Resumo: A Constituição Federal do Brasil de 1988 instituiu, em seu art. 1º, parágrafo único, que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, nos termos que estabelece. Apesar de que o constituinte reservou ao povo a titularidade do poder do Estado, Fábio Konder Comparato, prefaciando obra de Friedrich Müller, afirmou que “não existe soberania inocente”, pois “sabemos que a maioria do povo é capaz de esmagar “democraticamente a minoria, em nome do interesse nacional” ou em nome de outros interesses, tais como a exclusão social, a segregação, o fundamentalismo religioso, etc., de modo que uma democracia “verdadeira” – que superpõe o bem comum acima dos interesses particulares – deve tomar como parâmetro de referência para seu estabelecimento os direitos humanos. A presente pesquisa – pura quanto à tipologia, qualitativa quanto à abordagem e exploratória quantos aos objetivos – colabora com este debate, a partir da análise histórica das relações Poder vs Direito, bem como da teoria do poder constituinte. Conclui que para a realização de uma democracia plena é necessário que o povo seja colocado no epicentro do Estado para que, de fato, reconheça-se capaz de irradiar à estrutura estatal sua vontade normativa, por sua vez, arquitetada pelos direitos humanos e orientada para o bem comum. Conclui, também, que isto só será possível se realizado dialogicamente, e desde que a cidadania seja, ao máximo, ampliada. Por isso, defende que o Brasil, que já possui arcabouço normativo voltado para o bem comum, busque a efetiva concretização dos direitos fundamentais, projetando-se cada vez mais à municipalização do poder e à abertura de tantos quanto possíveis canais de participação popular (na produção normativa e na ação estatal), sem perder de vista que a soberania do povo não prescinde de limites a serem definidos pelos direitos humanos.
Sumário: 1. Introdução. 2. O poder e o direito no tempo. 3. O princípio democrático, os direitos fundamentais e o Estado brasileiro. 4. A concretização constitucional do princípio democrático. 5. A teoria do poder constituinte. 6. “Os valores que fazem a vida humana digna de ser vivida”. 7. Considerações finais. 8. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal do Brasil de 1988 instituiu, em seu art. 1º, parágrafo único, que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, nos termos que estabelece. Da leitura deste dispositivo fica fácil deduzir que o constituinte reservou ao povo a titularidade do poder do Estado, inferindo-se daí que toda atuação estatal deve se dar em função e em nome do povo, já que é este o grande legitimador de sua atuação.
Mas apesar da clareza do parágrafo único do primeiro artigo constitucional FÁBIO KONDER COMPARATO, ao prefaciar obra de FRIEDRICH MÜLLER[1], afirmou que “não existe soberania inocente”, pois “sabemos que a maioria do povo é capaz de esmagar “democraticamente a minoria, em nome do interesse nacional” ou em nome de outros interesses, tais como a exclusão social, a segregação, o fundamentalismo religioso, etc., de modo que uma democracia considerada “verdadeiramente” justa – que superpõe o bem comum acima dos interesses particulares – deve tomar como parâmetro de referência os direitos humanos[2].
A assertiva inaugura interessante discussão no entorno da titularidade do poder do povo, se ilimitado ou se suscetível de receber limitações. O presente artigo pretende colaborar com este debate, tomando como perspectiva o Estado brasileiro.
2. O PODER E O DIREITO NO TEMPO
Ao pensar-se em poder, imediatamente se faz uma associação com o termo força. De fato, qualquer que seja a espécie de poder, ainda que ele não precise se justificar permanentemente pela força, deverá estar representado numa idéia mínima de superioridade que lhe permita cobrar de um mais fraco, inferior, obediência aos regramentos que estabelecer. Por isso, numa perspectiva filosófico-jurídica, tem-se dito que o Poder é soberano.
Consoante ensina GREGORIO PECES-BARBA[3], quando se estuda a relação entre o Poder e o Direito, do ponto de vista histórico, logo se observa uma íntima relação entre ambos os fenômenos, costumando-se atribuir ao Poder, como conseqüência de sua soberania, a supremacia da produção normativa estatal.
Apesar de que a assertiva goza, hoje, de certa unanimidade doutrinária, o mesmo não se pode dizer acerca da problemática da titularidade do Poder, que sempre reservou à Filosofia do Direito e à Ciência Política intensas oscilações de posições, de acordo com os interesses ideológicos dominantes às mais diferentes épocas.
Segundo explica citado mestre espanhol[4], as correntes filosóficas que dominaram o pensamento humano da Antigüidade clássica até fins do século XV atribuíam ao Poder uma origem exterior ao ser humano. A visão jusnaturalista (necessariamente dual) que imperou sobre o conhecimento naquele vasto período, se no período helênico concebia ao Poder uma origem cosmológica, a partir dali e até o final dos tempos medievais a ele atribuiu origem divina.
Somente com o advento do racionalismo é que a origem sobrenatural do Poder passou a ser questionada. O jusnaturalismo, apesar de manter-se fidedigno à dualidade jurídica, passou a conceber à dimensão natural conotações axiológicas, ou seja, valorativas, não propriamente exteriores ao homem. Tanto assim que HOBBES, tomado por muitos como o grande legitimador dos Estados absolutistas monárquicos[5], dando seqüência à matriz intelectual de JEAN BODIN, atribuía aos cidadãos a soberania do Poder, Poder este que depois de consentidamente transformado em Estado (“o enorme Leviatã”) seria repassado ao monarca. Verbis:
“A única forma de constituir um poder comum, capaz de defender a comunidade das invasões dos estrangeiros e das injúrias dos próprios comuneiros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio trabalho e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades por pluralidade de votos, a uma só vontade. Isso equivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representante deles próprios, considerando-se e reconhecendo-se a cada um como autor de todos os atos que aquele que os representa praticar ou vier a realizar, em tudo o que disser respeito à paz, e segurança comuns. Isso é mais do que um consentimento ou concórdia, pois resume-se numa verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem como todos os homens de modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: “cedo e transfiro meu direito de governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de que transfiras a ele o teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações”. Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas.
Esta é a geração daquele enorme Leviatã, ou antes – com toda reverência – daquele deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa.
Graças à autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado é-lhe atribuído o uso do gigantesco poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no domínio da paz em seu próprio país, e da ajuda contra os inimigos estrangeiros. (…)
Soberano é aquele que representa essa pessoa. Dele se diz possuir poder absoluto. Todos os outros são súditos”[6]. (grifos do autor)
A consolidação do ideário contratualista que regeu o jusnaturalismo moderno e que sucedeu ao absolutismo também esteve longe de dissociar as idéias de Poder e Direito, e tampouco de desacreditar na idéia de Poder soberano, embora tenha deslocado a titularidade do poder do Estado para o povo em conjunto, ou melhor, para sua vontade geral[7]:
“Como a natureza dá a cada homem um poder absoluto sobre todos os seus membros, dá o pacto social ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, recebe, como eu disse, o nome de soberania. (…)
No instante em que o povo está legitimamente reunido em corpo soberano, cessa toda e qualquer jurisdição do governo, o poder executivo fica suspenso, e a pessoa do último dos cidadãos é tão sagrada e inviolável quanto a do primeiro magistrado, porque onde se encontra o representado deixa de haver o representantes. (…)
A soberania não pode ser representada, pela mesma razão que não pode ser alienada; ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade geral de modo algum se representa; ou é a mesma ou é outra; não há nisso meio termo. Os deputados do povo não são, pois, nem podem ser seus representantes; são, quando muito seus comissários e nada podem concluir definitivamente. São nulas todas as leis que o povo não tenha ratificado; deixam de ser leis. O povo inglês pensa ser livre, mas está completamente iludido; apenas o é durante a eleição dos membros do Paramento; tão logo estejam estes eleitos, é de novo escravo, não é nada. Pelo uso que faz da liberdade, nos curtos momentos que lhe é dado desfrutá-la, bem merece perdê-la. (…)
… não existe o Estado nenhuma lei fundamental que não possa ser revogada, nem mesmo o pactos social; porque, se todos os cidadãos se reunissem com o fim de romper esse pacto, ninguém poderia duvidar de que tal rompimento não fosse legitimo.[8]”. (grifos do autor)
Desde então, consoante afirma PECES-BARBA:
“Toda la cultura jurídica, a partir del tránsito a la modernidad, tendrá que tomar posición ante ese tema central en la filosofía jurídica y política. Para nosotros, como veremos, es un elemento irrescindible para explicar el proceso de positivación de los derechos fundamentales, y el paso de la moralidad al la juridicidad de los mismo. La moralidad de los derechos, lo que ese ámbito suponen pretensiones morales justificadas son anteriores al Poder, pero, como hemos señalado, estas pretensiones, no son plenamente derechos fundamentales sin la positivación de éstos. De ahí la importancia del Poder como mediador entre esa moralidad previa y los derechos fundamentales incorporados al Derecho positivo”[9].
E prossegue o constitucionalista espanhol ensinando que, ao longo dos tempos, a relação entre Poder e Direito oscilou numa variável em que se pode enumerar os seguintes modelos:
a) supremacia do Poder sobre o Direito (p.ex, no ideal platônico do Filósfo-Rei, nos ideais jurídicos de Roma expressados por Ulpiano, nas idéias de Jean Bodin, Hobbes, Spinoza, e, por último, Carl Shmitt);
b) supremacia do Direito sobre o Poder (p. ex, nas concepções tomistas clássicas de Aristóteles, para quem o Direito positivo deve estar em conformidade com o Direito natural, de ordem superior);
c) identificação entre Direito e Poder (p.ex, de Maquiavel em diante, destacando-se o formalismo kelseniano, afinal, “Un positivismo sin poder es como dice H. Heller un virtuosísimo lógico que no sirve para explicar las tres dimensiones, ética, política y jurídica, en que se mueve el concepto de derechos fundamentales”[10]);
d) separação entre Poder e Direito (em que o Direito atua à margem do Poder, sem nenhum ponto de contato, p. ex., na ilha de Robsinson Crusoé, porque o mundo jurídico é um mundo relacional de onde se necessitam de duas ou mais pessoas e se necessita um acordo e uma igualdade mínima “mientras que el poder del personaje de Daniel Defoe, lo es respecto a los animales y a las cosas, ya que no tiene un sujeto correlativo que permita hablar de una relación jurídica”[11];
e) por fim, equilíbrio entre Poder e Direito, citado por PECES-BARBA como modelo de relação mais adequado, já que o Direito não pode ser entendido sem o Poder e este se “configura, cristaliza y se racionaliza o se frena y se limita[12]” por meio do Direito. Para o professor:
“Desde el punto de vista interno será el Derecho el que influya el Poder, a través de la regulación jurídica del uso de la fuerza. (…)
Así el Poder que es fuerza mas consenso en unos valores que asume y recibe de la moralidad, crea y sostiene un sistema normativo, al que transmite una dimensión coactiva con la fuerza para que sea eficaz, y una dimensión de aceptación colectiva, con el consenso en los valores políticos que a través de los principios de organización y de los derechos fundamentales transforma en valores jurídicos. A su vez, el Derecho, con esos contenidos utiliza, en gran parte, su capacidad normativa, para regular el uso de la fuerza que es una de las dos vertientes del Poder. También regulará los efectos jurídico de esos valores políticos, convirtiéndolos en valores jurídicos y norma básica material del Ordenamiento, y se beneficiará del consenso que sostiene al Poder, para facilitar y favorecer el consenso en el Derecho que produce su eficacia.
Aquí tiene sentido señalar que la estabilidad de un sistema político que yo preferiría denominar <<efectividad>>, se produce con el buen funcionamiento de la relación. La legitimidad de sistema, deriva de sus contenidos éticos políticos incorporados al Poder ya su Derecho, favorece la estabilidad de ese mismo Poder y hace posible la justicia del derecho, su eficacia, y cuando el sistema se analiza en su conjunto, su validez.
La relación Poder-Derecho, es estable y bilateral en la dimensión de la fuerza que sostiene la validez y la eficacia del Derecho…”[13]. (grifos do autor)
Em resumo, sendo o Direito expressão de norma, e Poder expressão de vontade (relacionada a valores), por óbvio que não se conflitam, ao contrário, se completam. Em última instância, o Poder cria o Direito, mas o Direito dá ao Poder status jurídico, arquitetando-lhe e sistematizando-lhe, e, ainda, impondo-lhe limites. As normas morais às quais se submetiam o Poder passam a influenciar o ordenamento jurídico, de modo que os valores que lhes são inerentes acabam por influenciar na Norma Fundamental do Estado[14]. Observe que este comentário vai de encontro ao que afirma JORGE MIRANDA, emérito constitucionalista de Coimbra:
“O Estado surge em virtude de se instruir um poder que transforma uma coletividade em povo. Esta instituição é, como dissemos, um fenômeno jurídico – ainda quando nasce à margem de acto previsto em normas ordenadas a esse resultado; a própria criação revolucionária do poder é portador de juridicidade plena, pois que não só define relações jurídicas entre os cidadãos como se funda no Direito natural ou, se preferir, na idéia do Direito dominantes na colectividade.
Constituir o Estado equivale dar-lhe a sua primeira Constituição, a lançar as bases de sua ordem jurídica, a dispor por um estatuto geral de governantes e governados (…)
O poder político é, por conseqüência, um poder constitucional enquanto molda o Estado segunda uma idéia, um projecto, um fim de organização.[15]” (grifos do autor)
Um Estado de Direito considerado democrático[16], isto é, alicerçado sobre as bases dos direitos fundamentais, deverá equilibrar Direito e Poder, de modo que aquele influencie neste regulando-lhe a força tão suficientemente para conduzir o Estado segundo os fins para os quais foi instituído, e, jamais, arbitrariamente.
Assim PECES-BARBA finaliza seu raciocínio:
“En este equilibrio entre el Derecho y el Poder se encuentra la clave de esta relación, de la que surge, la forma de implantarse los derechos fundamentales en la cultura jurídica moderna: una moralidad que no actúa aisladamente, en una hegemonía que absorba al Derecho y al poder; sino que se realiza en un sistema jurídico impulsado por un Poder que es un hecho en un echo fundante básico, un poder que no es amoral, sino que sume una moralidad y se sujeta al Derecho que crea y sostiene, y un Derecho que realiza en su sistema de normas la moralidad que el Poder sume”[17]. (grifo do autor)
3. O princípio democrático, OS direitos FUNDAMENTAIS E O ESTADO BRASILEIRO
Sem delongas, explicita JORGE MIRANDA:
“I – O poder é qualidade ou atributo do Estado. Condição de existência do Estado, ele aparece simultaneamente como a mais marcante de suas manifestações e encontra-se-lhe ligado por um nexo de pertença.
No plano sociológico, contudo, o poder não é tanto a comunidade estadual quanto do aparelho de órgãos e serviços que dentro desta estrutura se salientam. Existindo, embora, na e para a comunidade, o poder vai exercer-se e agir, unificando-a, orientando-a.
No plano jurídico, pelo contrário, não é admissível separar inteiramente a titularidade do poder da própria comunidade. Pelo menos em três aspectos:
a) A pessoa colectiva Estado tem por substracto a comunidade…;
b) Os titulares dos órgãos e agentes detentores das faculdades ou parcelas de poder político provêm da comunidade…;
c) O poder constituinte como poder de auto-organização originária é um poder da comunidade…
II – Não quer dizer que todo Estado tenha de ser, em pura lógica, democrático. A história antiga e contemporânea prova-o à saciedade. (…)
…. uma coisa é a titularidade do poder no Estado, descrito como comunidade, organização e pessoa colectiva e poder esse necessariamente exercido por órgãos….; outra coisa é a titularidade do poder no povo, conjunto de cidadãos dotados de participação activa na vida pública (os direitos políticos).
Para lá da criação do Estado, só se deve falar em princípio democrático (distinto, por exemplo, do princípio monárquico) quando o poder é o titular do poder constituinte como poder de fazer, decretar, alterar a Constituição positiva do Estado. E só se deve falar-se em governo democrático, soberania do povo, soberania nacional ou soberania popular, quando o povo tem meios actuais e efectivos de determinar ou influir nas directrizes políticas dos órgãos das varoas funções estatais (legislativa, administrativa, etc.); ou seja, quando o povo é o titular (ou o titular último) os poderes constituídos. (…)
… a titularidade do poder do povo em democracia implica exercício de poder, pelo menos o exercício do poder de escolher todos ou alguns dos governantes através de qualquer forma de eleição.[18]” (grifos do autor)
JORGE MIRANDA considera democrático aquele Estado fundado sobre a soberania popular, cuja força se expressa na possibilidade de eleger seus representantes. Em linguagem suplementar, o constitucionalismo moderno não descuida de considerar, dentro dos traços de caracterização de um Estado democrático, a influência dos direitos humanos sobre o sistema jurídico. Em linha distinta de seu colega, J. J. G. CANOTILHO leciona que assim como estão à base do Estado de Direito os direitos humanos (que ele chama de fundamentais) também são estruturas essenciais à realização do princípio democrático:
“… os direitos fundamentais como direitos subjectivos de liberdade, criam um espaço pessoal contra o exercício do poder antidemocrático, e como direitos legitimadores de um domínio democrático asseguram o exercício da democracia mediante a exigência de garantias de organização e de processos com transparência democrática (princípio majoritário, publicidade crítica, direitos eleitoral). Por fim, como direitos subjectivos a prestações sociais, económicas e culturais, os direitos fundamentais constituem dimensões impositivas para o preenchimento intrínseco, através do legislador democrático, desses direitos”[19]. (grifos do autor)
O Estado Brasileiro é, inegavelmente, um exemplo de Estado constitucional adepto do princípio democrático. Afinal, a Constituição Federal de 1988, no preâmbulo e no art. 1º, apresenta-lhe como destinado à busca do bem comum, a partir da promoção e tutela dos direitos derivados da dignidade humana (no plano constitucional, os direitos fundamentais):
“CF/88 – Preâmbulo: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos…
Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I – a soberania, II – a cidadania, III – a dignidade da pessoa humana, IV o os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, V – o pluralismo político” (grifos do autor)
Na linha do novo constitucionalismo brasileiro, destaca INGO WOLFGANG SARLET:
“(…) não nos parece impertinente a idéia de que na sua essência, todas as demandas na esfera dos direitos fundamentais gravitam direta ou indiretamente, em torno dos tradicionais e perenes valores da vida, liberdade, igualdade e fraternidade (solidariedade), tendo, na sua base, o princípio maior da dignidade da pessoa.” [20] (grifos do autor)
As colocações do doutrinador brasileiro encontram eco junto ao pensamento de ANTONIO ENRIQUE PEREZ LUÑO, consoante se lê do seguinte pronunciamento:
“Los derechos fundamentales constituyen la principal garantía con que cuentan los ciudadanos de un Estado de Derecho de que el sistema jurídico y político en su conjunto se orientará hacia el respecto y la promoción de la persona humana; en su estricta dimensión individual (Estado liberal de Derecho), o conjugando ésta con la exigencia de solidariedad corolario de la componente social y colectiva de la vida humana (Estado social de Derecho).[21]”
Por outro lado, ao prescrever que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,…”, o parágrafo único do art. 1º da Constituição brasileira também esclarece que a legitimação Estatal tem origem em seu povo[22]:
Assim, resta assente que o Brasil possui como base e fundamento a promoção e tutela dos direitos fundamentais (por derivação da dignidade da pessoa humana), que conforme expressado por H.-P. SHNEIDER[23] “é ‘conditio sine qua non’ do Estado constitucional democrático”, tendo como elemento legitimador o povo brasileiro.
PEREZ LUÑO leciona que:
“De ahí que la vigencia del Estado de Derecho en la actualidad debe buscarse, más que en plano de la consideración semántica de sus técnicas de funcionamiento, en el esfuerzo pragmático en el que la lucha por la verdad del Estado de Derecho asume el significado de una lucha por su verdad democrática”[24].
Sobre a relação entre democracia e o axioma “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido” GOFFREDO TELLES JÚNIOR ensina que:
“O que, em verdade, o axioma prenuncia é que o poder dos Governos, quando não emanado do povo, não é poder: é força, força armada; e, neste caso, o regime não tem o caráter de uma Democracia verdadeira. De acordo com o célebre princípio, o Governo em regime democrático, só é legitimo, quando seu poder emana do povo”[25]. (grifos do autor)
Vale mencionar que para proteger os bens sob quais se ancora o Brasil, o constituinte originário concedeu-lhes imunidade contra eventuais emendas constitucionais. Verbis:
“CF/88 – Art. 60, § 4º: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais”. (grifos do autor)
Assim, resta inconteste que não bastasse o dever de promover a realização e tutela dos bens decorrentes da dignidade da pessoa humana, o Estado brasileiro comporta à sua base o princípio democrático, que vincula a legitimação de toda sua atuação ao bem comum.
4. A Concretização constitucional do princípio democrático
J. J. G. CANOTILHO aponta quatro subprincípios fundamentais à concretização do princípio democrático no Estado contemporâneo: o princípio da soberania popular, o princípio da representação popular, o princípio da democracia semidireta, o princípio da participação.
Apesar de se reconhecer a importância dos três últimos subprincípios enumerados, não há como negar que todos estes convergem para o primeiro, o princípio da soberania popular. Sobre o mesmo, afirma CANOTILHO:
“O princípio da soberania popular transporta sempre várias dimensões historicamente sedimentadas: (1) o domínio político – o domínio de homens sobre homens – não é um domínio pressuposto e aceite; carece de uma justificação quanto à sua origem isto é, precisa de legitimação; (2) a legitimação do domínio político só pode derivar do próprio povo e não de qualquer outra instância <fora> do povo real (ordem divina, ordem natural, ordem hereditária, ordem democrática); (3) o povo é, ele mesmo, o titular da soberania ou do poder, o que significa: (i) de forma negativa, o poder do povo distingue-se de outras formas de domínio <<não populares>> (monarca, classe, casta); (ii) de forma positiva, a necessidade de uma legitimação democrática efectiva para o exercício do poder (o poder e exercício do poder derivam concretamente do povo), pois o povo é o titular e o ponto de referência dessa mesma legitimação – ela vem do povo e a este se deve reconduzir; (4) a soberania popular – o povo, a vontade do povo e a formação da vontade política do povo – existe, é eficaz e vinculativa no âmbito de uma ordem constitucional materialmente informada pelos princípio da liberdade política, da igualdade dos cidadãos, de organização plural de interesses politicamente relevantes, e procedimentalmente dotada de instrumentos garantidores da operacionalidade prática deste princípio”[26]. (grifos do autor)
Importa ressaltar que a aplicação do princípio democrático inter-relaciona-se, intimamente, com o princípio majoritário. Sobre o tema, J. J. G. CANOTILHO ensina que “existe uma conexão intrínseca entre o princípio democrático e o princípio maioritário….”[27], porém, não descuida de ressalvar:
“A democracia tem como suporte ineliminável o princípio maioritário, mas isso não significa qualquer <<absolutismo da maioria>> e, muito menos, o domínio da maioria. O direito da maioria é sempre um direito em concorrência com os direitos das minorias com o conseqüente reconhecimento de estas de poderem tornar maiorias.
A maioria não pode dispor de toda <<legalidade>>, ou seja, não lhe está facultado, pelo simples fato de ser maioria, tornar disponível o que é indisponível, como acontece, p. ex., com os direitos, liberdades e garantias e, em geral, com toda a disciplina constitucionalmente fixada (o princípio da constitucionalidade sobrepõe-se ao princípio maioritário). Por vezes, a importância do assunto exige maioria qualificadas não só para se garantir a bondade intrínseca da decisão mas também para a proteção das minorias (cfr.arts. 109.º/30). Por último, devem referir-se os limites internos do princípio maioritário: se ele tem a seu favor a possibilidade de as suas decisões se tornarem vinculativas por serem sufragadas por um maior números de cidadãos, isso não significa que a solução maioritária seja materialmente mais justa nem a única verdadeira. O princípio maioritário não exclui, antes respeita, o <<pensar de outra maneira>>, o <<pensamento alternativo>>. Noutros termos: o princípio maioritário assenta politicamente num <<relativismo pragmático>> e não num <<fundamentalismo de maiorias>>. Para utilizarmos as palavras de um ex-presidente do Tribunal Constitucional Alemão: o pressuposto básico da praticabilidade do princípio maioritário é a ausência de pretensões absolutas de verdade.”[28] (grifos do autor)
Ora, consoante já se viu da leitura do parágrafo único do art. 1º destacado na parte anterior[29], o modelo constitucional brasileiro optou por seguir a tendência dos Estados ocidentais contemporâneos, mesclando seu modelo de democracia representativa com a participação semidireta do titular do poder (o povo, verdadeiro soberano), verbis:
CF/88. Art. 14: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I – plebiscito;
II – referendo;
III – iniciativa popular.”
Importante ressaltar que o Estado nacional além de adotar o princípio democrático, acolhe, também, o princípio majoritário, que se insere em seu ordenamento jurídico fundamentando a democracia e a legislação internas (vide, p.ex, a legislação eleitoral e o processo legislativo).
Com efeito, importa concluir que, pelo menos do ponto de vista formal, o acolhimento de todos os princípios mencionados insere o Estado Brasileiro na linha de frente dos Estados contemporâneos comprometidos com a busca do bem comum para o seu povo. Mas apesar de toda consistência legal seria por demais falacioso, conforme já se mencionou, afirmar que o Brasil é um Estado inteiramente voltado à realização da vontade geral dos brasileiros, o que acaba por transformar em letra morta sua própria Carta Constitucional, especialmente no que tange ao preâmbulo e caput do art.1º, ambos combinados com o parágrafo único do mesmo artigo.
Mas a verdade é que a dificuldade de interconectar a soberania do povo (traduzida nas ações do Estado) e os objetivos constitucionais (sobretudo o bem comum) transpõe as fronteiras nacionais e alcança todos os demais Estados democráticos[30], o que faz deduzir que, bem mais complexa do que possa inicialmente parecer, a problemática coloca-se diante da modernidade como uma contradição própria do regime democrático, que, sabendo-se das limitações que possui, ainda assim professa alcance que desde sempre conhece como inatingível.
5. A TEORIA DO PODER CONSTITUINTE E A DEMOCRACIA
O filósofo FRIEDRICH MÜLLER[31], lançando luzes sobre o tema, desenvolve raciocínio que acaba por situar no cerne da problemática o poder constituinte dos Estados modernos. Para ele, a idéia de representação de SIEYÈS, tida à época como única capaz de realizar o ideal democrático rousseauniano dentro de um Estado de dimensões avantajadas, acabou por desvirtuar a fidedignidade com o cumprimento da vontade geral. E o desvirtuamento do compromisso com a realização da vontade geral, por sua vez, foi imediatamente acatado pelo Estado liberal, cujos valores de orientação via de regra estão associados aos valores das classes economicamente dominantes. Por isso, MÜLLER chega a afirmar que o poder constituinte “aparece na histórica com nome ideológico, como ideologia do Estado da burguesia”.[32]
Para ele, o que tem buscado a teoria do poder constituinte ao longo dos tempos, é legitimar juridicamente uma ordem normativa vinculada aos interesses de uma minoria dominadora, através de uma homogeneização do povo[33], justificada como se vontade geral fosse.
Ensina o professor germânico que esta tentativa de homogeneizar o povo transborda os mais diferentes capítulos da história da humanidade, mas, como ninguém, o Estado liberal vem utilizando-se violentamente deste artifício, em razão dos interesses econômicos da burguesia, em tendência que se vê até mesmo na teoria de ROUSSEAU, sobretudo após a interpretação dada por SIEYES. Verbis:
“Um pouco diferente é a situação dos empreendimentos positivamente apresentados para a homogeneização de um povo: pela estruturação econômica apoiada da violência, na “República” de Platão; pela agitação politizante, no “Político” do mesmo; ou como no programa radical de democratização de Rousseau: educação, agitação e constituição exemplar da Constituição (législateaur), costumes republicanos (moeurs). No caso mencionado por último trata de tornar o povo como sujeito político, torná-lo unitário pela politização; há aqui também aqui luares para as mulheres e os pobres.(…)
Em todos esses casos a população heterogênea é “uni”ficada violentamente em favor dos privilegiados; “o”povo é fingido como constituinte pelo monopólio da linguagem e pelo poder definidos do(s) grupo(s) dominante(s). (…)[34]”
“(…) Seria a linha de Sieyès, segundo a qual o ato constituinte não se deveria efetuar por meio de plebiscito, mas no curso de um procedimento representativo…. (…)
Sieyès reconhecera que a premissa de Rousseau, do povo homogêneo unido e capaz de atuação política não se coadunava com um Estado de grandes dimensões territoriais como a França, cujo povo era social e economicamente desigual, com diferenças de classe e interesses opostos”[35]. (grifos do autor)
Desde a concepção dos Estados modernos até os dias atuais, a teoria do poder constituinte vem sendo aplicada nos mais distintos Estados do ocidente mediante o sistema da representação, sempre se sustentando na mesma justificação de SIÈYES, ou seja, na impossibilidade do povo de conceber pessoalmente sua Constituição devido à vasta territorialidade dos Estados aliada à enorme densidade populacional dos mesmos. Assim é que FRIEDRICH MULLER crê que na atualidade em número cada vez mais reduzido de estados “o povo tem chances efetivas de exercer o poder que lhe é atribuído pelos textos ideológicos bem como pelos textos jurídicos e que simultaneamente é exercido na práxis sem e contra o povo” [36]. Para ele:
“Os povos são fraudados sempre de novo – justamente na “constituição” de uma Constituição autoritariamente imposta com a realização mecânica de referendos cognitiva e volitivamente iliberais – com vistas ao pouco que poderia ser realizado por meio de procedimentos e decisões”[37]. (…)
“A dominação no estado e governo de um grupo, nunca é realmente o governo de todos, quer dizer, da população “sobre si mesma”. No Estado Constitucional Democrático o governo é, conforme se afirma, de todos (governo do povo), mas “povo” não é “população”. O conceito de “povo” é seletivo em elevado grau[38]”. (grifos do autor)
Porém, FRIEDRICH MÜLLER não cansa de reafirmar que “…“Povo” não deve funcionar como metáfora, o povo deve poder aparecer como sujeito empírico[39]”. Até mesmo porque “para o poder do Estado o povo é o ponto de partida de legitimação e simultaneamente a instância perante a qual esse poder se deve responsabilizar permanentemente.[40]”
Nota-se que o filósofo alemão situa a teoria do poder constituinte como principal entrave à plena realização da vontade popular. Porém, crê-se que a crítica poderia ser ampliada, pois a verdade é que o poder constituinte, o sistema representativo em geral, tudo são reflexos de um todo bem maior, o regime democrático.
Apesar de sua polêmica biografia (de revolucionário do Terceiro Estado a golpista no 18 Brumário[41]) e de seu inequívoco ímpeto liberalista, não há como afirmar que SIEYÈS em seu desígnio parlamentar procurou falsear, deliberadamente, o ideário russeauniano. Analisando-se a teoria manifesta no Qu’est-ce que le Tiers État? observa-se que a idéia de representação fora, na justa medida e sobretudo naqueles conturbados e imprevisíveis instantes de assembleismo, a mais adequada à realização da vontade geral. Por suas próprias palavras vê-se o quão comprometido estava com a insurgência:
“Que os representante do Terceiro Estado sejam escolhidos apenas entre os cidadãos que realmente pertençam ao Terceiro estado (….) Que seus deputados sejam em números igual ao da nobreza e do clero (…) Que os Estados Gerais votem não por ordens mas por cabeças (…)”[42].
O problema da realização da vontade geral é tanto menos do poder constituinte e tanto mais da própria Democracia. Importa ressaltar que não é de hoje que a Democracia vem sendo vista com reservas[43]. Desde a era helênica, filósofos têm se colocado em contraposição ao regime, justificando ser o mesmo falível diante das dificuldades de se providenciar um ser humano capaz de responder com adequada virtude à imensa liberdade de ação. Platão, p.ex., em sua idéia de Filósofo-Rei, defendida uma oligarquia de iluminados; Maquiavel, por sua vez, argumentava que a uma democracia decadente sucedia sempre uma nova tirania[44].
De fato, consoante já se demonstrou nos capítulos anteriores, a democracia somente veio a ganhar os contornos de regime popular que hoje ostenta, a partir do advento do liberalismo (fins de século XVI), quando a classe burguesa emergente passou a necessitar de um Estado pouco interveniente nas relações econômicas, em outra via, garantidor de liberdades individuais, sobretudo livre comercialização e propriedade privada.
Porém, apesar de ter renascido com o Estado burguês não se pode esquecer que a democracia nasceu, pode-se de certa forma dizer, comunitária[45], e que se mostra perfeitamente adequada para coexistir em regime comunal ou qualquer outro que esteja orientado para o bem comum.
BERNARD CRICK afirma que a democracia “é amante de todos e ainda assim conserva sua magia, mesmo quando um de seus apaixonados percebe que seus favores estão sendo, na sua visão, ilicitamente divididos com muitos outros”[46].
Assiste razão referido autor na medida em que a democracia carrega em si uma ambivalência natural, destacada por SIMONE GOYARD-FABRE[47], e à qual se refere FERNANDO BARBALHO MARTINS como perigosa, na medida em que:
“pari passu com as luminosas promessas de participação social, racionalidade deliberativa, igualdade cidadã e liberdade individual, caminham as ameaças da demagogia, da anarquia e da tirania, cevadas no fosso que separa o ideal de uma sociedade bem ordenada e a insegurança inerente a uma realidade que privilegia a pluralidade de idéias, em lugar da pétrea estabilidade de um mundo organizados em planos metafísicos.[48]”
6. “OS VALORES QUE FAZEM A VIDA HUMANA DIGNA DE SER VIVIDA”
Responder ao desafio de FRIEDRICH MÜLLER de como não transformar o povo em metáfora, dadas condições fático-jurídicas dos Estados modernos é o cerne do presente estudo. Compreende-se que uma resposta adequada pode ser formulada a partir das conclusões retiradas do seguinte comentário de NORBERTO BOBBIO, proferido quando questionado sobre o renascimento ou não do jusnaturalismo no século XX[49]:
“Com a queda dos Estados totalitários, depois da Segunda Guerra Mundial, novas constituições foram elaboradas, estabelecendo limites ao poder legislativo, não só de fato, mas também de direito, promovendo amplas declarações de direitos individuais e sociais e introduzindo o instituto do controle de legitimidade das leis. Além disso, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pelas Nações Unidas, deu-se o primeiro passo para a tutela jurisdicional internacional dos direitos do cidadão contra o Estado. (…)
…entre magistrados, mesmos nos países de direito codificado e, portanto, mais sujeitos à influência do positivismo jurídico, desenvolvem-se idéias favoráveis a uma maior latitude de julgamento, a considerar a norma geral e abstrata uma diretriz em lugar de um comando rigidamente obrigatório.
Não há dúvida de que esses vários movimentos são expressões distintas de ima inspiração comum: a defesa do indivíduo isolado e dos grupos minoritários contra as pretensões antiquadas do Leviatã moderno. Eles expressam a exigência que foi propriamente do jusnaturalismo na maior parte das suas elaborações doutrinárias e que continuam a exercer essa função. No entanto, as doutrinas que os apóiam, geralmente, nada têm a ver com o jusnaturalismo. (…)
O que está sempre renascendo é a necessidade de luta da liberdade contra a opressão, da igualdade contra a desigualdade, de paz contra a guerra.
Essa necessidade independe daquilo que pensam os eruditos sobre a natureza do homem. Assim, mais do que um renascimento do jusnaturalismo, dever-se-ia falar do eterno retorno dos valores que fazem a vida humana digna de ser vivida e que os filósofos revelam, proclamam e, por fim, procuram justificar conforme à época, a cultura e as condições históricas, com argumentos derivados da concepção geral do mundo prevalecente”[50]. (grifos do autor)
Para efeito do presente estudo a pergunta realizada ao jusfilósofo italiano não vem ao caso tanto quanto sua resposta. Independentemente da polêmica que se possa estabelecer entre positivistas e jusnaturalistas no entorno da discussão sobre vida, morte ou renascimento do Direito natural, certo é que BOBBIO acertou quando avaliou que o que está sempre renascendo “é a necessidade de luta da liberdade contra a opressão, da igualdade contra a desigualdade, de paz contra a guerra”, em resumo, “do eterno retorno dos valores que fazem a vida humana digna de ser vivida”, o que, em outra passagem cuida de chamar de “ética pessoal”[51].
Sem receio de desvirtuar o real interesse do autor, pode-se interpretar que o que desponta cada vez mais forte segundo seu raciocínio é a necessidade de se tutelar a aceitação dos direitos humanos como fundamentadores do Direito e do Estado contemporâneos. Afinal, consoante já destacado nos capítulos anteriores, são eles que estão associados à dignidade da pessoa humana ou, em outras palavras, que “fazem a vida humana digna de ser vivida”.
Tal visão, mesmo que por via indireta, acaba por guardar imensa coerência com as ponderações de FÁBIO KONDER COMPARATO apontadas na parte introdutória deste estudo, o que legitima e demonstra originalidade do pensamento formulado pelo teórico brasileiro.
Com efeito, um Estado verdadeiramente democrático, que considera o povo como razão de sua existência, deve inserir como limite de sua atuação, tanto positiva quanto negativamente, os direitos humanos, já que voltados inteiramente ao bem comum. Além disso, porque são multiculturais, imprescritíveis e universalmente aplicáveis, casando bem em qualquer lugar, tempo e circunstância do planeta. Por fim, porque dele decorrem outros direitos e garantias que vêm reforçar cada vez mais a existência de um Estado do povo, pelo povo e para o povo[52].
Desde a segunda metade do século passado JÜRGEN HABERMAS tem se preocupado em encontrar uma saída para a crise democrática que assola os Estados modernos, uma alternativa pacífica e consensual de conceber um sistema desintoxicado dos males evidenciados pela limitação de direitos que efetivamente uma economia de mercado antepõe às camadas desprivilegiadas da população e pelo extremismo de uma economia movida única e exclusivamente pelos interesses do Estado, dissociada dos anseios e necessidades do povo.
Chegou à conclusão de que ao contrário de mera utopia tal Estado poderia ser atingido, desde que encontrasse uma forma de conformação normativa mediante a justificação e não a aceitação pela imposição. Em outras palavras, quando o Direito (refletidor dos valores culturais) fosse capaz de ser compreendido e assimilado pelo conjunto da população como necessário e não de modo impositivo. Formulou, a partir daí, sua Teoria do Discurso, que se ancora sobre dois fundamentais princípios, o da Universalização (“U”) – a partir do qual se infere que para que normas criadas para satisfazer interesses de alguns sejam válidas suas conseqüências devem ser universalmente seguidas e entendidas pelo conjunto dos indivíduos como as mais adequadas – e o princípio do Discurso (“D”) – segundo o qual somente são validas as normas que forem assentidas dentre todos os participantes de um discurso prático.
LUIZ MOREIRA ensina que:
“A Teoria Discursiva do Direito não privilegia nem um direito formal (Estado liberal) tampouco um direito material (Estado social), pois não se atém a padrões dados, mas à constituição de uma liberdade comunicativa que assegura o perpetuar-se da criação do ato jurídico como processo constituinte permanente. Como paradigma procedimental, reveste-se de caráter prescritivo somente a liberdade comunicativa, de sempre de novo proceder às melhores razões que se põem na dança entre a facticidade das objeções e proposições e a idealidade contida em pretensão à aceitabilidade universal. Nesse caso, é a liberdade de constituir seu próprio horizonte, seu arcabouço conceitual e sua normatividade jurídica que é elevada a paradigma, mas não formas de vida dadas imediatamente. A normatividade que é elevada a paradigma é uma normatividade posterior, fruto de um processo decisório constante, que cria e constrói seu próprio sentido.[53]”
Por isso, segundo afirma o autor cearense radicado em Minas Gerais, “a teoria adstrita ao Estado Democrático de Direito, segundo a formulação de Habermas, é prescritiva, pois normatiza condutas após uma formulação consensual daquilo que é passível de universalização”[54], de modo que “a dimensão de validade do Direito e a força legitimadora de sua gênese democrática, ou seja, o processo da política deliberativa, constitui o âmago do processo democrático”[55]. [56]
HABERMAS coloca no epicentro do Estado democrático, sem falsas intenções, o povo, não um povo passivo capaz de assimilar impositivamente toda e qualquer formulação jurídica (até mesmo porque, para HABERMAS, Direito verdadeiro, legítimo, não pode ser instituído senão pelo consenso), mas um povo ativo, capaz de dominar de tal sorte o Direito que não apenas saiba construir de forma autônoma e consensual suas melhores e mais adequadas formulações como respeitar e cumprir, espontaneamente, suas prescrições. Em outras palavras, um povo virtuoso não no sentido de ser possuidor de uma moral inabalável, mas no sentido de ser participativo, cônscio de suas responsabilidades cívicas, porque não dizer, no melhor estilo republicano.
O “xis” da questão é que se a formulação habermasiana situa o sujeito autônomo (indivíduo/povo) no epicentro do Estado[57], de modo que é deste sujeito que o Estado se transforma em capaz de atender às decorrências práticas daquela autonomia, tal prescrição filosófica pode se demonstrar impraticável dada a constituição hermética dos atuais Estados, que cobraria enorme adequação institucional-normativa ao agir comunicativo (a práxis discursiva).
Tais obstáculos formais não existem para o Brasil, já que, conforme se demonstrou anteriormente, a Constituição Federal de 1988 erigiu um arcabouço legal que se coaduna perfeitamente com os princípios do Estado democrático segundo a perspectiva habermasiana, de tal sorte que uma verdadeira adequação para responder ao desafio de não fazer do povo uma metáfora dependerá tão-somente do grau de concretização que se quer dar ao texto constitucional, especificamente no que se refere aos direitos fundamentais[58] e desde que seja garantido aos brasileiros o máximo de participação cidadã na produção normativa e no governo (sendo valioso destacar que tanto direitos humanos quanto cidadania são fundamentos da República)[59]o normativo no ando Barbalho. Ob. a denminada legitimaregime democr democracia de sua mencionada anbigm minimamente os indiv. Afinal, como menciona FERNANDO BARBALHO MARTINS:
“A idéia de cidadania ecoa num dos elementos do princípio habermasiano, já apontado anteriormente com raiz para o estabelecimento de um regime democrático (…)
… extrapola a tradicional noção de elo de ligação formal entre indivíduo e Estado, para enfeixar um conjunto de direitos e deveres relacionados à liberdade, à igualdade e à Justiça, pressupondo exatamente a possibilidade de interferência, na geração de normas jurídicos, dos seus próprios destinatários. Neste ponto torna-se incontornável a constatação de que democracia e direitos fundamentais, em vez de cindirem-se mutuamente, imbricam-se justamente no exercício de cidadania”[60]. (grifo do autor)
No caso do Brasil, a fim de prestigiar a participação cidadã, seria urgente aprimorar os mecanismos de participação direta constitucionalmente já previstos[61], acrescentar outros ainda não positivados (p.ex., o recall[62]), bem assim como reproduzir tais mecanismos nas Cartas estaduais e nas Leis Orgânicas municipais.
De uma vez por todas, é importante que se efetive a reforma política, a fim de que se torne mais transparente e democrático o sistema representativo pátrio. Medidas como financiamento público de campanhas, fidelidade partidária, verticalização e votação por listas partidárias, se conjugados com o fim da reeleição, em nível majoritário, e rodízio, em nível proporcional, são imprescindíveis para o prestígio das agremiações partidárias[63], já que certamente provocarão o rodízio dentro dos partidos e a pulverização do poder dos dirigentes. Além disso, em dimensão macro, tais medidas contribuiriam para a despersonalização da política e a nada conveniente profissionalização dos cargos políticos.
Numa perspectiva de reformulação das Instituições (ainda mais utópica já que dependente de profunda alteração constitucional), é fundamental que se rediscuta o papel do Senado Federal, pois conquanto seu objetivo principal seja a representação dos estados membros no Congresso Nacional, muito mais produtivo seria transformar-lhe em Assembléia com a participação direta dos Governadores, a reunir-se a cada mês, sem autoridade legisferante. Até mesmo porque pode-se afirmar sem receio de cometimento de qualquer equívoco que inexiste qualquer competência privativa do Senado Federal que não possa ser assumida pela Câmara dos Deputados.
Outrossim, cidadania deve ser compreendida não apenas como possibilidade de interferência do povo no processo de produção normativa, através de mandatários ou mesmo diretamente pela produção a partir de mecanismos de participação direta (p.ex, iniciativa popular ou referendo), ou de manifestação acerca de tema de relevância (p.ex, plebiscito). Cidadania deve ser compreendida em sentido lato para que o povo possa ser partícipe não apenas das decisões normativas do Estado, mas também das decisões executivas, sobretudo da localidade onde mora (p. ex, através da participação em discussões abertas e democráticas sobre orçamentos, planos diretores, planos plurianuais, estratégias de gestão, órgãos, conselhos gestores e de controle, etc.)[64].
Neste sentido, importante é reequacionar o sistema federativo brasileiro, de modo que o Poder seja desconcentrado para os municípios, pois sendo neles onde residem os indivíduos é neles que a participação direta do povo tanto no processo normativo quanto no processo decisório se tornará mais acessível e menos onerosa, portanto, mais eficiente.
Em síntese, somente pelo exercício contínuo da cidadania o povo será criador e destinatário, agente e receptor das próprias normas e diligências estatais, daí que um Estado verdadeiramente democrático deverá se policiar para manter permanentemente abertos os mais amplos e distintos canais de participação popular. Segundo já ensinou ROBERTO A. R. de AGUIAR, “não se pode falar em vida humana digna sem se falar em poder popular”[65].
Por sua vez, o povo também deverá dar sua contrapartida neste processo, dispondo-se a assumir sua condição cívica de partícipe comunitário. BRUCE ACKERMAN aponta que “ninguém pode se tornar um cidadão comum se não dispuser de tempo e energia para deliberar sobre o bem comum…”[66], compreendendo-se como cidadão comum aquele capaz de dialogar de maneira justa com o bem-estar público e o bem-estar privado.
Ou seja, de nada adianta que canais de participação popular sejam abertos, tanto no que diz respeito às possibilidades de elaboração normativa quanto às possibilidades de ações efetivas de governo, se o povo não tomar consciência de que sua participação será importante não apenas para si, mas para a comunidade como um todo. A virtú outrora proposta por Maquiavel como essencial à República[67], não consiste em um imperativo subjetivo enquanto padrão de conduta moralística, mas essencialmente num comprometimento cívico com a democracia e com o bem comum, por conseqüência, numa assunção ética como os valores imanentes aos Direitos Humanos.
Como salienta ACKERMAN, a construção de uma comunidade mais inclusiva e justa “depende de nós”:
“Podemos nos aproximar, uns aos outros, rompendo barreiras de classe social, casta ou raça, e trabalharmos juntos para construirmos uma fundação mais justa para nossa vida em comum, ou não. Nossa geração pode ser posta entre aquelas que descobriram significado da função da cidadania, ou podemos passar para os nossos filhos uma história cujas conquistas constitucionais do passado se tornem ainda mais distantes, as distrações a política normal ainda mais presentes, o chamado para um novo exercício da cidadania ainda mais inócuo.”[68]
Assim é que o problema para definir se de fato a soberania popular se realizará ou não de forma não metafórica, de maneira adequada ou não, tudo dependerá de como agirá o povo. Com efeito, e até mesmo por isso, mais uma vez se vê percuciente e original o pensamento de FÁBIO KONDER COMPARATO, pois sem desconhecer a titularidade da soberania popular, não descuidou de afirmar, segundo já destacado na parte introdutória deste artigo, que “não existe soberania inocente”[69], pois “sabemos que a maioria do povo é capaz de esmagar “democraticamente a minoria, em nome do interesse nacional”[70], de modo que prudentemente reforçou a importância de uma sociedade que se define como democrática de tomar como parâmetro político-jurídico a afirmação histórica dos direitos humanos, já que serão estes, na dupla dimensão valorativa e positivada, que ditarão o rumo, a velocidade e a intensidade das transformações sociais, sempre ocorrentes em direção positiva, no sentido do respeito à dignidade humana.
7. ConSIDERAÇÕES FINAIS
A democracia possui um charme e está na ordem do dia: do Estado mais transparente ao mais fechado, do egoísta ao altruísta, do mais autoritário ao mais flexível, todos se utilizam do termo “democrático” para se justificarem. Isso ocorre porque, consoante já se viu, a democracia possui inúmeras matizes que lhe possibilita co-existir nos mais diferentes tipos de organização da vida civil. A ambivalência da democracia é algo tão real quanto real é sua possibilidade de se fazer legitimar pelo povo, sem qualquer correspondência com aquele a título de respeito.
Para que uma verdadeira democracia aconteça é necessário que o povo se coloque no epicentro do Estado, de forma que possa irradiar para a estrutura estatal sua vontade normativa. Tal irradiação deve-se dar de maneira dialógica, pela razão comunicativa, de tal sorte a desembocar na formação de uma estrutura normativa arquitetada pelos Direitos Humanos e orientada para o bem comum. Somente a efetivação da cidadania poderá conferir à práxis discursiva uma perspectiva de realização e duração.
O Estado brasileiro, que já possui um arcabouço voltado para o bem comum, deverá buscar a efetiva concretização dos direitos fundamentais projetar-se cada vez mais para a municipalização do poder, e consorciar-se à luta pela abertura e aprimoramento de tantos quanto possíveis forem os canais de participação popular, tanto de produção normativa quanto de ação ou desempenho estatal, sem jamais perder de vista que a soberania popular não prescinde de limites cujos parâmetros devem ser definidos pelos direitos humanos.
Somente assim poderão os brasileiros regozijar-se de terem vivenciado uma verdadeira democracia, em data que será lembrada como o dia da emancipação nacional.
Professor do Curso de Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza/UNIFOR. Mestre em Direito/UNIFOR. Doutorando em Direito/USAL (Univ. Salamanca). Especialista em Direito do Trabalho/UNIFOR. MBA em Gestão Empresarial/FGV. Autor do livro Controle do Judiciário: da expectativa à concretização (o primeiro biênio do Conselho Nacional de Justiça)”, Ed. Conceito Editorial. Advogado sócio-gerente de Gomes e Uchôa Advogados Associados.
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