Por uma formação cidadã ativa

Resumo: Considerando que as relações jurídicas são inescapáveis à realidade cotidiana de todo brasileiro e em observância ao art. 205 da Constituição Federal, o qual atribui à educação a responsabilidade pela preparação para o exercício da cidadania, o presente trabalho tem como objetivo a análise crítica acerca da importância da socialização do saber jurídico para a formação de cidadãos participativos na sociedade brasileira, tornando cognoscíveis determinados direitos e deveres minimamente necessários à vivência dentro dos parâmetros da democracia, principalmente através das instituições de ensino médio e fundamental.

Palavras-chave: Cidadania ativa; Educação jurídica popular; Estado Democrático de Direito.

Abstract: Whereas the legal relations are inescapable to everyday reality of all Brazilians and in compliance with art. 205 of the Federal Constitution , which assigns to education the responsibility for preparing for citizenship , this work aims to critical analysis about the importance of socialization of legal knowledge to form participative citizens in Brazilian society , making certain knowable rights and minimally necessary duties to the experience within the parameters of democracy , mainly through the primary and secondary educational institutions.

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Keywords: active citizenship ; Popular legal education ; Democratic state

Sumário: Introdução. 1. A compreensão cidadã como ponto de partida. 1.1. A evolução do conceito de cidadania. 1.2. A trajetória da cidadania no Brasil. 2. Cidadania: uma questão para a educação. 2.1 Responsabilizando as instituições de ensino pela formação cidadã. 2.2. A socialização do saber jurídico como meio de formar cidadãos ativos. 3. Conclusão.

Introdução

A formação do ser humano começa na família. É no ambiente familiar que se inicia um processo de humanização e libertação, de transmissão de valores morais e éticos. A educação familiar aponta os primeiros passos para o exercício da cidadania e, bem cedo, a escola também participa desse processo (GALVÃO, 2010). Ou, ao menos, deveria participar.

Se por um lado, na família, é completamente desarrazoado o Estado se infiltrar diretamente na esfera íntima do cidadão, por outro lado, nas escolas, é indubitável que a ele cabe criar as normas que regem a educação dos brasileiros, e, assim, contribuir precipuamente para efetivação da formação cidadã. Aliás, esta já é a exigência do art. 205, da Constituição Federal. Entretanto, na prática, a realidade é que a grade curricular das instituições de ensino não propõe um projeto pedagógico capaz de consolidar este preceito constitucional.

Este estudo monográfico busca analisar a importância da formação de cidadãos ativos em um Estado Democrático de Direito. Parte-se do pressuposto de que é preciso responsabilizar o Estado pela formação cidadã, através das instituições de ensino médio e fundamental, haja vista o seu posicionamento garantista frente aos direitos fundamentais elencados em nossa Carta Magna. A desatenção do Estado em relação à aplicabilidade dos direitos, fruto do exercício do seu poder constituinte, apenas reflete que, em qualquer tempo, os limites do discurso sempre encontraram-se em incongruência com a realidade (AZEVEDO, 2000). Ao consistir em direitos e deveres, a cidadania enriquece a subjetividade e abre-lhe novos horizontes de auto-realização, permitindo, assim, a ampliação de conhecimentos imprescindíveis ao dia-a-dia de cada brasileiro e, via de conseqüência, o exercício da cidadania ativa.

1 – A compreensão cidadã como ponto de partida

1.1 A evolução do conceito de cidadania

Cidadania não é uma definição estanque, mas um conceito histórico, que varia no tempo e no espaço. Etimologicamente, o termo cidadão tem origem na expressão latina civis, traduzido do grego polites, que significa o sócio da polis ou civitas, ou seja, cidade-Estado da Antiguidade Greco-Romana. O seu significado clássico associava-se à participação política. De acordo com Aristóteles apud Bittar (2002, p.74), “ser cidadão é um encargo ativo no quadro das atribuições cívico-políticas, e consiste em participar nas funções de juiz e na elegibilidade nas magistraturas”. Sob esta perspectiva, mulheres, escravos e crianças não eram dotados desse título. Durante muito tempo a idéia de cidadania esteve ligada aos privilégios, pois os direitos dos cidadãos eram restritos a determinadas classes e grupos de pessoas (CARVALHO, 2002).

Extinta a civilização greco-romana, durante a Idade Média, o status civitatis foi substituído por um complexo de relações hierárquicas privadas, caracterizadoras das relações sociopolíticas do feudalismo, que fez suprimir a cidadania como elemento de liberdade entre os iguais, o homem medieval, ou era vassalo, ou servo, ou suserano; jamais foi cidadão. Os princípios de cidadania e de nacionalidade dos gregos e romanos estariam “suspensos”, sendo retomados com a formação dos Estados modernos, a partir de meados do século XVII.

Ao longo da história, o conceito de cidadania foi se aprimorando e na Idade Moderna uniu os direitos universais com o conceito de nação, introduzindo os princípios de liberdade e igualdade perante a lei e contra os privilégios. Contudo, ainda era uma cidadania restrita às elites, porque dependia dos direitos políticos, vetados para a maioria. Todavia, começam a surgir personagens que marcariam a história da cidadania, como Rousseau, Montesquieu, Diderot, Voltaire e outros. Segundo Santana (2011), esses pensadores passam a defender um governo democrático, com ampla participação popular, o fim de privilégios de classes, ideais de liberdade e igualdade como direitos fundamentais do homem e tripartição de poder.

No atual período contemporâneo-democrático, verifica-se que a definição de cidadão não se atém mais a essas classificações. Hoje, homens, mulheres e crianças são sujeitos de direito, independente de raça, faixa etária ou sexo. Segundo Dagnino (2000), as mudanças ocorridas na sociedade, nos valores e na educação, conduziram a uma redefinição da cidadania e de seu referente central: a noção de direitos, elaborando novas identidades na sociedade, e rompendo com as estratégias predominantes de organização política dos setores populares, caracterizadas pelas relações de favor, pelo clientelismo e pela subordinação. A nossa Carta Magna, então, estabeleceu a cidadania como princípio fundamental da República Federativa do Brasil. Mas, afinal, o que é cidadania?

Segundo Boaventura de Sousa Santos (2008), o princípio da cidadania abrange exclusivamente a cidadania civil e política e o seu exercício reside exclusivamente no voto. A redução da participação política ao exercício do direito do voto levanta a questão da representação. Já para o autor Dalmo Dallari (1994), a cidadania inicia a situação jurídica de uma pessoa em relação a determinado Estado. Aquele que pertence ao povo brasileiro é cidadão brasileiro e quem pertencer ao povo de outro Estado será cidadão desse outro Estado. A pessoa que não esta integrada em qualquer povo é qualificada como "apátrida".

Paulo Bonavides (1998, p. 68), ao analisar os elementos constitutivos do Estado, apesar de estabelecer os conceitos de povo do ponto de vista político e sociológico, enfatiza o prisma jurídico por onde aborda a noção de cidadania:

“Só o direito pode explicar plenamente o conceito de povo. Se há um traço que o caracteriza, esse traço é sobretudo jurídico […] Com efeito, o povo exprime o conjunto de pessoas vinculadas de forma institucional e estável a um determinado ordenamento jurídico, ou segundo Raneletti, ‘o conjunto de indivíduos que pertencem ao Estado, isto é, o conjunto de cidadãos’. Diz Ospilati que o povo é ‘o conjunto de pessoas que pertencem ao Estado pela relação de cidadania’, ou no dizer de Virga ‘o conjunto de indivíduos vinculados pela cidadania a um determinado ordenamento jurídico’. É semelhante o vínculo de cidadania que prende os indivíduos ao Estado e os constitui como povo. […] Urge por conseguinte dar ênfase ao laço de cidadania, ao vínculo particular ou específico que une o indivíduo a um certo sistema de leis, a um determinado ordenamento estatal”.

Por outro lado, partindo da conceituação de cidadania proposta por Marshall (1967), ressalvando que tal conceituação se deu num contexto político marcado pelo forte avanço das idéias de Estado de bem estar social, observa-se que é a partir da visão tripartite da cidadania que o referido autor analisa os direitos, os quais assegurariam a participação integral do indivíduo na sociedade. A cidadania é definida por Marshall (1967, p. 63-64) da seguinte maneira:

“O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça […]. Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo. […]. O elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade”.

No entanto, aqui, não se busca destacar tal conceito como simples conjunto de pessoas dotadas de direitos políticos. O conceito de cidadania para o direito brasileiro tem um caráter fragmentário e residual. Segundo Alexandre César (2002, p. 37), “a teoria jurídica dominante no Brasil tem relegado a cidadania a uma categoria estática e cristalizada, tendo por conteúdo a soma da nacionalidade mais direitos políticos, concebidos basicamente como direitos eleitorais (votar e ser votado)”. Neste mesmo sentido, a obra do professor José Afonso da Silva (2006, p. 330), distingue nacionalidade de cidadania:

“Aquela é vinculo ao território estatal por nascimento ou naturalização; esta é um status ligado ao regime político. Cidadania (…) qualifica os participantes da vida do Estado, é atributo das pessoas integradas na sociedade estatal, atributo político decorrente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido pela representação política. Cidadão, no direito brasileiro, é o indivíduo que seja titular dos direitos políticos de votar e ser votado e suas conseqüências. Nacionalidade é conceito mais amplo do que cidadania, e é pressuposto desta, uma vez que só o titular da nacionalidade brasileira pode ser cidadão […] Os direitos da cidadania adquirem-se mediante alistamento eleitoral na forma da lei.”

 Conforme Alexandre César (2002, p. 41), “esta é uma abordagem superficial, uma leitura limitada, de caráter eminentemente normativista, calcado numa abordagem pretensamente científica, que acaba por reduzir o conceito de cidadania a uma elaboração meramente jurídica, decorrente dos preceitos constitucionais”. Entende o mencionado autor que destas concepções, conclui-se que permanece na teoria jurídica dominante no Brasil o conceito de cidadania oriundo das revoluções burguesas, reduzido ao exercício dos direitos políticos dos indivíduos. Busca-se aqui a cidadania num sentido mais amplo, reconhecendo o indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal, não se restringindo ao cidadão eleitor, mas projetando-se em vários instrumentos jurídico-políticos imprescindíveis para viabilizá-lo. 

Como enfatiza Vera Andrade (1993, p. 29), ao aprisionar conceitualmente a cidadania

“como categoria estática e cristalizada – tal qual sua inscrição nas Cartas constitucionais – dogmatiza o seu significado, reduzindo-o a um sentido unívoco. Nessa perspectiva, esvazia-se a sua historicidade, neutraliza-se a sua dimensão política em sentido amplo e sua natureza de processo social dinâmico e instituinte. Promove-se, enfim, uma forçosa redução de sua complexidade significativa, de modo a impedir a tematização dos componentes democrático-plurais do discurso da cidadania, reduzindo-o a um sentido autoritário.”

Portanto, segundo a mesma autora (1993, p. 59), faz-se imprescindível conceber

“a cidadania como dimensão ampla de participação social e política e através da qual a reivindicação, o reconhecimento e o exercício dos direitos humanos, instituídos e instituintes, se exteriorizam enquanto processo histórico, busca-se romper com a dicotomia liberal homem/cidadão, através de uma unificação de temáticas que permita pensar os direitos humanos como o núcleo da dimensão da cidadania e o problema de sua (ir)realização como problema relativo a construção da cidadania, numa perspectiva política em sentido amplo”.

Problemas recorrentes, como as violações dos direitos humanos, as ineficiências no campo social e o processo de pauperização manifestado na periferia do capitalismo, mostram que a cidadania exige mais do que o simples ato de votar ou de pertencer a uma sociedade política. Para alguns, parece que a cidadania tem a ver apenas com colocar a mão direita sobre o lado esquerdo do peito enquanto nosso hino nacional é executado ou com torcer para o time brasileiro durante as copas mundiais. Ledo engano! Conforme bem pontua Pinsky (1998, p. 18), “cidadania enfaixa uma série de direitos, deveres e atitudes relativas ao cidadão, aquele individuo que estabeleceu um contrato com seus iguais para a utilização de serviços em troca de pagamento (taxas e impostos) e de sua participação, ativa ou passiva, na administração comum. Por essa definição, podemos afirmar que cidadania pressupõe ora o pagamento de impostos, ora a fiscalização da sua aplicação, ora o direito a condições básicas de existência, ora a obrigação de zelar pelo bem comum”.

A cidadania não é uma concepção abstrata, mas uma prática cotidiana. Segundo Pinsky (1998), ser cidadão não é simplesmente conhecer, mas, sim, viver. Não há possibilidade de ser cidadão num regime totalitário. Todavia, isso não significa que a democratização formal transforme, automaticamente, todos os habitantes do país em cidadãos. Desenvolve o referido autor (1998, p. 96): “costuma-se dizer que a cidadania, como a liberdade, não pode ser outorgada, mas, sim, conquistada”. Se isso é verdadeiro, não é menos verdadeiro que os educadores têm um papel fundamental no sentido de ampliar o debate sobre a questão da cidadania e os limites impostos à sua prática. Uma boa maneira de fazê-lo seria meditarmos um pouco sobre a dificuldade que encontramos para exercer plenamente a nossa cidadania e sobre as barreiras que impedem a sua prática. Podemos dizer que muitas das dificuldades têm a ver com a nossa própria  história com a maneira como a Nação brasileira surgiu e como ela se articula com o Estado. Como veremos adiante, criou-se uma instituição jurídica sem a existência da correspondente base social, ou seja, no Brasil, segundo Pinsky (1993), o Estado precedeu a Nação, ao contrário do que ocorreu em outros países.

Inegável é que a cidadania esteve e está em permanente construção, é um referencial de conquista da humanidade. Cidadania pode ser qualquer atitude cotidiana que implique a manifestação de uma consciência de pertinência e de responsabilidade coletiva. Talvez por não sermos conhecedores dos direitos e obrigações que o Estado nos oferta não fazemos a nossa parte ou não temos a consciência de pertencer a um coletivo e por isso somos tão condescendentes com irregularidades que acabam prejudicando a todos. Temos que abandonar a dupla e falsa moral que nos transforma em críticos do poder, mas coniventes com aquilo que ele tem de pior. Nós nunca teremos o progresso humano se conveniência e interesses imediatos não forem substituídos por atitudes cidadãs. O cidadão tem de ser cônscio de seus direitos e das suas responsabilidades enquanto parte integrante de um grande e complexo organismo que é a coletividade, a nação, o Estado, para cujo bom funcionamento todos têm de dar sua parcela de contribuição. Segundo o mencionado autor (PINSKY, 1993), somente assim se chega ao objetivo final, coletivo: a justiça em seu sentido mais amplo, ou seja, o bem comum.

1.2.A trajetória da cidadania no brasil

Os direitos humanos e a cidadania são históricos, resultam das relações e dos conflitos sociais em determinados momentos da história de um povo. Deste modo, ao estudar o processo de formação da cidadania no Brasil temos de voltar ao nosso passado histórico para então chegar ao presente acompanhando as relações, os conflitos, os interesses e os grupos sociais que foram construindo a cidadania tal como a vivemos hoje. A partir de então, é que poderemos arquitetar um “modelo” de formação dos brasileiros para a cidadania.

A história da cidadania confunde-se em muito com a história das lutas pelos direitos humanos e a sua construção perpassa por dificuldades pautadas, sobretudo, nas raízes do passado, mais especificamente, no Brasil, no período colonial (1500-1822), quando os portugueses tinham construído um enorme país dotado de unidade territorial, lingüística e religiosa. Entretanto, tinham deixado uma população analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiária, um Estado absolutista. Enfim, 322 anos sem poder público, sem Estado, sem nação e cidadania (PINSKY, 1993).

No período colonial, a cidadania foi negada à quase totalidade da população brasileira; contudo, podemos considerar que o fator mais negativo para o exercício da cidadania, nesta época, foi a escravidão. O Brasil foi o último país de tradição cristã ocidental a abolir a escravidão, ressaltando-se que essa apenas ocorreu, não pelo amadurecimento da consciência do povo brasileiro, mas da própria elite pressionada pelos interesses econômicos internacionais. A Inglaterra, essencialmente por interesses comerciais, exigiu, em 1850, o término do comércio negreiro, instituído com a Lei Eusébio de Queiroz, que se constituiu num passo importante para a abolição – que só viria a acontecer 38 anos depois.

Reflexo disso é a situação do negro, hoje, que continua sendo de marginalização e exclusão, principalmente no que tange à educação. Segundo dados do Instituto Brasileiro de GeografIa e EstatÍstica (IBGE, 2010), em 2009, 62,6% dos estudantes brancos de 18 a 24 anos cursavam o nível superior (adequado à idade), contra 28,2% de pretos e 31,8% de pardos. Além disso, nesse mesmo ano, restou demonstrado que o analfabetismo ainda é maior entre os negros: as taxas de analfabetismo para as pessoas de cor ou raça preta é de 13,3% e para as pessoas de cor parda é de 13,4%, mais que o dobro da taxa dos brancos (5,9%).[1]

Aliás, outra marca registrada do período colonial foi o analfabetismo. Segundo Carvalho (2000), em 1872, meio século após a Independência, apenas 16% da população era alfabetizada. Apenas a elite brasileira da época era portadora do conhecimento: "quase toda a elite possuía estudos superiores, o que acontecia com pouca gente fora dela: a elite era uma ilha de letrados num mar de analfabetos" (CARVALHO, 2000, p. 55). Entre os letrados, principalmente, era comum a formação jurídica feita em Portugal: primeiro em Coimbra e, depois, em Lisboa. Além disso, não é despiciendo lembrar que Portugal proibiu o Brasil de abrir universidades em seu território; em contrapartida, a Espanha permitiu, desde o início, a criação de universidades em suas colônias.

O fruto desse contraste pode ser percebido entre Espanha e Portugal, no que se refere ao número de matrículas. Segundo Carvalho (2000), até o final do período colonial umas 150.000 pessoas tinham se formado nas universidades da América Espanhola. Só a Universidade do México formou 39.367 estudantes até a independência. Ao contrário de Coimbra, onde, entre 1772 e 1872, apenas 1.242 estudantes brasileiros matricularam-se, quadro esse que será revertido somente após a chegada da família real ao Brasil, em 1808. No final do século XVIII, somente 16,85% da população brasileira entre 6 e 15 anos freqüentava a escola, conclui o autor. 

No período do regime republicano, segundo João Rocha Sobrinho (2010), somente cerca de 1% dos homens mais ricos e alfabetizados estavam habilitados a votar para eleger o presidente da República, distante da máxima de que o governo republicano é do povo, pelo povo e para o povo, a República não passava de uma peça de ficção. Registre-se, ainda, que uma pequena parcela dos trabalhadores assalariados organizados em sindicatos e as famílias mais ricas tinham acesso aos tratamentos de saúde e não havia nenhuma política pública de seguridade social universalizante, prevalecendo nesse período uma cidadania cerceada, excluindo a maioria da população do seu exercício.

A crise do sistema capitalista no mundo, eclodida em 1929, contribuiu para a queda do governo oligárquico dominante, que já não conseguia governar devido aos desgastes políticos internos e à reação da sociedade civil brasileira reivindicando espaços na gestão do Estado. Esse processo possibilitou a implementação do regime populista que vigorou entre 1930 e 1964, no qual predominou, conforme João Rocha Sobrinho (2010), uma cidadania tutelada, restrita àqueles que estivessem incluídos no mercado de trabalho formal, com carteira assinada, sendo o seu exercício proporcional à sua estratificação salarial. Ocorre que, para o governo harmonizar a classe dominante e a trabalhadora, deixou cerca de 80% da população informal excluída de toda a legislação de Seguridade Social recém criada. Quando essa parcela excluída acumulou forças e exigiu a implementação de reformas de base para incluí-las, estava ocorrendo o esgotamento do regime populista, então, os latifundiários e agroexportadores e a burguesia industrial se uniram com os militares conservadores e, com todo o apoio logístico dos EUA, praticaram o golpe de Estado em 1964, assim nos relata o supracitado autor (ROCHA SOBRINHO, 2010).

Entre 1964 e 1985, os ditadores de plantão suprimiram todas as liberdades democráticas e impuseram, nos dizeres de João Rocha Sobrinho (2010), uma cidadania reprimida a toda a população que discordava dos métodos ditatoriais. No período do Estado centralizador, caberia à pequena parcela da elite, através do controle do Estado, ordenar a sociedade, cuidar do bem-estar dos brasileiros e transformar o país na grande nação que deveria ser o seu destino. As torturas, os desaparecimentos e assassinatos de oponentes políticos, a censura à imprensa e a ausência geral de liberdades colocaram em pauta a luta pelo respeito aos direitos humanos. Em pleno século XX, lutava-se pela garantia de direitos afirmados já no século XVIII.

Nesta época, a rede escolar brasileira era incompetente, devido ao alto índice de repetência e ao baixíssimo nível de escolarização no Brasil. Conforme pesquisou Ribeiro (l984) apud João Rocha Sobrinho (2010), entre 1975 e 1978, para cada 1000 crianças matriculadas na 1ª série, 486 chegaram à 2ª, 464, à 3ª e apenas 417 à 4ª série na cidade do Rio de Janeiro, e a média nacional era apenas 307. Se uma pesquisa sobre o nível de escolarização média no Centro-Sul do país tinha esse resultado, imagine no Nordeste. Na verdade, segundo o autor, a gigantesca rede escolar brasileira era altamente competente para o que se propunha fazer, que era “separar o joio do trigo”, pois, para cada 1000 crianças que iniciava a primeira série, menos da metade no Rio de Janeiro e 1/3 no Brasil concluíam a quarta série. Esse processo se afunilava cada vez mais até o nível do curso superior. Como os filhos dos pobres tinham que trabalhar para ajudar os pais a criar os irmãos mais novos, não podiam continuar estudando e, somente os filhos dos mais ricos tinham condições de estudar até chegar à universidade.

Enquanto isso, os ricos progrediam até o ensino superior e chegavam à pós-graduação, por serem considerados os mais inteligentes, os mais bem preparados para dirigir os destinos da nação. Ou seja, preferencialmente os mais ricos e privilegiados poderiam, no futuro, com executivos, alcançar a segunda maior remuneração do mundo. Segundo João Rocha Sobrinho (2010), contrariamente à visão liberal burguesa, quem defende o “materialismo histórico dialético” e mantém uma práxis coerente com o fim da exploração e da opressão do homem pelo homem e da opressão da mulher pelo homem, não apóia uma escola que beneficia os mais ricos, mas uma escola universalizante que seja acessível a toda população.

Na década de 1980, a sociedade brasileira empreendia fortes lutas em torno da redemocratização do país. Os setores da sociedade civil tiveram um papel fundamental na condução dessas lutas, participando ativamente da discussão em relação aos conceitos de cidadania, participação social e política. O crescimento da capacidade de enfrentamento da sociedade civil brasileira ampliou o exercício da cidadania, contrariamente aos segmentos das elites, capitaneados pelos latifundiários e agroexportadores e com o pleno suporte midiático que visavam interesses apenas da minoria rica e privilegiada. De acordo com João Rocha Sobrinho (2010), houve uma grande contribuição da classe trabalhadora brasileira em prol da ampliação do exercício da cidadania no Brasil, ao realizar o maior número de greves/homens/horas parados no mundo durante toda a década de 1980, mesmo enfrentando diversas formas de repressão de um governo ditatorial. E, certamente, sem esse movimento grevista, que em um dado momento a mídia burguesa não pode esconder mais da população, dificilmente conquistaria a Carta Magna de 1988 com um capítulo de seguridade social tão amplo. Assim como a campanha para as eleições presidenciais teria uma participação massiva jamais vista no país, em 1989.

O desmoronamento da URSS, a derrota de uma candidatura democrática popular para um projeto neoliberal com Collor eleito presidente da República contribuíram substancialmente para deixar os movimentos sociais ideológica e politicamente na defensiva. O governo de Collor iniciou um desmonte do Estado brasileiro privatizando as estatais lucrativas e sucateando as demais, desregulamentou o mercado de trabalho, flexibilizou a legislação trabalhista e impôs um processo de reestruturação produtiva eliminando mais de dois milhões de postos de trabalho sem criar nenhum novo. Esse processo acelerou a terceirização e a precarização das relações sociais de trabalho, fragmentou a representação sindical dos trabalhadores e recuou no exercício da cidadania (ROCHA SOBRINHO, 2010).

Com o avanço do neoliberalismo no Brasil, o conceito de cidadania passou a se apoiar na crescente desresponsabilização do Estado sobre a garantia dos direitos dos cidadãos. O projeto neoliberal impôs alternativas individualistas como único caminho, em detrimento de resoluções coletivas para os problemas sociais. Os rebatimentos ou custos desse ajuste neoliberal recaíram sobre as classes populares dos países afetados pelas políticas neoliberais, as quais sofreram uma forte regressão em seus direitos de cidadania, ficando desamparadas de políticas que visassem assegurar patamares, ao menos mínimos, de direitos, de modo a garantir uma melhor condição de vida (MACHADO, 2010). A proposta neoliberal compreendeu, pois, um processo de desmonte das conquistas sociais representadas pelos direitos de cidadania, entendidas como direitos universais (SOARES, 2000, p. 13):

“[…] os direitos sociais perdem identidade e a concepção de cidadania se restringe; aprofunda-se a separação público-privado e a reprodução é inteiramente devolvida para este ultimo âmbito; a legislação trabalhista evolui para uma maior mercantilização da força de trabalho; a legitimação (do Estado) se reduz à ampliação do assistencialismo.”

Nesse processo de desmonte dos direitos emerge um novo padrão de cidadania, baseado no protagonismo da sociedade civil, a qual é entendida pelo neoliberalismo como sendo um corpo homogêneo, marcado por relações solidárias e comunitárias (GOHN, 2005 apud MACHADO, 2010). Esse novo padrão de cidadania é caracterizado pela transferência de boa parte de serviços sociais antes prestados pelo Estado para a sociedade civil. Esses serviços deixam de ser direitos garantidos constitucionalmente pelo Estado transformando o cidadão em um cliente, receptor dos serviços agora privatizados ou terceirizados. Na verdade, as reformas neoliberais produziram um verdadeiro desmonte do Estado brasileiro, dilapidação do patrimônio público com as privatizações e cortes dos “gastos sociais”, a não-industrialização e a concorrência predatória interna e externa que gerou milhões de desempregados precarizando mais ainda o exercício da cidadania no Brasil.

O início do exercício da cidadania no Brasil, segundo o autor João Rocha Sobrinho (2010), só foi demarcado a partir da luta pelo acesso a condições dignas de vida, e, no meio universitário, a luta do Movimento Sanitarista que se coroou com a expressiva VIII Conferência Nacional de Saúde em 1986, com cerca de 5.000 participantes, sendo fortalecida após a implementação do SUS e da Lei Orgânica em cada município, consagrados na Carta Magna de 1988. A conjunção de forças entre o Movimento Sindical, a Central de Movimentos Populares, mais o trabalho dos grupos ligados aos partidos de esquerda, mesmo na clandestinidade, e a atuação de intelectuais que atuavam nas universidades e em outras atividades, contribuíram para sustentar a campanha por um Projeto Democrático Popular (ROCHA SOBRINHO, 2010).

A partir da Constituição Federal de 1988, novos instrumentos foram colocados à disposição daqueles que lutam por um país cidadão. Enquanto consumidor, o brasileiro ganhou uma lei em sua defesa: o Código de Defesa do Consumidor, além da criação do novo Código de Trânsito, do novo Código Civil, de novas Organizações Não Governamentais (ONGs) que desenvolvem funções importantíssimas, como a defesa do meio ambiente. Tornou-se possível ainda, a concretização dos nossos direitos, através, por exemplo, da Ação Popular, da Ação Civil Pública, do Mandado de Injunção, do Mandado de Segurança entre outros, bem como a instituição do Ministério Público, importante instrumento na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

A partir da CF/88 ampliou-se as estratégias e instituições das quais se pode lançar mão para invocar os tribunais, como, por exemplo,  a ampliação da legitimidade para a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade, a possibilidade de as associações interporem ações em nome dos seus associados e a consagração da autonomia do MP. A redemocratização e o novo marco constitucional deram maior credibilidade ao uso da via judicial como alternativa para alcançar direitos, viabilizando a efetivação do exercício cidadão. Assim, os instrumentos jurídicos que estavam presentes no período autoritário, como a Ação Popular e a Ação Civil Pública, passam a ser largamente utilizados depois de 1988. Um caso exemplar foram as várias ações judiciais propostas para anular os editais de privatização das empresas estatais, sobretudo, durante o governo FHC.

No Brasil de 1988, quando reconquistamos o direito de eleger presidente, governadores, prefeitos, senadores, deputados e vereadores, conquistamos o direito de votar em nossos representantes e a possibilidade de participação em partidos, sindicatos e movimentos sociais, a perspectiva de um exercício pleno da cidadania colocava-se ao nosso alcance. A promulgação da Constituição Federal de 1988, batizada pelo então presidente da constituinte Ulysses Guimarães de “Constituição Cidadã” revela-se notoriamente moderna e com grande preocupação social, marcando a redemocratização do país e privilegiando os Direitos Humanos, totalmente desrespeitados no período da ditadura militar.

Hoje podemos perceber que nos lugares, países ou regiões em que o movimento operário se organizou, mobilizou e acumulou uma correlação de força favorável, implementou uma luta de massa diante da classe dominante, o exercício da cidadania foi muito mais amplo e includente. No Brasil contemporâneo, a construção democrática da cidadania vincula-se a evolução de uma democracia representativa para uma cidadania que efetivamente molde a democracia, ou seja, uma cidadania instituinte da democracia. Um regime onde existam efetivos mecanismos de controle da sociedade civil sob a administração pública, não se reduzindo o papel democrático a mera escolha dos dirigentes do nosso país, mas também estendendo a democracia para a esfera social. É a democracia participativa.

Segundo o constitucionalista José Afonso da Silva (2006, p. 141), qualquer forma de participação que dependa de eleição não realiza a democracia, haja vista que “o principio participativo caracteriza-se pela participação direta e pessoal da cidadania na formação dos atos de governo”. Instrumentos como o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular constitui, o que a autora BENEVIDES (2003), titulou de “Cidadania Ativa”. Entretanto, diversos são os meio de democracia participativa adotados pela nossa Carta Magna, como: a ação popular, o orçamento participativo, os Conselhos, as Conferências. Esses caminhos de participação favorecem o aperfeiçoamento democrático, tornando possível a diminuição dos desvios na representação.

Para Bonavides (1985), não basta à mera adoção de um sistema democrático, devendo-se também dinamizar a democracia por meio dos mecanismos de participação popular. Conforme declara o mencionado autor (1985, p. 509):

“a participação é o lado dinâmico da democracia, a vontade atuante que, difusa ou organizada, conduz no pluralismo o processo político à racionalização, produz o consenso e permite concretizar, com legitimidade, uma política de superação e pacificação de conflitos.”

No Brasil, a carência educacional e a pouca politização do povo, em relação aos outros países, não permitiu uma reação popular tão forte e coesa nas lutas sociais e os obstáculos ao exercício pleno da cidadania contribuíram para tanta desigualdade. Entretanto, a desmobilização da sociedade civil brasileira não é traço característico do brasileiro. Sobretudo, é um resultado histórico de uma ação política que impediu a organização da sociedade, silenciou grupos discordantes e definiu o favor e o corporativismo como a principal relação entre o Estado e a sociedade. Mas ainda há tempo para reverter este quadro.

Para a efetivação de um ideal democrático, faz-se necessário a resignificação do conceito de cidadão, conforme Virginia Feix (2004, p. 01) , “o cidadão tem que deixar de ser visto em sua abstração e generalidade e passar a ser concebido em sua concretude, em suas especificidades e peculiaridades. As expectativas de mudança, suscitadas pela nova ordem constitucional, recaem sob o povo, o qual torna-se instância suprema do processo político, e, como tal, precisa estar capacitado para exercer o múnus de decidir os destinos da nação, de protagonizar importantes mudanças sócio-políticas, através do exercício efetivo da cidadania. Esta é um referencial de conquista da humanidade, esteve e está em permanente construção.

2. Cidadania: uma questão para a educação

2.1 Responsabilizando as instituições de ensino pela formação cidadã

Em observância ao artigo 205 da Constituição pátria, encontramos a seguinte disposição:

“Art. 205 – A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Depois de vinte e três anos da chamada "Constituição cidadã" na qual foram assegurados os direitos fundamentais dos cidadãos e as obrigações do poder público, da sociedade, da família e do indivíduo, ainda não alcançamos êxito em transferir o texto constitucional para o cotidiano da maioria dos brasileiros. A inexistência de responsabilidade estatal pela formação dos cidadãos brasileiros é um dos exemplos de que muito dos preceitos constitucionais ainda continuam no papel. Formar cidadãos implica em formar indivíduos dotados de responsabilidade coletiva, conscientes dos seus direitos civis, políticos e sociais; bem como, dos seus deveres.

Em Portugal, a Constituição Portuguesa associa a formação cidadã ao acesso ao direito, definindo que, antes de assegurar o acesso à proteção judiciária dos direitos fundamentais, deve o Estado investir o cidadão diretamente no gozo dos seus direitos, conscientizando-o do conteúdo desta matéria. Para regulamentar esse preceito constitucional, foi editado em Portugal o Decreto-lei 387-B/87, que dispõe especificamente sobre o acesso ao direito (GRECO, 2005, p. 1): “2. (Educação Básica) Para o acesso ao direito, o Estado deve desenvolver com eficiência uma série de atividades essenciais e dar efetividade a uma série de pressupostos”.

Segundo o supracitado autor, nesse país a formação do cidadão é realizada através da Educação Básica, infundindo-lhe a consciência dos seus direitos e deveres sociais, bem como dos valores humanos fundamentais que devem ser por todos respeitados na vida em sociedade. Para os portugueses, a consciência jurídica do homem comum deve ser adquirida na família e na escola.

No Brasil, “provavelmente não seja o caso de ressuscitar a velha ‘Educação Moral e Cívica’, mesmo reciclada e adequada aos novos tempos de democracia. Isso seria, pois, um grande anacronismo”, qualifica Valente (2007, p. 01). Entretanto, é imprescindível uma maior atenção e dedicação dos educadores no que pertine aos temas jurídicos, tão necessários para a formação cidadã. O supracitado autor descreve que nas escolas de “antigamente”, tal disciplina era dedicada a este assunto, contudo, a mesma tinha um conteúdo muito amplo, assim como o desempenho dos mestres em sala de aula era precário. Na década de 50, era conhecida como uma disciplina de segunda categoria no “Curso Ginasial” e no “Colegial/Científico”. A ditadura militar de 64 brindou um novo formato para a disciplina, adequado para acomodar os “princípios ideológicos da revolução redentora”, e a essa matéria deu-se o nome de “Estudos de Problemas Brasileiros”. Segundo o autor, não havia, certamente, nas escolas brasileiras, quem não associasse os “Estudos de Problemas Brasileiros” à figura trágica da ditadura militar e seus preceitos engessados de cidadania. Assim, de um lado, considerada disciplina de segunda categoria, e de outro, prole da ditadura militar, a matéria acabou se extinguindo e seu conteúdo se perdeu. Afinal, não basta o ensino por si só, acrítico e desvinculado das pretensões das pessoas e do contexto em que elas vivem.

Conforme pontua Demo (1996, p. 16), educar não é tão somente treinar o estudante, a exercer uma atividade, mas o educando vai construindo a sua autonomia por meio da pesquisa. Em suas palavras:

“Educação não é só ensinar, instruir, treinar, domesticar, é, sobretudo formar a autonomia do sujeito histórico competente, uma vez que, o educando não é o objetivo de ensino, mas sim sujeito do processo, parceiro de trabalho, trabalho este entre individualidade e solidariedade.”

Assim, o artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases – LDB (Lei nº 9.394/96) dispõe:

“Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

A partir dessa perspectiva educacional entende-se que o papel da escola é formar cidadãos, razão pela qual o conhecimento acerca do ordenamento jurídico, principalmente, de sua funcionalidade e de seu manuseio, deveria ser condição inafastável para o alcance das finalidades estipuladas pela LDB. Afinal, se a função da escola é formar cidadãos, e, se ser cidadão é, dentre outras coisas, ter direitos e obrigações igualitariamente perante os outros, parece fundamental que o conhecimento sobre quais são esses direitos e obrigações seja efetivamente compartilhado nas instituições de ensino.

Segundo João Rocha Sobrinho (2010), o desenvolvimento da educação não deve se reduzir a um simples meio de se dar bem na vida, mas sim, privilegiar um meio de libertação e de emancipação humana, visando formar sujeitos sociais, que lutem para mudar a “ordem vigente” e construir uma sociedade onde predomine um ideal marcado pela ação coletiva, pela solidariedade e pelo bem comum. O objetivo da educação brasileira deve ser o preparo para o exercício consciente da cidadania. Às instituições de ensino, públicas e privadas, deve ser atribuído o dever de compartilhar conhecimentos aos jovens, desenvolvendo neles hábitos e atitudes e proporcionando-lhes as condições básicas para uma formação cidadã. De acordo com Ferreira (1993, p. 134), “educar o homem para a cidadania não é mais um dilema, mas um imperativo social”.

Mas, afinal, como educar para a cidadania? Educadores devem observar a formação da cidadania como a possibilidade de educar os alunos para participar ativamente da criação de uma sociedade melhor, mais igualitária e pacifica. Conforme o mencionado autor (FERREIRA, 1993), possibilitar o acesso do conjunto da população brasileira à educação cidadã é possibilitar a sua participação nos destinos do país, interferindo nas decisões, expressando seus interesses e seus pontos de vista de modo contundente. Entretanto, muitos óbices devem ser vencidos para transformar esse real possível em real concreto.

A ignorância popular é um dos grandes obstáculos ao exercício da cidadania coletiva. Parafraseando Demo (2003) apud ROCHA SOBRINHO (2010, p. 157), “quem não sabe pensar sempre acredita no que pensa como verdade absoluta e eterna, mas quem sabe pensar sempre questiona o que pensa”. A partir do momento que os homens têm consciência das relações sociais, elaboram idéias – jurídicas, políticas, morais e filosóficas – necessárias para ordená-las, garantindo sua inteligibilidade. Por que as escolas, tradicionalmente, mantêm uma metodologia mecânica de perguntas e respostas e não instigam os alunos a solucionarem problemas, de preferência, com caráter transdisciplinar? Não interessa ao futuro desta nação alunos adestrados para o mercado de trabalho, mas, sim, alunos formados para a vida, o que permitiria uma reconstrução social.

Segundo Ferreira (1993, p. 225), “toda educação – embora sob diferentes perspectivas atribuam diversos graus de liberdade ao ser humano – visa integrar o indivíduo à sociedade, mesmo que seja para que ele a critique e tente transformá-la”. Neste diapasão, o analfabetismo impede a formação de uma sociedade participativa, sendo de fundamental importância a seleção do conteúdo dos conhecimentos nas instituições de ensino a fim de fomentar práticas pedagógicas capazes de transformar a escola em um espaço de formação do cidadão.

Conforme assinala Ricardo Castilho (2007, p. 01):

“a existência social do ser humano implica uma vida de direitos e obrigações, pressupostos e inerentes ao pertencimento à sociedade na qual se situa, de modo que, ainda que inerte e alienado em relação às normas jurídicas determinadoras de seu modo de vida e, mais que isso, do modo de estruturação da própria sociedade, o indivíduo, inexoravelmente, a elas se submete.”

A todos é inescapável, antes mesmo do nascimento, a submissão ao ordenamento jurídico, e sua importância só tende a aumentar, principalmente na idade adulta. Interessante anotar que, consoante pesquisa elencada em obra de Gryspan (1999), a população da Região Metropolitana do Rio Janeiro, realizada entre setembro de 1995 e julho de 1996, há um maior reconhecimento por parte da população dos direitos sociais em relação aos demais. Diante da pergunta sobre quais são os seus direitos mais importantes, a população destacou os direitos sociais (25,8%), vindo, em seguida, os civis (11,7%), e, fechando a listagem, os políticos (1,6%), sendo estes encarados mais como um dever do que um direito. Contudo, o que chama a atenção nos dados é que cerca da metade dos entrevistados (56,7%) não sabia citar um direito sequer (GRYZSPAN, 1999). A população, portanto, se reconhece mais numa perspectiva de cidadania regulada do que de uma cidadania participativa.

É preciso que os brasileiros compreendam o sistema jurídico como uma condição diária de cidadania e não como uma realidade à parte. Para tornar possível a participação, é necessário, ao menos, o conhecimento básico, por exemplo, sobre o funcionamento do aparato estatal, sobre a elaboração de leis, o que confere sua legitimidade, e porque devemos obedecê-las. Como bem pontuou Sergio Valente (2007, p. 01):

“O desenvolvimento pessoal do ser humano, seja em seu aspecto interno, de evolução intelectual, seja externamente, isto é, do ponto de vista de sua consciência cidadã, da interiorização de seu papel não enquanto indivíduo, mas enquanto ser social, depende essencialmente do conhecimento, ainda que superficial, do Direito.”

2.2 A socialização do saber jurídico como meio de formar verdadeiros cidadãos

Pesquisa baseada em amostra aleatória da população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, realizada entre setembro de 1995 e julho de 1996, tornou evidente, segundo Pandolfi (1999), um paradoxo entre os entrevistados, os quais, embora desconheçam seus direitos ou tenham dificuldade de enumerar os principais direitos garantidos pela Constituição, não traduz, necessariamente, uma postura de indiferença ou conformismo diante do déficit de cidadania. Significa que, apesar de não saber formalmente quais são os principais direitos dos brasileiros, a população parece questionar a ausência deles, explica o autor supra. No entanto, a falta de iniciativa do cidadão em pleitear um direito juridicamente exigível é um problema antigo que diz respeito a toda população e não necessariamente a um determinado nível social (CAPELLETTI, 1988).

O que se percebe, atualmente, é que os alunos saem da escola preparados para efetuar diversas contas logarítmicas e resolver fórmulas de física. Mas será que eles entendem porque deverão pagar os seus impostos? Será que sabem identificar quais os seus deveres e quais os seus direitos? Qual a função e as obrigações de cada governante? Quais os limites do poder de um policial? Será que o aluno sabe que não socorrer uma pessoa em necessidade é crime? Acredito que não. Indaga-se até que ponto essas informações sejam mais importantes para a vida de uma pessoa do que o domínio pleno daquela operação física ou matemática. Na verdade, é preciso aferir até onde há convergências no que pretende a escola e o que impõe a sociedade.

Percebe-se a necessidade de se repensar a prática docente. Segundo Ricardo Castilho (2007, p. 01):

“Mais do que propiciar às pessoas uma vida mais segura, porque lhes permite identificar as arbitrariedades e os engodos que se lhes apresentam, o conhecimento do Direito é imprescindível à construção de uma sociedade democrática, pois subsidia a técnica jurídica e o difuso sentimento de injustiça presente nas inumeráveis situações cotidianas em que o Estado ou os particulares avançam injustamente sobre a esfera jurídica alheia, permitindo, assim, a punição dos responsáveis, e, com isso, a construção de uma sociedade caracterizada pelo respeito ao homem e pela participação de todos os seus membros nas decisões referentes à coletividade e no exercício do poder.”

O Direito tem um papel construtivo na sociedade e sob esta perspectiva merece ser conhecido por todos. Uma vez postas, as normas jurídicas devem conformar a realidade consoante as suas disposições – e essa conformação será tanto maior quanto mais freqüente for sua aceitação pelos seus destinatários, o que depende em grande medida do conhecimento a respeito dos direitos e deveres existentes e dos meios de acesso à Justiça. Entendimento do supramencionado autor (CASTILHO, 2007, p. 01), explana:

“A massificação do conhecimento do Direito é a única forma de democratizá-lo, pois implica uma maior discussão sobre seus institutos, possibilitando, então, mais e mais, a introdução do anseio popular no seu seio e, em última análise, a sistematização de normas tendentes ao estabelecimento de uma verdadeira democracia”.

Como bem afirmou Raphael Michael (2007, p. 01), “inócuo é abrir-se a porta do Judiciário à população, sem antes implantar no bojo social a difusão de grande parte dos Direitos e Garantias dados ao cidadão”. Ressalve-se que os deveres também devem ser incluídos neste rol, uma vez que se focarmos muito nos direitos, e deixarmos de lado toda a gama de deveres que temos que cumprir, não lograremos o exercício da cidadania plena. Afinal, é certo que as leis existem e consequentemente podem ser aplicadas. Mas de que adiantam, se a população desconhece que devem cumpri-las ou podem ir a juízo pleiteá-las?

Os brasileiros poderão protagonizar importantes mudanças sociopolíticas, por meio do direito. Segundo Machado (2009), o direito pode ser um instrumento transformador de relações sociais superadas e incompatíveis com a realidade do mundo atual, caracterizadas por conflitos de massas, por reivindicações políticas e por uma crescente organização participativa da sociedade civil. Assim, a efetividade do direito como mecanismo de mudança supõe a sua imediata adaptação aos novos tempos, caracterizados por demandas e reivindicações de caráter não meramente jurídico, mas também político, econômico e social. O direito não é mais visto sob um olhar positivista e restrito, mas como um conhecimento inafastável do dia-a-dia dos brasileiros.

O Direito não se resume ao Estado, embora o discipline e simultaneamente o constitua. Como afirmou Valente (2007, p. 01), “o Direito é a arte segundo a qual as pessoas vivem ordenadamente e em paz, jubilosas de seus atributos e das possibilidades intermináveis de transcendência pessoal e evolução social, tudo sob o harmônico imperativo da paz”. Não devemos analisar o direito de forma isolada, mas projetando-o no mundo real onde encontra o seu lugar e a sua razão de ser, e, ligando-o a todos os outros fenômenos da sociedade. Estudar Direito implica elaborar uma nova cultura para a sociedade, e um dos eixos fundamentais dessa reformulação cultural tem sido, segundo Sousa Júnior (2008), à luz das diretrizes em curso, constituir-se a educação jurídica uma articulação epistemológica de teoria e prática para suportar um sistema permanente de ampliação do acesso à justiça, abrindo-se a temas e problemas críticos da atualidade, dando-se conta ao mesmo tempo, das possibilidades de aperfeiçoamento de novos institutos jurídicos para indicar novas alternativas para sua utilização.

Nesse sentido, vejamos entendimento de Freire (2011, p. 01):

“A cidadania só passa a ser plenamente exercida quando o indivíduo reconhece o Estado em que vive, conhecendo suas normas, a estruturação, e principalmente, quais direitos lhe são inalienáveis. Diante de uma realidade como esta, fica óbvia a necessidade de o Estado agir de forma proativa para reverter este quadro de concentração do conhecimento jurídico. A tradição do Estado brasileiro não inclui como fundamento a democratização deste conhecimento, levando a monopolização do poder político e administrativo. Sem o senso crítico, resta ao cidadão declarar injustiça sentado na poltrona de sua casa e indignando-se com o que assiste nos telejornais. Isso porque, quando se monopoliza os meios de democratização, consequentemente tem-se uma monopolização do poder, impedindo em cada cidadão uma construção real do conhecimento jurídico”.

A importância da matéria deve ser interpretada como uma defesa a uma nova disciplina que abarque os temas jurídicos mais relevantes, devendo ser ministrada no ensino básico, com currículo, aulas e professores próprios. Tal conteúdo, de suma importância, como se disse acima, aproximaria os estudantes do mundo jurídico, preparando-os para exercerem sua cidadania de forma eficiente. Afinal, o Direito não deve ser tratado com superficialidade, como se fosse complemento supérfluo ao currículo obrigatório da escola – diga-se de passagem, aquele que é cobrado no vestibular. Segundo Azevedo (2000), a importância do direito é indiscutível, tendo em vista as conseqüências sociais que enseja, razão pela qual é preciso fomentar a consciência cidadã ainda na adolescência, ainda incapazes juridicamente, com o desiderato de quando adquirir esta capacidade, possam estar conscientes de toda a responsabilidade que irão assumir por seus próprios atos e perante toda sociedade.

A difusão do conhecimento do direito deve ser efetuada pelas escolas. Ensinar que homens e mulheres são iguais perante a lei, que é direito de todos o acesso a informações dos órgãos públicos, ou ainda que racismo é crime, contribui para facilitar e solidificar uma ordem jurídica justa. Adquirindo o conhecimento de determinadas normas do ordenamento jurídico, saberão como agir em determinadas situações, em quais destas realmente precisarão recorrer a advogados, quais instrumentos jurídicos poderão dispor e poderão fazer valer os seus direitos de forma consciente. Se todos pudessem compreender e identificar a importância de todo o universo jurídico que os espera no futuro, já em seu período colegial, ficariam muito mais preparados para enfrentar os óbices do cotidiano. As relações interpessoais seriam calcadas no respeito e pacificação e se ampliaria o acesso à justiça, ponto fundamental para a efetivação dos direitos consagrados pela Constituição

Falar em progresso humano significa falar em fornecer a população o ferramental necessário para que ele possa ser sujeito de sua própria história: autor e não inócuo coadjuvante desta. Desse modo, o projeto acadêmico que guia este estudo pressupõe a tarefa de pensar uma sociedade qualificada pela justiça com a finalidade de se obter a reconstrução social. O objetivo é apresentar às crianças e aos jovens conceitos básicos e prioritários sobre o Direito, para melhor informá-los sobre direitos e deveres na sociedade. Segundo Castilho (2007, p. 01):

“Conhecer as atribuições das principais autoridades, a forma pela qual se deve proceder para cobrar destas o que é de direito, saber em que consiste ser consumidor e o que isso implica, e, sobretudo, ter bem claro quais são os direitos fundamentais e o que fazer para protegê-los – tudo isso demonstra claramente que não há substanciosa vida em sociedade sem conhecer o Direito. Ensiná-lo para além dos círculos do Ensino Superior, portanto, é uma forma de assegurar que nossa sociedade de amanhã será melhor do que a de hoje”.

3. Conclusão

A socialização do saber jurídico é o caminho que proporcionará a consciência jurídica para uma cultura da prática da cidadania e participação democrática no seio da sociedade.

Referências
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Notas:
[1] Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1717&id_pagina=1> Acesso em: 01 ago 2011.

Informações Sobre o Autor

Roberta Santos Dias

Advogada exerceu cargo de Chefe da Divisão de Apoio a Família da Secretaria de Prevenção a Violência e Promoção dos Direitos Humanos do Município de Feira de Santana


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Equipe Âmbito Jurídico

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