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Política e direito: uma visão autopoiética (Análise crítica da doutrina de Benjamin Zymler)

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Resumo: O presente artigo aborda um exame pormenorizado e sistemático do conceito de autopoiesis à luz do pensamento de Benjamin Zymler, mormente no contexto dos subsistemas sociais (destacando-se o subsistema jurídico), em decorrência das vicissitudes do mundo hodierno. Faz-se, portanto, o estudo do tema a partir da respectiva evolução histórica e das diferentes perspectivas ideológicas, demonstrando-se que, mediante a redução da complexidade social e da diferenciação funcional, as ideologias asseguram a comunicação e, consequentemente, a sobrevivência dos sistemas sociais autopoiéticos. Ao libertar-se da interferência dos outros subsistemas sociais, o direito torna-se mais flexível, admitindo uma maior diversidade de condutas, independentemente do consentimento de outras instituições. Diante da significativa complexidade social do mundo moderno, é evidente a necessidade de uma ordem jurídica autopoiética – mesmo que em uma etapa evolutiva ainda intermediária –, a fim promover a fixação de expectativas comportamentais na sociedade.

Palavras-chave: autopoesis; Benjamin Zymler; subsistemas sociais; ideologias; comunicação; paradoxos; tautologias; sociedades modernas; complexidade.

Sumário: 1.Introdução. 2.Visão Geral do conceito de autopoiesis. 3.A Teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. 4.Aspectos mais relevantes dos sistemas autopoiéticos. 5.Os sistemas autopoiéticos sociais e o processo de comunicação. 6.Paradoxos e Tautologias: ameaças à sobrevivência dos subsistemas sociais. 7.A comunicação e os mecanismos redutores de complexidade. 7.1.Linguagem. 7.2.Meios de difusão. 7.3.Meios de comunicação simbolicamente generalizados. 8.A influência de Darwin na Teoria Luhmanniana. 9.Critérios de diferenciação social. 10.Autopoiesis: o gradualismo de Teubner versus a rigidez Luhmanniana. 11.Evolução autopoiética do subsistema jurídico. 12.A autopoiesis jurídica e o contexto brasileiro. 13.Conclusão. Referências.

1. Introdução:

Valendo-se de uma análise ampla e, concomitantemente, detalhada acerca do conceito de autopoiesis, Benjamin Zymler expõe diferentes sistemas passíveis de organização autopoiética e a atuação de seus principais elementos constituintes. Entretanto, devido à crescente complexidade do mundo moderno, o autor procura enfatizar a autopoiesis no âmbito dos subsistemas sociais, como, v.g., o subsistema jurídico.

2. Visão Geral do conceito de autopoiesis:

Na década de 70, os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela elaboram uma teoria inovadora: “a idéia de sistema autopoiético como uma rede de produção de componentes que produz seus próprios componentes. Mas, para que isso pudesse ocorrer, o sistema deveria ser capaz de operar de maneira auto-referente, distinguindo o próprio do alheio”[1]. Isto é, os elementos dos sistemas biológicos seriam capazes de interagir entre si e de originar novos elementos, sem nenhuma interferência do ambiente externo. As células que constituem um organismo biológico, por exemplo, são produzidas pelo próprio organismo, em total autonomia em relação a seu ambiente. Trata-se do chamado fechamento operacional.

Ademais, vale ressaltar que, na década seguinte, ocorre a primeira tentativa de transposição da teoria autopoiética biológica para o campo de atuação dos sistemas sociais. Nesta tarefa, destaca-se o jurista e sociólogo alemão Niklas Luhmann, o qual estende o processo auto-reprodutivo e circular para as organizações sociais – compostas por atos comunicativos –, distinguindo estas dos sistemas vivos e dos sistemas psíquicos. Destarte, com o intuito de explicar sociologicamente vários setores da sociedade – como, v.g, direito, política, economia, dentre outros –, este ilustre jurista desenvolve uma teoria da complexa sociedade contemporânea.

3. A Teoria dos sistemas, de Niklas Luhmann:

Anteriormente à elaboração da teoria social luhmanniana, encontrava-se em voga a teoria de sistemas de Talcott Parsons: isto é, uma teoria que visava compreender a sociedade como um sistema aberto, sendo, pois, incapaz de captar a complexidade de sistemas dotados de sentido. Assim sendo, com o intuito de desenvolver uma teoria de sistemas mais condizente com a sociedade moderna e seus subsistemas funcionais, Luhmann elabora uma teoria mais ampla e diversificada, que concebe a comunicação como a operação básica de tais sistemas.

Seguindo o pensamento de Ashby (1958), a teoria de sistemas de Luhmann defende que um sistema é sempre menos complexo que seu ambiente, mas deve ser capaz de se referir a este reduzindo sua complexidade: assumindo suficiente variedade de estados e definindo os estados do ambiente[2]. Ou seja, a teoria deveria corresponder à complexidade da sociedade moderna. Ademais, conforme já explicitamos, uma das idéias centrais do pensamento luhmanniano corresponde ao conceito de autopoiesis – criado pelo biólogo Humberto Maturana – transferido para o âmbito social.

4. Aspectos mais relevantes dos sistemas autopoiéticos:

Primeiramente, faz-se mister salientar que os sistemas autopoiéticos  são aqueles que atuam em clausura operativa, isto é, não há comunicação entre o sistema e o ambiente. Este influencia aquele apenas através de “irritações”, que são interpretadas por códigos próprios do sistema. Considerando tal fechamento operacional, Luhmann afirma: Por operativamente clausurados deben definirse los sistemas que, para la producción de sus propias operaciones, se remiten a la red de sus propias operaciones y en este sentido se reproducen a si mismos. Con una formulación un poco más libre se podría decir: el sistema debe presuponerse a si mismo, para poner en marcha mediante operaciones suyas su propia reproducción en el tiempo; o con otras palabras: el sistema produce operaciones propias anticipando y recurriendo a operaciones propias y, de esta manera, determina qué es lo que pertenece al sistema y qué al entorno[3].

Destarte, em relação às características mais significativas dos sistemas autopoiéticos – como, v.g., os sistemas sociais –, vimos que a auto-referência lhes é essencial: isto é, capacidade de estabelecer aquelas relações entre si ao mesmo tempo em que diferenciam essas relações das relações mantidas com seu ambiente. Pode-se dizer que a auto-referência possui três formas de manifestação: a auto-referência de base, que, no caso dos sistemas sociais, corresponde à distinção entre a emissão e a informação; a reflexividade, que atua na auto-reprodução autopoiética; e, por fim, a reflexão – a saber, a diferenciação entre sistema e ambiente a partir de uma auto-descrição.

5. Os sistemas autopoiéticos sociais e o processo de comunicação:

Inobstante o evidente isolamento operacional dos sistemas autopoiéticos, deve-se ratificar a relação existente entre a consciência – elemento componente dos sistemas psíquicos – e a comunicação – elemento componente dos sistemas sociais. Assim sendo, para evitar o problema da contingência dupla, isto é, “a não-coincidência entre a seletividade do emissor e a do receptor”[4], faz-se mister a atuação de certos instrumentos redutores da complexidade: os sistemas autopoiéticos sociais. Concebendo-se, pois, a complexidade como a abundância de relações, possibilidades, conexões, sem que seja possível estabelecer uma linha contínua entre cada elemento, constitui dever dos sistemas sociais a sua diferenciação frente às demais ordens normativas. Nesse sentido, Luhmann e De Giorgi, ao propuserem o chamado acoplamento estrutural entre os sistemas psíquicos e sociais, negam a possibilidade de interpenetração direta entre os organismos vivos e os sistemas comunicativos.

Destarte, através do acoplamento estrutural – condição de sobrevivência da organização autopoiética –, o sistema e o ambiente interagem e estimulam-se mutuamente. Todavia, vale salientar que tal relação sistema/ambiente é determinada pela estrutura do sistema: isto é, o agente perturbador só pode estimular o sistema de acordo com as possibilidades definidas por tal estrutura. Portanto, as mudanças de estado do sistema social só podem ser especificadas por sua própria estrutura, e não por seu ambiente.

Ademais, conforme já apontamos, a comunicação representa a operação específica dos sistemas sociais – sistemas dotados de sentido –, que não sobrevivem na ausência desse elemento. Porém, para concretizar-se, o ato comunicativo exige a ocorrência de três seleções básicas: a emissão, a informação e a compreensão, sendo essa última o processo seletivo que promove a separação entre o ato de comunicar e a informação, do ponto de vista do observador. Dessa forma, embora a observação – enquanto operação – ocorra de maneira aleatória, resultando em paradoxos a serem superados pelo próprio sistema, isso não significa que a auto-observação seja inviável, pois esta constitui um dos pressupostos para a organização autopoiética.

6. Paradoxos e Tautologias: ameaças à sobrevivência dos subsistemas sociais:

Primeiramente, faz-se mister enfatizar que os paradoxos e as tautologias – gerados por processos auto-descritivos –, assim como sua superação, são inerentes aos subsistemas autopoiéticos sociais. Por conseguinte, as diversas teorias jurídicas, elaboradas no decorrer da história, constituem tentativas de encobrir determinados paradoxos, como é o caso, v.g., da teoria hierárquica das fontes do direito – forma de superar a impossibilidade lógica de se fixar uma fonte jurídica suprema.

Destarte, considerando que tanto as tautologias como os paradoxos podem acarretar o bloqueio da comunicação, é imprescindível ratificar o papel das ideologias na superação de tais impasses. Isto é, mediante a redução da complexidade social e da diferenciação funcional, as ideologias asseguram a comunicação e, consequentemente, a sobrevivência dos sistemas sociais autopoiéticos.

7. A comunicação e os mecanismos redutores de complexidade:

Sabe-se que a materialização do processo comunicativo requer o uso de certos mecanismos de controle, responsáveis pela redução da complexidade crescente: tais mecanismos são proporcionados, primordialmente, pela linguagem, através do chamado código binário. Ou seja, todas as operações realizadas no interior do sistema são guiadas pela seleção binária entre “sim” ou “não”, promovendo-se, portanto, a redução das inúmeras possibilidades comunicativas.

Nos subsistemas sociais, a realização da comunicação depende da atuação de três fatores principais: a linguagem; os meios de difusão; e os meios de comunicação simbolicamente generalizados. Analisemos, pois, cada um desses instrumentos comunicativos:

7.1. Linguagem:

Conquanto possa haver comunicação independentemente da linguagem, esta é imprescindível para reduzir incertezas, visto que amplia a probabilidade de compreensão da comunicação ao diferenciar a emissão da informação. Ademais, como afirma Tércio Sampaio, em sua “Introdução ao Estudo do Direito”, “a fala é um modo comunicativo especial que envolve mensagens complexas, distinguindo-se a mensagem que emanamos – relato – e a mensagem que emana de nós – cometimento”[5]. Assim, interpretar – isto é, “selecionar possibilidades comunicativas da complexidade discursiva”[6] – significa reduzir a complexidade dos sistemas sociais.

7.2. Meios de difusão:

Com o progressivo desenvolvimento das sociedades, surgem novos meios de difusão da comunicação, como, v.g., a imprensa, a televisão, o computador, dentre outros, os quais acabam por facilitar o processo comunicativo. Assim sendo, torna-se possível a separação temporal e espacial entre a emissão e a compreensão, além do aumento de possibilidades comunicativas em gênero e em número.

7.3. Meios de comunicação simbolicamente generalizados:

Verdade, direito, poder, amor. Estes são alguns dos instrumentos utilizados para ampliar a probabilidade de aceitação da comunicação, em contextos extremamente complexos, como, v.g., as sociedades modernas. Destarte, os principais fatores responsáveis pelo êxito de tais instrumentos correspondem ao seu simbolismo e à sua capacidade de generalização, sendo, ademais, o código binário a sua principal característica estrutural. Em suma, diante da evolução das sociedades modernas, o uso dos meios de comunicação simbolicamente generalizados contribuiu significativamente para a diferenciação funcional dos subsistemas sociais.

8. A influência de Darwin na Teoria Luhmanniana:

Com o intuito de explicar cientificamente a evolução social, no âmbito da comunicação, Niklas Luhmann transferiu conceitos da teoria darwinista – como, v.g., variação, seleção e estabilização – para a análise dos sistemas sociais autopoiéticos. Entretanto, diferentemente da teoria de Darwin, a tese de Luhmann parte do pressuposto de que o sistema, cujas operações são realizadas em clausura operativa, já está adaptado ao ambiente.

Dentre os mecanismos acima expostos, vale salientar que, enquanto a variação remete aos atos comunicativos, a seleção – que, nas sociedades modernas, é efetivada pelos meios de comunicação simbolicamente generalizados – se refere às estruturas propriamente ditas. Ademais, após a seleção das variações, Luhmann faz alusão a um terceiro mecanismo – a estabilização – que, ao atenuar o impacto gerado pela novidade selecionada, garante a preservação das estruturas sistêmicas.

9. Critérios de diferenciação social:

Na perspectiva de Luhmann, a sociedade sempre deve ser analisada a partir do binômio sistema/meio ambiente. Considerando tal afirmativa, podemos observar a existência de diversos critérios de diferenciação social, no decorrer da História, como, v.g., a segmentação; a distinção centro-periferia; a estratificação; e, por fim, a diferenciação funcional. Trata-se do que Luhmann chama de “diferenciação das formas de diferenciação”.

Primeiramente, convém salientar que a segmentação – critério diferenciador característico das sociedades primitivas – tinha por base, sobretudo, a descendência, como é o caso, v.g., das tribos, dos clãs e das famílias. Embora tais sociedades permitissem algumas diferenças de papéis – como, por exemplo, o de sacerdote ou chefe – essas diferenças não chegavam a alterar a estrutura segmentaria.  Não obstante, a partir do momento em que certos grupos segmentados passam a enriquecer em detrimento de outros – fato bastante comum na pré-modernidade –, consolidam-se formas mais complexas de desigualdade social: a distinção segundo o centro e a periferia. Nesse novo contexto histórico, já não são viáveis as normas de reciprocidade, visto que, agora, o centro constitui a síntese do poder de toda a sociedade. Ademais, vale ressaltar que “a diferenciação em termos de centro/periferia ocorre como resultado da diferenciação do centro, pois a periferia mantém a diferenciação segmentaria das famílias, podendo, inclusive, sobreviver sem o centro”[7].

Todavia, com o aumento da complexidade social surge, no início da Era Moderna, uma nova forma de diferenciação, caracterizada pelo imobilismo entre os estratos sociais – isto é, a estratificação. Para o sociólogo J. Turner (1984), “quando os recursos importantes para uma sociedade são distribuídos desigualmente e quando, como conseqüência, as pessoas podem ser classificadas em razão de suas parcelas de recursos, que definem suas diferenças, existe um sistema de estratificação numa sociedade”. A partir do século XVIII, porém, diante do significativo progresso do capitalismo, a sociedade moderna atinge tal complexidade que torna inviável a rígida diferenciação por estratos. Isto é, a desigualdade entre os subsistemas parciais deixa de ser hierárquica e passa a se basear nas diferentes funções sociais, que são cumpridas pelo subsistema de maneira exclusiva. Tem-se, pois, a prevalência da diferenciação funcional.

Destarte, com o crescente acesso à informação no mundo contemporâneo e, por conseguinte, com a ampliação da complexidade social, faz-se imprescindível o uso de critérios diferenciadores que, através da fixação de expectativas, possam reduzir as possibilidades comunicativas. Emilio Álvarez (2003), em “La Teoria de Niklas Luhmann”, afirma que: La complejidad, que en la perspectiva luhmanniana no es vista como un obstáculo ni una dificultad para la construcción de un sistema, se constituye en la condición que hace posible al sistema. Un sistema surge en un proceso de reducción de complejidad. Es menos complejo que su entorno y sus limites respecto de él no son físicos, sino de sentido[8]. Assim, ao se diferenciarem do ambiente que os circunda, os sistemas autopoiéticos reduzem sua complexidade e constituem os subsistemas sociais.

10. Autopoiesis: o gradualismo de Teubner versus a rigidez Luhmanniana:

Sendo contrário à inflexibilidade de Luhmann – para o qual sistema é ou não autopoiético – Günther Teubner adota uma visão gradativa da autopoiesis: o grau de autonomia de um dado subsistema social dependeria de seu processo evolutivo. Destarte, de acordo com Teubner, os subsistemas aprimoram, gradualmente, seus potenciais de auto-observação, auto-constituição, e auto-reprodução; até resultar em uma organização autopoiética que atue em “absoluto” fechamento operacional. Assim sendo, pode-se dizer que a evolução do subsistema jurídico, em algumas sociedades, constitui o exemplo ideal para a compreensão da tese teubneriana.

11. Evolução autopoiética do subsistema jurídico:

De acordo com o acima exposto, – acerca da concepção teubneriana –, pode-se falar em autonomia do subsistema jurídico, frente aos demais subsistemas sociais, como um processo gradativo. Nesse sentido, toda sociedade passaria por três fases evolutivas: a fase de indiferenciação – ou fase alopoiética –; a fase intermediária; e, por fim, a fase propriamente autopoiética. Explicitemos, sinteticamente, cada uma dessas fases.

Primeiramente, convém ressaltar que em sociedades com escasso grau de complexidade – como, v.g., as sociedades antigas – não há uma separação entre o direito que efetivamente acontece na comunidade e o direito criado pela natureza. Isto é, os diversos subsistemas sociais – a saber, direito, religião, moral, usos sociais etc. – interferem uns sobre os outros e, por conseguinte, o ilícito jurídico confunde-se com o ilícito moral ou religioso. Trata-se, pois, de uma etapa precisamente alopoiética.

Inobstante, no decorrer da história, algumas sociedades desenvolvem uma progressiva complexificação social, fato que acarreta o início da diferenciação funcional entre as várias ordens normativas existentes. Assim, nesta fase intermediária, embora o subsistema jurídico ainda não se encontre em “absoluta” clausura operacional, já adquire muitas das características autopoiéticas: as normas tornam-se produção exclusivamente jurídica; a doutrina distingue-se da práxis; e a auto-descrição e auto-constituição do direito se consolidam.

Por fim, no momento em que o direito alcança sua auto-reprodução, tem-se um sistema plenamente autopoiético, cujas operações são realizadas em fechamento operacional, sendo este característico das sociedades altamente complexas. Segundo Luhmann, “pode-se definir uma sociedade como “complexa” exatamente com base na separação entre direito, religião, moral, política, economia, etiqueta etc., dentre outras diferenciações”[9]. Ademais, como afirma João Maurício Adeodato, em sua “Ética e Retórica”, a relativa emancipação da ordem jurídica frente às outras ordens normativas – a saber, a autopoiesis ou auto-referência do sistema jurídico – constitui um dos pressupostos para a dogmatização do direito[10]. Assim, ao libertar-se da interferência dos outros subsistemas sociais, o direito torna-se mais flexível, admitindo uma maior diversidade de condutas, independentemente do consentimento de outras instituições.

12. A autopoiesis jurídica e o contexto brasileiro:

No sistema jurídico brasileiro, é bastante notável a interferência de outros subsistemas sociais no âmbito do direito, como ocorre, por exemplo, no subsistema jurídico-penal carcerário, no qual há influência, sobretudo, da condição econômica na decisão judicial. Nesse sentido, a dicotomia “inclusão/exclusão”, resultante da diferenciação funcional da sociedade moderna, estabelece-se como uma superestrutura ou metacódigo que, na prática, ultrapassa o código “direito/não-direito”, considerado o código mais elevado para a esfera jurídica[11].

Ademais, convém salientar que, embora o Brasil apresente características essenciais a um Estado moderno – tais como, ascensão da lei em detrimento de outras fontes do direito; pretensão de monopólio estatal na produção das normas jurídicas; e positivação do direito –, o País possui algumas peculiaridades exclusivas em seu âmbito jurídico. Trata-se do chamado direito alternativo – característico dos países subdesenvolvidos –, isto é, “um direito que se oferece como alternativa diante do direito dogmático, aproveitando-se de suas impotência e incompetência no trato dos conflitos”[12]. Assim, o sistema jurídico brasileiro se utiliza de estratégias extralegais, que combinam aspectos jurídicos e não jurídicos em um sistema alopoiético.

Todavia, seguindo a concepção do gradualismo teubneriano, seria um grande equívoco conceber o direito brasileiro como um subsistema tipicamente alopoiético.  Isso porque, diante da significativa complexidade social do País, é evidente a necessidade de uma ordem jurídica autopoiética – mesmo que em uma etapa evolutiva ainda intermediária –, a fim promover a fixação de expectativas comportamentais na sociedade.

13. Conclusão:

Em síntese, através desta breve exposição acerca do conceito de autopoiesis, pode-se perceber a importância do tema para uma adequada compreensão acerca do subsistema jurídico nas sociedades modernas. Como afirma Niklas Luhmann, "a autopoiesis é igualmente condição e resultado da evolução, é assim a forma da evolução da evolução"[13].

 

Referências
ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. São Paulo. Saraiva. 2ª ed. (2006).
ÁLVAREZ, Emilio Geraldo Arringa. La Teoria de Niklas Luhmann. Convergência.  México (2003).
ARNAULD, André-Jean. Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia jurídica. Editora Lúmen Júris Ltda.  Rio de Janeiro (2004).
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. São Paulo. Atlas, 4ª ed.
LUHMANN, N.. El Derecho de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate.  México. Universidad Iberoamericana (2002).
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Trad. de Peter Naumann.
RODRIGUEZ M., Dario. Invitación a la sociologia de Niklas Luhmann. Instituto de Sociologia. Pontificia Universidad Católica de Chile.
ZYMLER, Benjamin. Política e Direito: Uma visão Autopoiética. Juruá Editora. Curitiba (2002).
Notas:
[1] Luhmann, Niklas. El derecho de la sociedad. México. Universidad Iberoamericana (2002) apud Rodriguez, Dario. Invitación a la Sociologia de Niklas Luhmann, p. 31.
[2] Sobre a “lei de variedade”, ver: Ross, Ashby W.. An Introduction to Cybernetics apud Rodriguez, Dario, ob. cit., p. 28.
[3] Luhmann, Niklas. El Derecho de la Sociedade, pp. 99-100.  Trad. Javier Torres Nafarrate. México. Universidad Iberoamericana (2002).
[4] Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito, p. 260.
[5] Ferraz Júnior, Tércio Sampaio, ob. cit., p. 260.
[6] Idem, ibidem.
[7] Rodriguez, Dario, ob. cit., p. 43.
[8] Álvarez, Emilio Geraldo Arringa. La Teoria de Niklas Luhmann, p.278. México (2003).
[9] Luhmann, Niklas e De Giorgi, Raffaele. Teoria della società, p. 353.  Milano. Franco Angeli (1995) apud Adeodato, João Maurício. Ética e Retórica, p. 125 (2006).
[10] Adeodato, João Maurício, ob. cit., p. 169.
[11] Muller, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia, p. 94.  Trad. de Peter Naumann.
[12] Adeodato, João Maurício, ob. cit., p. 23.
[13] Arnauld, André-Jean. Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica, p.67.  Rio de Janeiro (2004).

Informações Sobre o Autor

Manuela Clemente Silva Torres Rabelo

Formada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco UFPE e Advogada


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Equipe Âmbito Jurídico

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