958 desde que não ocupe de cargo público permanente ou, na hipótese de ocupar cargo público, então que renuncie aos vencimentos do cargo, pois vedada a cumulação da pensão temporária com os vencimentos do cargo público, sendo que a comprovação da dependência econômica em relação ao instituidor do benefício ao tempo do seu falecimento só é exigida da filha divorciada, separada ou desquitada.” (Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, 16/02/2016)

No mesmo sentido vem decidindo os Tribunais Regionais Federais:

“ADMINISTRATIVO. PENSÃO. LEI 3.373/53. LEGISLAÇÃO DE REGÊNCIA. ÓBITO DO INSTITUIDOR. FILHA SOLTEIRA, MAIOR DE 21 ANOS E NÃO DETENTORA DE CARGO PÚBLICO. DIREITO ASSEGURADO. RECURSO DA UNIÃO FEDERAL E REMESSA DESPROVIDOS.

-Cinge-se a controvérsia ao direito de a Administração cancelar ou suspender o pagamento de benefício recebido ao longo de 52 anos, proveniente do óbito de seu pai, ex-Promotor Público.

-Encontra-se consolidado na jurisprudência o entendimento segundo o qual a concessão do benefício de pensão por morte rege-se pela legislação vigente à época do óbito do instituidor do benefício. Na espécie, o falecimento do servidor público deu-se em 29.04.1959, na época em que estava em vigor a Lei 3.373, de 12 de março de 1958, que dispõe sobre o Plano de Assistência ao Funcionário e sua Família.

-Com efeito, segundo se depreende da leitura do parágrafo único do artigo 5º, da lei supra, tem direito à pensão temporária a filha solteira, maior de 21 (vinte e um) anos, que não seja ocupante de cargo público permanente.

-Assim, a legislação regente admitia o deferimento de pensão temporária à filha maior, desde que solteira e não ocupante de cargo público permanente, como no caso, verificando-se, dos elementos carreados aos autos, que a impetrante, à época da concessão do benefício, em 01.05.1959, preenchia os requisitos legais, tendo sido mantidos-os até o momento.

-Como bem realçou o Ilustre Representante do Parquet Federal, em primeira instância, (…) No caso em tela, houve uma mudança radical, irrazoável e drasticamente tardia no entendimento da referida norma pela Administração Pública, uma vez que o fundamento para a concessão destes benefícios era antes baseado, naturalmente, na inequívoca aplicação da Súmula 232 do Extinto Tribunal Federal de Recursos, litteris: “A PENSÃO DO ART. 5, PARÁG. ÚNICO, DA LEI N. 3373, DE 58, AMPARA COM EXCLUSIVIDADE AS FILHAS DE FUNCIONÁRIO PÚBLICO FEDERAL”. Restou evidenciado, assim, o abuso de direito no ato revisório da concessão deste benefício, uma vez que se trata de prestação alimentar legalmente adquirido pela parte impetrante há mais de cinquenta anos, motivada pelo óbito do instituidor desta pensão e pelo natural preenchimento das condições legais então exigidas na época da sua implementação.

-Desta forma, não há falar em cancelamento ou suspensão do benefício recebido pela impetrante.

-Recurso da União Federal e remessa desprovidos.” (TRF-2 – APELREEX: 201151010063828 RJ 2011.51.01.006382-8, Relator: Desembargadora Federal VERA LUCIA LIMA, Data de Julgamento: 15/08/2012, OITAVA TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação: E-DJF2R – Data::28/08/2012 – Página::265/266)

Deste modo, a intepretação do TCU aplicada pelos Acórdãos 892/2012 e 2780/2016 é extremamente restritiva e não pode ser aplicada para restringir direitos assegurados por lei.

Vale ressaltar, por oportuno, que constitui regra de hermenêutica a assertiva de que ao intérprete não cabe distinguir quando a norma não distingue, sendo inconcebível interpretação restritiva, assim como o estabelecimento de óbices não-expressamente previstos na lei. Nesse sentido, vem entendendo o Superior Tribunal de Justiça – STJ:

“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ARTS. 480, 481 E 482 DO CPC. CLÁUSULA DE RESERVA DE PLENÁRIO. PREQUESTIONAMENTO.AUSÊNCIA. QUESTÃO SURGIDA NO ACÓRDÃO RECORRIDO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. SÚMULAS 282/STF E 356/STF. TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE PASSAGEIROS. ALTERAÇÃO DE ITINERÁRIO. AUTORIZAÇÃO. ART. 94 DO DECRETO N.º 952/93. PRORROGAÇÃO. (…)

4. O art. 94 do Decreto n.º 952/93, que prorrogou, por quinze anos e sem regime de exclusividade, as "permissões e autorizações decorrentes de disposições legais e regulamentares anteriores", não ressalvou ou excepcionou qualquer situação, sendo vedada a interpretação restritiva. É princípio de hermenêutica que não pode o intérprete restringir onde a lei não restringe ou excepcionar quando a lei não excepciona, sob pena de violar o dogma da separação dos Poderes.

5. Recurso especial conhecido em parte e provido.” (REsp 663.562/RJ, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/06/2005, DJ 05/09/2005, p. 367)

“SERVIDOR PÚBLICO. PROVENTOS. CÁLCULO. LEI 8.112/90 ART. 192, II.REMUNERAÇÃO E NÃO VENCIMENTO.

1. Não é dado ao intérprete distinguir onde não o fez a norma legal, por isso que quando o Art. 192, II, da Lei 8.112/90 utiliza o termo remuneração não pode o intérprete, restritivamente, ler vencimento.

2. Recurso conhecido e provido.” (REsp 222.043/RS, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 08/02/2000, DJ 08/03/2000, p. 144)

“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PRESCRIÇÃO. TRATO SUCESSIVO. APLICAÇÃO DA SÚMULA 85/STJ. GRATIFICAÇÃO. DECRETO-LEI Nº 2.365/87. AUTARQUIAS FEDERAIS. NÃO EXCLUSÃO. RECURSO DESPROVIDO. (…)

II – Segundo o princípio de hermenêutica jurídica, não pode o intérprete criar ressalvas onde a lei não o faz, uma vez que as exceções devem ser interpretadas restritivamente.

III – O art. 1º do Decreto-Lei nº 2.365/87 é claro ao estabelecer qual extensão da referida gratificação, não havendo qualquer ressalva quanto à natureza das autarquias federais. Logo, se o texto do dispositivo mencionado não excluiu os servidores das autarquias sob regime especial, não há que se fazer interpretação restritiva de modo a não permitir a concessão da gratificação àqueles servidores.

IV – Recurso especial desprovido” (REsp 643.342/PE, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 17/08/2006, DJ 11/09/2006, p. 337)

Assim, a intepretação do TCU não pode retroagir para prejudicar direito adquirido e o ato jurídico perfeito, sob pena de ofensa ao disposto no art. 5º, XXXVI, da CF e o art. 6º do Decreto-Lei 4657/42 – LINDB.

II – Da Necessidade de Preservação da Confiança e da Boa-fé nas Relações entre o Poder Público e os Particulares/Administrados

Está consagrado, há muito tempo, que a segurança – e, no seu âmbito, a segurança jurídica – é um dos fundamentos do Estado e do direito, ao lado da justiça. (Humberto Ávila[1]).

As teorias democráticas acerca da origem e justificação do Estado, de base contratualista, assentam-se sobre uma cláusula comutativa: recebe-se em segurança aquilo que se concede em liberdade. Desde a Revolução Francesa, no art. 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a segurança é um direito natural e imprescritível. Na Constituição Brasileira, foi positivada como um direito individual, ao lado dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade, na dicção expressa do caput do art. 5º.

Assim, o princípio da segurança jurídica está ligado à garantia de que novas obrigações somente podem ser exigidas dos cidadãos após sua prévia e válida introdução na ordem jurídica. Tal entendimento é reforçado pelos princípios da legalidade e irretroatividade, como corolários daquele direito natural. Essas são, de certa forma, garantias formais, já que prescrevem determinada forma de criação de obrigações e proíbem sua exigência em relação a fatos anteriores, tal qual aconteceria se aplicássemos os Acórdãos 892/2012 e 2780/2016 – TCU – Plenário a casos já consolidados.

Ao lado desse aspecto formal, a segurança jurídica assume também uma dimensão material, identificada com a possibilidade que os administrados devem ter de antever razoavelmente as obrigações decorrentes do sistema normativo.

Nesse sentido, as garantias inerentes ao princípio da segurança jurídica não se destinam a proteger os indivíduos apenas contra os enunciados normativos em abstrato, antes de um ato de interpretação e aplicação que defina as normas efetivamente impostas. Destarte, embora incumba à lei inovar na ordem jurídica para criar direitos e obrigações, juízes e tribunais é que vão pronunciar, de modo definitivo, o alcance e o sentido da lei.

Dentro dessa linha, é natural que o princípio da segurança jurídica se dirija também à atividade jurisdicional e também às decisões do Tribunal de Contas da União  e aos tribunais administrativos. Mesmo porque, se a cada momento o judiciário ou o TCU pudessem modificar o seu entendimento sobre a legislação em vigor e atribuísse às novas decisões efeitos retroativos, instalar-se-ia absoluta insegurança jurídica. Nada do que ocorreu no passado poderia ser considerado definitivo pelos administrados ou particulares, já que, a qualquer momento, a questão poderia ser revista por um novo entendimento da instância competente, seja no TCU ou no Judiciário.

Ou seja, se vier a prevalecer a intepretação do TCU aplicada por meio dos Acórdãos 892/2012 e 2780/2016 – TCU – Plenário, aquele Tribunal estará impondo aos seus jurisdicionados obrigação nova, diversa e altamente restritiva, considerando o disposto na Lei nº 3.373/1958.

Não se ignora a possibilidade do TCU ou qualquer tribunal de modificar sua posição acerca de determinada questão, seja para se adaptar a novos fatos, seja simplesmente para rever interpretação anterior. Ao fazê-lo, entretanto, o TCU, a exemplo dos demais Poderes Públicos, está vinculado ao princípio constitucional da segurança jurídica, por força do qual a posição jurídica dos particulares que procederam de acordo com a orientação até então vigente acerca da aplicação da Lei nº 3.373/1958 deve ser preservada.

O art. 2º da Lei nº 9.784/99, consagrou o princípio da segurança jurídica no âmbito do processo administrativo. O inciso III do parágrafo único do referido artigo aduz expressamente que é vedada a aplicação retroativa de nova interpretação jurídica. In verbis:

“Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: (…)

XIII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação”.

Ademais, a Decisão nº 1.020/2000 TCU – Plenário, assevera que a Lei do Processo Administrativo da Administração Pública Federal, Lei nº 9.784/1999 tem aplicação subsidiária naquele Tribunal, quando exerce a sua competência constitucional de controle externo.

Confiança legítima significa que o Poder Público não deve frustrar, deliberadamente, a justa expectativa que tenha criado no administrado ou no jurisdicionado. Ela envolve, portanto, coerência nas decisões, razoabilidade nas mudanças e a não imposição retroativa de ônus imprevistos. A boa-fé traduz-se em uma atitude de lealdade e transparência.

Exemplo de aplicação do princípio da proteção da confiança, refere-se à manutenção de ascensão funcional sem concurso público. O ato de ascensão, aprovado pelo Tribunal de Contas da União há mais de 10 anos estava sendo objeto de revisão pelo próprio TCU.

“EMENTA: SERVIDOR PÚBLICO. Funcionário (s) da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT. Cargo. Ascensão funcional sem concurso público. Anulação pelo Tribunal de Contas da União – TCU. Inadmissibilidade. Ato aprovado pelo TCU há mais de cinco (5) anos. Inobservância do contraditório e da ampla defesa. Consumação, ademais, da decadência administrativa após o quinquênio legal. Ofensa a direito líquido e certo. Cassação dos acórdãos. Segurança concedida para esse fim. Aplicação do art. 5º, inc. LV, da CF, e art. 54 da Lei federal nº 9.784/99. Não pode o Tribunal de Contas da União, sob fundamento ou pretexto algum, anular ascensão funcional de servidor operada e aprovada há mais de 5 (cinco) anos, sobretudo em procedimento que lhe não assegura o contraditório e a ampla defesa”. (MS 26782 / DF. Rel. Min. Cezar Peluso. Julgamento: 17/12/2007. Órgão Julgador: Tribunal Pleno)

Apesar de a decisão fazer referência aos princípios da ampla defesa e do contraditório, há especifico respaldo no princípio da confiança. Trecho do voto esclarece o reconhecimento explícito do princípio da confiança: “Tais ascensões funcionais são, pois, atos perfeitos, que já não podem alcançados pela revisão do Tribunal de Contas… por força da decadência, nem ademais, sem ofensa aos subprincípios da confiança e da segurança jurídicas…”

Finalizando: os Acórdãos 892/2012 e 2780/2016, ambos do Plenário do TCU, uma vez que importam modificação da ordem jurídica material apenas poderá afetar os fatos futuros, não se admitindo que lhe sejam atribuídos efeitos retroativos ou ex tunc.

Conclusão

Dado o exposto, verifica-se que os Acórdãos nº 892/2012 e 2780/2016 do Tribunal de Contas da União estão inovando no ordenamento jurídico ao criar novo impeditivo (necessidade de comprovação de dependência econômica) não previsto na legislação de regência, qual seja: a Lei nº 3.373/58. Trata-se de imposição de obrigação nova, diversa e altamente restritiva aos jurisdicionados e é notória a inadequação de tal conduta, vez que constitui regra de hermenêutica a assertiva de que ao intérprete não cabe distinguir onde a norma não distingue. Desse modo, a dependência econômica com o instituidor da pensão não pode revelar-se critério determinante para a manutenção do pagamento das pensões fundamentadas no artigo 5º da Lei 3.373/58, porquanto a referida legislação não estabelece o aludido requisito. Só existem dois requisitos que a pensionista deverá preencher para concessão ou manutenção do benefício, quais sejam, a condição de solteira e a não ocupação de cargo público. Ademais, na hipótese de ser considerada válida a nova interpretação firmada pelo Tribunal de Contas da União, é certo que essa interpretação não alcançaria pensões recebidas com fundamento no artigo 5º da Lei 3.373/58, pois, nos termos do artigo 2º, inciso XIII, da lei nº 9.784/99, é vedado aplicação retroativa de nova interpretação de normas administrativas. Em razão da necessidade de adaptação a novos fatos ou revisão de anterior interpretação, é plenamente possível que o TCU ou qualquer tribunal modifique sua posição acerca de determinada questão. Entretanto, vincula-se aos princípios constitucionais do direito adquirido, do ato jurídico perfeito, da segurança jurídica, da proporcionalidade e razoabilidade, da boa-fé e da confiança legítima.

 

Referências
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
BARROSO, Luís Roberto. Parecer – Mudança na Jurisprudência do STF. Disponível em< http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp->. Acesso em: 20/02/2017.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 67.283/CE, Relator: Ministro Castro Meira, Segunda Turma do STJ. Diário da justiça eletrônico, 28 março 2012. Data de julgamento: 20 março 2012.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.584.572/RN (2016/0050059-0). Ministra Diva Malerbi (Desembargadora convocada TRF 3ª Região), Pesquisa de Jurisprudência. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Jurisprudência/Pesquisas >.  Acesso em: 20 fev. 2017.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.571.799/ AL (2015/0308044-9). Ministro Mauro Campbell Marques, Pesquisa de Jurisprudência. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Jurisprudência/Pesquisas >.  Acesso em: 20 fev. 2017.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 663.562/RJ. Relator: Ministro Castro Meira, Segunda Turma do STJ. Diário da justiça: 05 set. 2005. Data de julgamento: 07 jun. 2005.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 222.043/RS. Relator: Ministro Edson Vidigal, Quinta Turma do STJ. Diário da justiça: 08 março 2000. Data de julgamento: 08 fev. 2000.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 643.342/PE. Relator: Ministro Gilson Dipp. Quinta Turma do STJ. Diário da justiça: 11 set. 2006. Data de julgamento: 11 ago. 2006.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 644801 AgR, Relator: Ministro Marco Aurélio, Primeira Turma do STF. Diário da justiça eletrônico, 07 dez. 2015. Data de julgamento: 24 nov. 2015.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 26782/DF – Distrito Federal. Relator: Ministro Cezar Peluso. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 17 dez. 2007. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp >. Acesso em: 20 fev. 2017.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 2ª Região. APELREEX: 201151010063828 RJ 2011.51.01.006382-8, Relator: Desembargadora Federal Vera Lucia Lima, Oitava Turma Especializada. Diário da Justiça: 28 ago. 2012. Data de julgamento: 15 ago. 2012.
MAFFINI, Rafael. Princípio da Proteção Substancial da Confiança no Direito Administrativo Brasileiro. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006.
Notas
[1] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

Informações Sobre o Autor

Idenilson Lima da Silva

Advogado em Brasília – DF. Graduado em Direito pelo Instituto de Educação Superior de Brasília (2009) e especialização em Direito, Estado e Constituição pela Universidade Candido Mendes (2013). Ex-Auditor do TCU. Procurador do Distrito Federal da Procuradoria-Geral do Distrito Federal – PGDF


Equipe Âmbito Jurídico

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