Gabriel Lemos Azi – Advogado (2011.OAB/SP nº 351.435). Doutorando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail- gabriel_azi@hotmail.com
Thais Helena Morando – Advogada (1986). Professora de Direito Tributário na Graduação e Pós – Graduação do Mestrado e do Doutorado – linha de Pesquisa Processo Tributário Administrativo e Judicial na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail – thais@formajuridica.com.br
Resumo: O presente artigo abordará o tema do planejamento tributário. Para tanto, será analisado, em conjunto com a doutrina, o voto da ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha, nos autos da ADI nº 2.446. Nele, restou consignado não só o direito do cidadão/contribuinte de organizar sua atividade econômica da forma que leve a uma maior economia tributária. Noutro giro, proibiu que as autoridades fiscais utilizem instrumentos, muitas vezes não previstos em lei, para desconsiderar tais negócios jurídicos ou mesmo, em última instância, interprete o direito tributário sob um viés eminentemente econômico.
Palavras-chave: Constituição Federal. Código Tributário Nacional. Planejamento Tributário. ADI nº 2.446/STF
Abstract: This article wiil addsrees the topic of tax planning. To this end, the vote of Minister Carmen Lúnica Antunes Rocha, in the records of ADI nº 2.446, wiil be analized together whith the doctrine. In it, it was consigned not only the right of the Citizen/taxpauer to organize theis economic activity in way tha leadas to great tax savings. In another turn, it prohibited tax authorities from using instruments, often not provided for by lae, to disregard such legal transactions or even, as a last resort, interpret tax law under na eminently economic bias
Keywords: Federal Constitution. National Tax Code. Tax Planning. ADI nº 2.446/STF.
Sumário: Introdução. 1. O direito ao planejamento tributário 2. Lei complementar nº 104/01 e o parágrafo único do artigo 116 do ctn: norma geral antielisão?. 2.1 a lei complementar nº 104/2001 e o § único do artigo 116 do CTN. 3. Ação direta de inconstitucionalidade 4.226/STF. 5.Conclusão 6. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
O tema do Planejamento Tributário, no Brasil, sempre foi objeto de acaloradas discussões. Isto porque, ante a complexidade do nosso sistema jurídico tributário, em que os entes federados das três esferas possuem competência para expedir normas em matéria de tributação, os contribuintes buscam surfar nesse emaranhado de enunciados prescritivos, galgando quase sempre pagar o mínimo de tributo possível.
O ordenamento jurídico, que tem a Constituição Federal na cúspide da pirâmide normativa, Constituição essa que se debruçou sobre o tema da tributação de forma ampla, traz as principais balizas que devem ser seguidas, tanto pelo poder público, leia-se legisladores, quanto pelos cidadãos. Uma das principais premissas que regem a vida em sociedade, bem como norteia o agir de todos os atores nela inseridos, está contida no princípio da livre iniciativa, insculpido no artigo 170 da Carta Magna. Desse enunciado prescritivo interpreta-se que a ordem econômica, calcada na liberdade do cidadão em empreender, deve ser incentivada e protegida pelo Estado, sempre buscando a proteção da soberania nacional, função social da propriedade, livre concorrência etc.
Dentro dessa liberdade de agir, respeitando as leis, por certo, as pessoas físicas e jurídicas devem e podem organizar suas atividades econômicas da melhor forma possível, inclusive no que toca a questão tributária.
Conforme ficará demonstrado ao longo deste trabalho, há um direito ao planejamento tributário. Desde que seguidos os ditames legais, poderá o contribuinte organizar suas atividades econômicas/profissionais de maneira tal que possa usufruir de carga tributária mais vantajosa. E, nesse ponto, o Estado/Fisco nada poderá fazer contra o contribuinte.
Todavia, diversas são as tentativas do Fisco em “bloquear” os caminhos dos contribuintes no exercício do direito à organização dos seus negócios de maneira fiscalmente menos onerosa. A principal delas foi a edição do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, denominada pela doutrina de Norma Geral Antielisão Fiscal.
A despeito da louvável intenção do legislador ao editar tal norma, ela foi objeto de violento ataque hermenêutico, especialmente por parte dos agentes arrecadadores. Nela, eles viram um caminho aberto para a imposição de sanções aos sujeitos passivos, fundamentalmente atacando as estruturas jurídicas montadas para, dentre outros objetivos, economizar tributos. Além disso, conforme restará demonstrado, tal norma padece de ineficácia técnica, haja vista a necessidade de regulamentação que nunca foi operacionalizada pelos agentes legislativos competentes.
Por fim, debateremos os votos proferidos na ADI 2.446, em trâmite no Supremo Tribunal Federal. A despeito da momentânea improcedência da ação de inconstitucionalidade manejada, já se formaram 5 votos contrários à tese da inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional. Os argumentos utilizados pela relatora da ação, Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha, trouxeram combustível novo para uma reviravolta na interpretação atualmente conferida ao mencionado dispositivo legal. Por isso, urge uma revisita ao tema, que já vem sendo bastante debatido com a chance concreta de mudança nos paradigmas atualmente correntes e aplicados.
Planejamento, segundo o dicionário Novo Aurélio, é o ato ou efeito de planejar, e planejar significa estabelecer um plano ou roteiro (FERREIRA, 1999, p. 1582). Planejamento tributário, por sua vez, pode ser designada como a organização dos negócios de uma pessoa física ou jurídica com vista a obter uma redução da carga tributária experimentada, ou mesmo a redução no cumprimento de obrigações acessórias.
Nessa linha, Hugo de Brito Machado e Schubert de Farias Machado conceituam planejamento tributário como:
“A atividade de examinar as formas pelas quais uma atividade econômica pode ser desenvolvida, e escolher a que se mostre mais vantajosa do ponto de vista tributário. A expressão planejamento tributário pode designar essa atividade e pode também designar o resultado da mesma.” (2011, p. 176)
Portanto, o enunciado planejamento tributário pode ser tanto o ato/procedimento quanto o produto desse agir. Pode ainda o planejamento tributário ser lícito ou ilícito. Ao primeiro, dá-se comumente o nome de Elisão Fiscal, ao segundo, o nome de Elusão ou Evasão Fiscal[1].
Todavia, para que seja válido do ponto de vista jurídico, é indispensável que o sujeito se mantenha no campo da licitude, da legalidade. Ao romper tal fronteira, estará atuando no campo dos ilícitos, terreno esse, por divisão didática, pertencente ao campo do direito penal.
Dito isso, é possível afirmar, com segurança, que no ordenamento legal brasileiro há um direito ao planejamento tributário, movimento jurídico esse tendente a esquivar ou minorar o ônus tributário suportado. Isso porque, constituinte originário fez uma opção clara pela liberdade econômica. Ao instituir o artigo 170 da Constituição Federal de 1988 prescreveu o seguinte:
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”
Da interpretação sistemática do citado enunciado prescritivo nota-se que o legislador fez uma escolha pela liberdade econômica, facultando ao particular, desde que obedecidos os cânones legais, se organizar da forma que melhor lhe convier. Dentre as estruturas possíveis, poderá ele optar por aquela que experimenta a não incidência ou incidência mitigada da carga tributária.
Sobre a liberdade econômica e a livre iniciativa, José Afonso da Silva é preciso ao afirmar que:
“A liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou a liberdade de empresa e a liberdade de contrato. Consta do art. 170, como um dos esteios da ordem econômica, assim como de seu parágrafo único, que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
É certamente o princípio básico do liberalismo econômico.”( 2007, p. 793)
Tem-se assim, por conseguinte, que ao particular é não só facultado, mas incentivado que utilize dos mecanismos mais modernos, não só legais, para desenvolver sua atividade econômica. Nesse caminho não estará obrigado a estruturar-se tendo que suportar o maior ônus tributário possível. Pelo contrário!
Tal ato, longe se ser reprovável, deve ser fomentado. Todavia, com obediência inegociável ao campo da licitude.
Essa linha de raciocínio não é nova. Nos idos de 1963, Alfredo Augusto Becker, sob a égide de outra carta constitucional, já dizia ser uma aspiração natural à vida econômica procurar determinado resultado com maior economia, ou seja, com a menor despesa, inclusive tributária. Afirma ele que todo indivíduo, desde que não viole regra jurídica, tem a inegociável liberdade de organizar seus negócios de modo menos custoso. Segue o autor afirmando que “seria absurdo que o contribuinte, encontrando vários caminhos legais (portanto, lícitos) para chegar ao mesmo resultado, fosse escolher justamente aquele que determinasse pagamento de tributo mais elevado”. (2010, p. 143)
Isto porque, do raciocínio desenvolvido, dentro da estrutura normativa de um Estado de Direito, ninguém deverá ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. Com efeito, se é vontade das autoridades que o contribuinte siga o caminho mais oneroso fiscalmente, que utilize dos meios outorgados pelo sistema jurídico para fazê-lo, ou seja, expeça ato normativo competente para tal, seja por meio do congresso nacional, assembleias estaduais ou câmara de vereadores, seja por meio, se assim a lei permitir, de ato do poder executivo.
Por conclusão, tem-se que, efetivamente, a livre iniciativa econômica, legalidade geral e tributária e a impossibilidade de tributação por analogia, conforme previsto no art. 108, § 1º do CTN, são direitos inalienáveis, um “estatuto do contribuinte”, nos dizeres de Roque Antonio Carrazza. Estão prescritos em nossa Constituição Federal de 1988 e no Código Tributário Nacional e, de forma alguma, sob pretextos meramente arrecadatórios poderão ser mitigados pelo Estado Fisco.
De forma preliminar, antes de explorar especificamente o parágrafo único do artigo 116 do CTN, faz-se necessário realizar o seguinte questionamento: O que seria uma norma geral antielisão?
Sobre o tema, Hugo de Brito Machado e Schubert de Farias Machado foram precisos ao afirmar que:
“É uma norma que vem qualificada como geral porque se aplica aos tributos em geral, e se qualifica como antielisão porque se presta para coibir a prática denominada elisão fiscal ou elisão tributária. (…) Assim, norma antielisão é uma norma que tem por finalidade autorizar providências no sentido de evitar a prática da elisão fiscal ou tributária, ou, em outras palavras, autorizar a cobrança do tributo que, como consequência da elisão, não seria devido.”(2011, p. 159-160)
Como visto no item anterior, há ressalvas, ao menos no ordenamento jurídico nacional, acerca da possibilidade de existência de uma normal geral antielisão. Isto porque, o planejamento tributário lícito não somente é permitido, mas incentivado. Permitido na medida em que o princípio da legalidade, art. 5º, inciso II, da CF/88, é cânone mestre do agir ou deixar de agir do contribuinte. Incentivado na medida em que, o art. 170, da CF/88, confere ao cidadão organizar sua atividade econômica da maneira que bem entender, desde que respeitada a legalidade. Com efeito, vedar, a priori, uma atividade que é permitida pela lei, parece flagrantemente inconstitucional.
Todavia, tal discussão será melhor enfrentada quando da apreciação da ADI 2.446, que, ao menos até o momento, indica uma mudança diametral no atual estado de coisas que o enfrentamento do planejamento tributário experimenta.
2.1 A Lei Complementar nº 104/2001 e o § Único do Artigo 116 do CTN
A Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001, teve como objetivo alterar dispositivos da Lei nº 5.172/66 – Código Tributário Nacional. Assim, entre as suas diversas disposições, é caro ao tema do planejamento tributário a inclusão do parágrafo único ao artigo 116 do CTN. Verbis:
“Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos:
I – tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios;
II – tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável.
Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)”
Na exposição de motivos do Projeto de Lei Complementar nº 77 de 1999, que levou à edição da mencionada Lei Complementar nº 104/2001, especificamente no item 6, foi dito que:
“A inclusão do parágrafo único do art. 116 faz-se necessária para estabelecer, no âmbito da legislação brasileira, norma que permite à autoridade tributária desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de elisão, constituindo-se, dessa forma, em instrumento eficaz para o combate aos planejamentos tributários praticados com abuso de forma ou de direitos.”
Com a promulgação e início da vigência da alteração legislativa, iniciaram-se debates acerca da sua “correta” interpretação. Houve autores que logo se apressaram a pregoar que foi introduzida em nosso ordenamento a “norma geral antielisão” e que o planejamento tributário estaria vedado pelo nosso ordenamento. Dessa feita, Roque Antonio Carrazza, faz observação nesse sentido, observação essa que, ao final de seu raciocínio, demonstra não ser, ainda, de possível operacionalização dentro das ferramentas fornecidas pelo direito posto.
“Pois bem. Para combater a evasão fiscal foi editada a Lei Complementar nº 101, de 10 de janeiro de 2001, que inseriu um parágrafo único, no art. 116, do Código Tributário Nacional, que logo passou a ser designado de “norma antielisiva” (quando, na realidade, trata-se de “norma antievasiva” ).” (2010, p. 243)
Hugo de Brito Machado, ao tecer comentários sobre o analisado dispositivo legal, é enfático ao afirmar que o § único do artigo 116 é inconstitucional ou inútil. Assevera ele que:
“Temos sustentado que, a depender da interpretação que se dê à denominada norma geral antielisão, albergada pelo parágrafo único do art. 116 do CTN, dita norma terá de ser considerada inconstitucional ou inútil. Inconstitucional se interpretada de modo a amesquinhar o princípio da legalidade tributária. Inútil se interpretada dentro dos limites desse princípio, porque mesmo sem ela o Fisco já tem desconsiderado diversos atos ou negócios jurídicos por entender que foram praticados com abuso de direito, e os tribunais têm apoiado essa atitude em todos os casos nos quais entende configurado o abuso de direito.” (2019, p. 130)
Em verdade, Hugo de Brito Machado entende, e com ele concordamos, que o fisco vem, por critérios outros (ponderação de princípios, por exemplo), afastando sistematicamente planejamentos tributários lícitos, galgados em permissões legais conferidas. Não há dúvida de que é imperioso ao Estado arrecadar valores por meio dos tributos, valores esses utilizadas para operacionalizar suas relevantes missões. Todavia, não se pode negar também que, no contrato firmado entre Estado e Cidadão, onde aceita a invasão/transferência de parcela da sua propriedade para o “bem comum”, seja ele compelido a pagar o máximo possível entre os meios legalmente disponíveis.
De mais a mais, o analisado dispositivo legal, a despeito do manifesto desejo estatal na criação de uma norma geral antielisão, padece de problemas sérios para sua aplicação pelos órgãos estatais, qual seja, a indispensável criação de procedimentos por meio exclusivo de lei ordinária.
Momento mais próximo à necessária lei ordinária foi com a edição da Medida Provisória nº 66, posteriormente convertida na Lei nº 10.637 de 30 de dezembro de 2002, que entre seus artigos 13 a 19 estabelecia procedimentos a serem observados pela autoridade administrativa no concernente à desconsideração dos atos ou negócios praticados com o fito de dissimular a ocorrência do fato jurídico tributário.
A despeito da não conversão dos artigos 13 a 19 em lei, há entendimento doutrinário sólido no sentido em que a exposição de motivos da Lei Complementar nº 104 de 2001 já seria suficiente para que a dita norma geral antielisão fosse aplicada plenamente em nosso sistema jurídico, sendo dispensável produção legislativa para estabelecer os procedimentos necessários à desconsideração dos negócios jurídicos praticados. Marco Aurélio Grecco e Ricardo Lobo Torres, citando apenas dois dos principais expoentes dessa corrente doutrinaria, advogam ser permitido a desconsideração dos atos ou negócios jurídicos, em matéria tributária, desde que estejam revestidos de abuso de forma[2] ou abuso de direito[3]. Ademais, como o parágrafo único do artigo 116 do CTN seria norma geral antielisão e, essa norma, assim, autorizaria a requalificação dos atos ou negócios jurídicos para reaproximá-lo da mens legis.
Para tanto, informam que a exposição de motivos da LC nº 104/2001 possui força normativa suficiente para que tais patologias possam atingir os atos ou negócios jurídicos em matéria tributária. Ademais, defendem que com a introdução ao nosso ordenamento jurídico do Código Civil de 2002, tais patologias ganharam maior relevância, uma vez que, restando-se comprovada tais situações, os atos ou negócios praticados seriam nulos[4] de pleno direito.
Por derradeiro, argumentam ainda que o Congresso Nacional não teria se reunido em vão!
Com efeito, não haveria sentido algum todo o esforço legislativo empregado se como resultado alcançaríamos uma lei inócua, só acrescentando a dissimulação como nova causa de lançamento de ofício pela autoridade administrativa.
Com todo o respeito que tais doutrinadores merecem, não se pode concordar com tal interpretação.
A corrente legalista, defensora da tipicidade fechada e segurança jurídica melhor expõe e interpreta o assunto. Assim sendo, a autoridade administrativa só poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos nos precisos moldes previstos na lei tributária, sem a utilização de analogias e interpretações expansivas da norma tributária.
Nessa linha Roque Antonio Carrazza afirma que:
“O parágrafo único, do artigo 116, do Código Tributário Nacional, atropelou esta regra, investindo a “autoridade administrativa” do poder de desconsiderar, de ofício, atos ou negócios jurídicos “dissimulados”, em ordem de retirar-lhes a “eficácia tributária”. Ao assim estatuir, pretendeu introduzir, em nosso ordenamento jurídico a inconstitucional “interpretação econômica do direito tributário”. Inconstitucional porque ofende ao magno princípio da segurança jurídica, já que “permite” que a autoridade administrativa, com base em seus particulares e subjetivos juízos, desconsidere negócios jurídicos, negando-lhe validade.” (2010, 249-250)
De mais a mais, institutos do direito civil não podem criar novos conceitos e mecanismo de combate à evasão fiscal, no direito tributário, sem que, para isso, exista previsão legal. Vale lembrar que o direito é uno, e sua interpretação deve dar-se de forma sistêmica. No entanto, é dividido em ramos, os quais tratam de temas específicos de cada área (direito privado, direito público). Por essa razão, institutos do direito civil não possuem trânsito livre, devem obedecer determinados requisitos para aproveitamento, previsto no Código Tributário Nacional.
Dessa maneira, clara é a lição constante do Capítulo IV da Lei nº 5.172/66 que, ao discorrer acerca da Interpretação e Integração da Legislação Tributária, informa em seu artigo 109 que:
“Art. 109 Os princípios gerais do direito privado utilizam-se para a pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de institutos, conceitos e formas, mas não para a definição dos respectivos efeitos tributários.”
Das lições trazidas pelo citado artigo, institutos do direito privado podem apenas definir, conceituar, jamais implicar efeitos não previstos na esfera do direito tributário. Situação em que encontra aplicação o artigo 109 do CTN é na definição do que vem a ser simulação com fins tributários.
Diante disto, caso seja comprovada a existência de simulação dos negócios jurídicos, nos moldes do Código Civil de 2002, que vise anular ou reduzir o quantum devido a título de tributo pelo contribuinte, deverá a autoridade administrativa promover o competente lançamento de ofício nos moldes do artigo 149, inciso VII do Código Tributário Nacional.
Por isso, Regina Helena Costa, ao versar sobre o tema assevera de forma categórica que:
“Nos termos em que hoje está posta, sustentamos que a norma geral antielisiva representativa de inadequada aplicação da praticabilidade fiscal, porquanto, embora de forma induvidosa torne mais facilmente exequível o controle de atos e negócios jurídicos pelo Fisco, revela-se ofensiva à segurança jurídica, como salientado. Efetivamente, além de parecer desnecessária, ante o disposto no art. 149, VII, CTN, abriga a referida norma acentuada generalidade e latitude, demandando, a nosso ver, que outra lei venha a estatuir as hipóteses de sua aplicação, sob pena de conceder-se demasiada liberdade ao administrador fiscal na desconsideração de atos e negócios jurídicos.” (2017, p.212-213)
Por todo o exposto, não é possível, dentro do ordenamento jurídico atualmente vigente, falar em norma geral antielisão. Seja por afronta a princípios constitucionais basilares, seja por completa ineficácia do artigo 116, § único do Código Tributário Nacional. Sem a devida regulamentação por meio exclusivo de lei ordinária, o enunciado prescritivo é oco, vazio de sentido e de impossível aplicação.
Na Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 2.446 em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo buscou a declaração de inconstitucionalidade do art. 1º da Lei Complementar nº 104 de 2001, especificamente na parte que acrescentou o parágrafo único ao artigo 116 do Código Tributário Nacional. Em breve síntese, aduziu o autor da ADI que tal mudança legislativa afrontava o princípio da legalidade, da tipicidade cerrada e da separação dos poderes, não se esquecendo ainda de informar que tal modificação permitiria a interpretação econômica do Direito Tributário nacional além de autorizar a tributação por analogia, possibilidade essa expressamente vedada.
Até o momento, cinco são os votos pela improcedência da ação. Todavia, o que chama atenção é a ratio decidendi presente no voto da Ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha, relatora do caso. Em interessante trecho, afirma ela que:
“A norma não proíbe o contribuinte de buscar, pelas vias legítimas e comportamentos coerentes com a ordem jurídica, economia fiscal, realizando suas atividades de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar tributos quando não configurado o fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada.”
Nota-se, deste modo, conforme defendido nesse artigo, que aos contribuintes é facultado o direito ao planejamento tributário. Tal direito encontra-se garantido pelo artigo 170 da Constituição Federal de 1988, dispositivo esse que, interpretado em conjunto com o princípio da legalidade e da tipicidade cerrada nos leva à conclusão que a busca pura e simples de economia de tributos não é motivo suficiente para que os contribuintes sejam penalizados pelo Fisco, tendo seus negócios jurídicos desconsiderados por falta de “propósito negocial”, por exemplo.
De mais a mais, a ministra relatora profere dura e explícita crítica àqueles que denominam o parágrafo único do artigo 116 da Lei 5.172/66 de “norma geral antielisão”. Para ela:
“A despeito dos alegados motivos que resultaram na inclusão do parágrafo único do artigo 116 do CTN, a denominação ‘norma geral antielisão’ é de ser tida como inapropriada, cuidando o dispositivo de questão de norma de combate à evasão fiscal.”
A ministra utiliza a classificação doutrinária que separa a evasão e a elisão. A primeira como prática de ilícito com o fim de economizar tributo. A segunda, por sua vez, como prática lícita e, portanto, permitida pelo ordenamento jurídico. Por inferência lógica, resta flagrante que não se pode, ao menos em nosso ordenamento jurídico atual, proibir que o contribuinte planeje sua atividade econômica, licitamente, da forma que gere maior economia fiscal, mesmo que o planejamento sirva somente a esse fim.
Bem por isso é que o voto se mostra objetivo ao afastar a possível exigência de tributos sobre os denominados fatos jurídicos abusivos, ou seja, fatos lícitos que não se subsumem a alguma das hipóteses de incidência possíveis, mas, mesmo assim, segundo o Fisco, devem ser alcançados porque adotados com motivação exclusivamente de economia fiscal. Nessa linha são preciosas as palavras de Helenilson Cunha Pontes ao afirmar que a exigência tributária deve ater-se a um juízo objetivo de subsunção entre o “fato gerador em abstrato e o fato imponível, sendo incabível qualquer cogitação de natureza subjetiva acerca dos motivos determinantes para sua realização”. (2020)
Com efeito, ou o fato jurídico tributário é lícito, situado no campo da elisão, ou é ilícito, situado no campo da evasão, não há uma terceira possibilidade. Somente as condutas tendentes a dissimular, encobrir, falsear ou ocultar fatos imponíveis já praticados é que confere às autoridades administrativas desconsiderar tais atos e, por consequência, cobrar o tributo devido.
Como conclusão, ao menos momentânea, do voto da ministra relatora e dos demais quatro ministros que a seguiram, é possível afirmar que as próximas decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a temática do planejamento tributário devem se guiar da seguinte forma:
Tem-se, dessa forma, que a se confirmar a ratio decidendi utilizada no voto condutor, todo o paradigma interpretativo atualmente utilizado para análise do tema do planejamento tributário deve sofrer significativa alteração. Deixaremos de seguir uma doutrina respeitável, porém equivocada sobre o assunto e retornaremos à necessária e inafastável interpretação do Texto Constitucional, único e verdadeiro guia interpretativo que o assunto merece.
CONCLUSÃO
Viu-se que é um direito dos contribuintes organizar licitamente sua atividade econômica da forma que a lei lhe permitir ou não proibir, salvo nos casos finitos e previsto em lei, hipóteses essas em que ou devem ser diretrizes especificas ou que dependam de autorização estatal. O artigo 170, combinado com o artigo 5, inciso II, ambos da Constituição Federal de 1988 devem ser os pilares mestres na interpretação da temática do planejamento tributário.
Constatamos também que, além de permitido, é desejável que o gestor de uma empresa ou a pessoa física no desenvolvimento de suas atividades busque se organizar da forma mais econômica, inclusive fiscalmente. Longe de ser um ilícito, é ato permitido e incentivado. Cabe ao estado, caso entenda ser indesejável o comportamento do contribuinte, utilizar dos meios disponíveis para coibi-lo, especialmente a via legislativa, com a criação de normas que impeçam/proíbam determinada conduta.
Afirmou-se também que o estado fisco, com o objetivo de regrar a temática do planejamento tributário, introduziu o parágrafo único ao artigo 116 do Código Tributário Nacional. Tal norma, equivocadamente, foi logo apelidada de “norma geral antielisão”. Tal visão leva a o entendimento de que, ou ela é inconstitucional, se colidir com o princípio da legalidade e com a livre iniciativa, ou será inútil, pela existência do artigo 149, inciso VII do CTN.
De mais a mais, conforme visto da análise da ADI 2.446, o paradigma de interpretação da temática do planejamento tributário está para sofrer uma reviravolta. Desse modo, questões como inexistência proposito negocial ou efeitos econômicos do negócio jurídico não poderão ser mais adotadas pelas autoridades administrativas como critério de desconsideração do planejamento tributário.
A economia pura e simples de tributos volta a ser permitida e até mesmo incentivada. Para tanto, basta o respeito aos ditames legais e que, efetivamente, o negócio jurídico praticado possua forma e conteúdo, ou seja, não uma mera superfície de legalidade, escondendo um núcleo oco ou viciado.
BIBLIOGRAFIA
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MACHADO, Hugo de Brito, Introdução ao Planejamento Tributário. 2 ed. – São Paulo: Malheiros, 2019.
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SCHOUERI. Luís Eduardo (coord). FREITAS, Rodrigo. Planejamento Tributário e o Propósito Negocial. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
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Imprenta: Rio de Janeiro, Elsevier, 2012.
PONTES, Helenilson Cunha. https://www.conjur.com.br/2020-jul-22/consultor-tributario-planejamento-tributario-visao-stf-adi-2446, acessado em 26 de dezembro de 2020.
[1] Muitas são as classificações utilizadas pela doutrina ao referir-se ao planejamento tributário. Há autores que utilizarão a expressão elisão como planejamento ilícito e evasão como planejamento lícito. Tais classificações não são certas ou mesmo erradas, são apenas úteis ou inúteis ao estudo do objeto de investigação. Em nosso caso, conforme deixamos consignado, vamos utilizar a expressão Elisão para Planejamento Tributário Lícito e Evasão para Planejamento Tributário Ilícito.
[2] Abuso de Forma: No abuso de forma, como no abuso de direito, a forma legal é utilizada para fins moralmente repreensíveis. No que tange a fraude à lei, também esta ilegalidade é esteada em critérios diversos dos jurídicos. O instituto pode ser definido como o ato pelo qual se trata de evitar a incidência de uma norma, mediante a aplicação de outra norma mais benéfica.
[3] Abuso de Direito: É conceituado como o cometimento de excessos, relativamente aos limites impostos pelo fim econômico ou social do negócio jurídico, pela boa fé e pelos bons costumes.
[4] Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo.
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