Resumo: Visa o presente trabalho, promover um estudo crítico sobre as premissas que culminaram com o fenômeno denominado constitucionalização do direito. Analisar-se-á tanto o contexto histórico como as principais correntes teóricas sobre o tema, tais como, efetividade constitucional, dogmática jurídica, positivismo jurídico, direito natural e pós-positivismo.
Palavras chave: Constitucionalização. Direito. Teorias.
Sumário: Introdução; A questão da efetividade constitucional; A insinceridade normativa e a inefetividade das constituições brasileiras de 1824 à de 1967 c/ EC 01/69. Doutrina de Luís Roberto Barroso; O direito natural e o ideal metafísico; O positivismo jurídico; dogmática jurídica; Teoria crítica do direito em busca de um direito transformador; Neoconstitucionalismo ou pós-positivismo; O papel da nova hermenêutica constitucional; A normatividade dos princípios.
1. INTRODUÇÃO
O fenômeno da constitucionalização do direito tem amplo espectro de atuação sobre ordenamentos jurídicos vários em todo o mundo. A evolução do pensamento jurídico, do direito natural ao positivismo jurídico, passa pelo nascedouro de um embrião crítico trazido à tona pela teoria crítica do direito com o atual deságüe na nova onda pós-positivista.
Inúmeros subdesenvolvimentos de questionamentos científicos incidentes ao fenômeno da constitucionalização permitem ao estudioso do direito, sempre sob o enfoque da atuação efetiva da ciência jurídica sobre a sociedade, o incremento de novas teorias, que repercutindo sobre o Estado Social promovem o surgimento de uma produção legislativa mais harmônica ao contexto social.
Tópicos como a efetividade constitucional, a aferição do contexto histórico das constituições brasileiras, a atuação efusiva da normatividade dos princípios e a moderna visão proporcionada pela hermenêutica constitucional, correspondem a uma nova ciência do direito, típica do Estado Constitucional e preocupada com o homem em sua dignidade.
À guisa de aprofundamento da matéria, o presente artigo aborda de forma analítica, mas não exauriente, as principais premissas históricas e teóricas sobre a constitucionalização do direito.
2. A QUESTÃO DA EFETIVIDADE CONSTITUCIONAL.
A preocupação com a preeminência normativa da Constituição, utilizando-se de definição apregoada por Canotilho, nasceu pela necessidade de vivificar o sentimento constitucional[1] que inexistia no contexto social europeu até meados do século XX. A tradição de contemplar o ordenamento jurídico do Estado Soberano com um texto constitucional escrito já era sedimentada nos países que tinham vínculo com o sistema jurídico romano-germânico, ao contrário dos que tinham naquele continente, por base, o sistema jurídico do common law.
O conteúdo das Cartas Constitucionais não passava de meros planos direcionais dotados de um apanhado de prognósticos inatos e inertes que, no mais das vezes, norteavam a atuação dos poderes públicos[2], não os vinculando, mas tornando-os permissionários de uma atuação discricionária. Deve-se enfatizar que os poderes acima mencionados restringiam-se ao legislativo e ao executivo, onde nesta quadra o judiciário era um ator menor.
Nas palavras de Luís Roberto Barroso:
“Uma das grandes mudanças de paradigma ocorridas ao longo do século XX foi a atribuição à norma constitucional do status de norma jurídica. Superou-se assim o modelo que vigorou na Europa até meados do século passado, no qual a constituição era vista como um documento essencialmente político, um convite à atuação do poderes públicos. A concretização de suas propostas ficava invariavelmente condicionada à liberdade de conformação do legislador ou à discricionariedade do administrador. Ao judiciário não se reconhecia qualquer papel relevante na realização do conteúdo da Constituição.”[3]
Com o fim da segunda guerra mundial, o movimento de reconstitucionalização aflorou na Europa, a derrocada do positivismo, a reaproximação do direito com a ética e a moral e a utilização da lei como meio justificador de atrocidades[4], foram o campo propício para ascendência de um ideal constitucional efetivo. As normas constitucionais passam a ser dotadas de imperatividade além do caráter vinculativo e obrigatório.
Essa imperatividade revela-se nascedoura pela força normativa constitucional. Konrad Hesse orientando-se no sentido de buscar solução à questão da força normativa constitucional, indica três proposições: i) uma no sentido de reconhecimento da existência de uma subordinação recíproca entre a Constituição Jurídica e realidade político-social; ii) a análise acerca do espectro de atuação da Constituição Jurídica, bem como iii) um diagnóstico sobre a eficácia da mesma.[5]
Ora, é cediço que se encontra arraigado no âmago de cada homem componente da sociedade, um sentimento vivo de ter assegurado, respeitado e concretizado seus direitos inatos e atávicos. A concretização das normas constitucionais é a certeza de que não se está diante de uma folha de papel em branco. É isso que a sociedade espera, ansiosa, de sua carta política. E essa idéia não é uma “modernidade” do século XIX, é uma idéia que remonta o contrato social, em que os homens num pacto de consentimento procuravam preservar seus direitos inatos (naturais) legitimando o nascimento do Estado Civil.[6]
Assim, chegamos a um ponto crucial para concretizarmos a idéia de efetividade, qual seja, captar dentro da teoria do direito o espectro de atuação concreta das normas constitucionais a partir do conceito de eficácia.
Luís Roberto Barroso conceitua eficácia nos seguintes termos:
“A eficácia dos atos jurídicos consiste na sua aptidão para a produção de efeitos, para a irradiação das conseqüências que lhe são próprias. Eficaz é o ato idôneo para atingir a finalidade a qual foi gerado. Tratando-se de uma norma, a eficácia jurídica designa a qualidade de produzir, em maior ou em menor grau, os seus efeitos típicos.[7]
Apreendemos então que, para que haja a eficácia jurídica basta a possibilidade da aplicação da norma, ou seja, basta aptidão para gerar efeitos. Situação precária para a idéia de efetividade. Deste modo, temos que partir para o conceito de eficácia social, que se caracteriza pela concretização do comando normativo no mundo dos fatos, a inter-relação evidente do ser e do dever-ser.
Tal conceito resume e fecha a idéia de efetividade. Evidencia o real propósito constitucional, pois não basta teorizar uma utopia ufana e fechar os olhos de forma vil às mazelas postadas às portas de nossas casas. É necessário que a norma seja sincera e factível, que as aspirações sociais realmente sejam fatores reais de poder.
3. A INSINCERIDADE NORMATIVA E A INEFETIVIDADE DAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS DE 1824 À DE 1967 c/ EC 01/69. – DOUTRINA DE LUÍS ROBERTO BARROSO.
É importante começarmos esse item sob o rigor sóbrio das palavras do Prof. Oliveira Vianna em seu “O idealismo na Constituição” citado pelo Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
“O que realmente caracteriza e denuncia a presença do idealismo utópico num sistema constitucional é a disparidade que há entre a grandeza e a impressionante eurritmia de sua estrutura e a insignificância de seu rendimento efetivo – e isto quando não se verifica a sua esterilidade completa”.[8]
O trabalho do Prof. Luis Roberto Barroso para o direito constitucional brasileiro foi e é de importância incontestável. A disseminação de suas idéias sobre a efetividade constitucional brasileira em sua obra “O direito constitucional e efetividade de suas normas”, que condensa uma substanciosa análise crítica sobre a atuação de nossa carta magna seus limites e suas possibilidades, tem estimulado uma fértil produção acadêmica no Brasil e de certa forma ainda faz manar uma nova forma de pensar nos operários do direito pátrio.
Uma apreciação acurada de seu trabalho acima mencionado nos possibilita apartar um tema que é de acentuado relevo, a insinceridade normativa.
As normas constitucionais são atos políticos que atuam diretamente sobre a organização social, são imperativas sobre toda a coletividade e subordinam todo o aparelho estatal. Tais características anteriormente aludidas exigem uma materialização e uma alocação definida no ordenamento jurídico.
Luís Roberto Barroso ao fazer um apanhado histórico-crítico das nossas cartas constitucionais ressalta algumas vicissitudes que embaraçaram até mesmo o bosquejo brotar de um sentimento constitucional na sociedade brasileira.
Segue breve epítome:
– Constituição de 1824 – O início pela outorga. A herança rançosa do patrimonialismo. A pseudo-garantia de igualdade formalmente assegurada constitucionalmente em íntimo convívio com privilégios da nobreza, voto censitário e o regime escravocrata. Marginalização institucionalizada sob os auspícios de uma oligarquia caricatural.
– Constituição de 1891 – A primeira das constituições da república era autoritária e avessa às questões sociais. Inquietações e revoltas sucessivas eram comuns numa ainda oligarquia institucionalizada. A onipotência de uma burguesia latifundiária. Implementação de uma fórmula (mal copiada) federalista norte-americana distorcida. Processo eleitoral desacreditado e fraudulento.
– Constituição de 1934 – A intensa influência da constituição de Weimar de 1919. O início de uma ditadura.
– Constituição de 1937 – Nas precisas palavras de Luís Roberto Barroso “Governo de fato, de suporte policial e militar, sem submissão sequer formal à Lei maior, que não teve vigência efetiva, salvo quanto aos dispositivos que outorgavam ao chefe do executivo poderes excepcionais.”
– Constituição de 1946 – Uma constituição de desenho social marcante, mas inefetivo, uma Carta de prognósticos. Manobras políticas eram prosaicas, refletindo às avessas a forma que de fato legitimava a escolha de nossos governantes. Representava a era do governo dos Atos Institucionais.
– Constituição de 1967 – Período de caro custo social. Autoritarismo institucionalizado. A censura e a tortura eram a regra, a liberdade uma longínqua exceção. O Brasil vivia em pleno estado de psicastenia.
– Constituição de 1969 – Um exemplo de carta nominal, em clássica classificação de Karl Loewenstein[9], onde as prescrições do dever-ser não se coadunavam com as do ser.
Observando-se o quadro político, social e institucional que regeu a sociedade brasileira durante o interstício que inicia com a Constituição de 1824 e finda com a Constituição de 1967, é notório o quanto as cartas políticas que vigoraram tiveram uma função de mero formalismo. Existiam sem qualquer denotação de força cogente, nem de garantia à defesa dos direitos fundamentais. A égide de suas existências garantia apenas o interesse de castas oligárquicas polutas e demagógicas, legado de uma colonização fugidia e acovardada.
Toda essa situação causou uma verdadeira frustração constitucional e institucional. A existência de leis para tudo e que não garantiam ou serviam para quase nada, acumulavam-se numa verdadeira inflação legislativa e transfiguravam-se numa patente insinceridade normativa.[10]
4. O DIREITO NATURAL E O IDEAL METAFÍSICO.
A idéia de direito natural remonta à compreensão de normas metafísicas, superior ao racionalismo humano.[11] Caracteriza-se pela imagem do justo, nascida da razão humana e presente no pensamento de cada homem.
“Sua idéia básica consiste no reconhecimento de que há, na sociedade, um conjunto de valores e de pretensões humanas legítimas que não decorrem de uma norma jurídica emanada do Estado, isto é, independem do direito positivo. Esse direito natural tem validade em si, legitimado por uma ética superior, e estabelece limites à própria norma estatal. Tal crença contrapõe-se a outra corrente filosófica de influência marcante, o positivismo jurídico…”[12]
Dentro de suas variações ao longo dos anos, suas principais facetas revelaram-se por ser; i) uma lei de vontade divina (onde a razão divina rege o universo e o comportamento humano, tem por fonte a vontade de Deus) e o ii) direito natural ditada pela razão do homem (o direito natural é visto como mera lei moral e não propriamente um direito)
A idade moderna traz mudanças. A reforma protestante; a formação dos Estados Nacionais; a mudança do eixo econômico do mediterrâneo para o atlântico; a derrocada da idade medieval pela quebra da unidade da fé cristã, o afloramento do racionalismo científico(…)
O jusnaturalismo passa à categoria de filosofia natural do direito e partidária do iluminismo, seu grande mérito foi de sublimar o conceito de justiça como centro gravitador do direito, este impondo-se não unicamente porque emana de um poder soberano, mas porque se harmoniza com os princípios de justiça.
As idéias jusnaturalistas foram o combustível para as revoluções de cunho iluminista. A lei, símbolo maior desta época, sobrelevou-se frente ao direito natural e assim, o criador foi superado pela criatura, o direito natural é postado à margem da história por suas características metafísica e anti-científica, bem como pela onipotência positivista.[13]
5. O POSITIVISMO JURÍDICO.
Com o advento do positivismo viveu-se a época em que o direito era apenas aquele existente nas leis criadas pelo homem e posta pelo Estado.
O positivismo nega em princípio a existência de juízos de valor atrelando-se aos fenômenos que podem ser observados.[14]
Explica Barroso:
“O positivismo jurídico foi a importação do positivismo filosófico para o mundo do direito, na pretensão de criar-se uma ciência jurídica, com características análogas às ciências exatas e naturais. A busca de objetividade científica, com ênfase na realidade observável e não na especulação filosófica, apartou o direito da moral e dos valores transcendentes. direito é norma, ato emanado do Estado com caráter imperativo e força coativa. A ciência do direito, como todas as demais, deve fundar-se em juízos de fato, que visam ao conhecimento da realidade, e não em juízos de valor, que representam uma tomada de posição diante da realidade. Não é no âmbito do direito que se deve travar a discussão acerca de questões como legitimidade e justiça.”[15]
O positivismo foi concebido como uma forma de isolar o direito da moral e da política. O tratamento de questões atinentes à legitimidade e à justiça comportavam um grau de abstração que não caberia ao trabalho do interprete ou ao aplicador da norma.
A norma e o direito apresentam-se quase que de forma indissociável, o Estado afirma sua estatalidade como fonte autêntica de emanação dos atos normativos de forma completa, pura e dogmática, não permitindo lacunas, pois a norma contempla todas as situações a serem reguladas de forma quase hermética, o pensamento jurídico do século XIX sustentava um ordenamento sem contradições internas, nem vazios a ser integrados. A lei é para ser aplicada, pois nela se encontra a legitimação da regulação social.
O poder legislativo era visto como órgão supremo do Estado por representar a vontade do povo. O poder judiciário tinha uma atividade mecânica que impedia os juízes do exercício de uma função deliberativa, valorativa e ainda era compelido a uma aplicação literal da lei, ou nas palavras de Montesquieu, o juiz era apenas a boca da lei.
É unanimidade entre os doutrinadores[16] que o positivismo foi a porta aberta que faltava aos regimes totalitários. Sua falsa idéia de objetividade dogmática à bem do coletivo permitiu o Estado cruel do nazismo Alemão, o ferrenho comunismo da extinta União Soviética e o fascismo na Itália.[17]
6. DOGMÁTICA JURÍDICA
Para manter-se intacto à sua intangibilidade imperativa, o positivismo concebeu a dogmática jurídica como certidão de pureza.
A dogmática jurídica teve e tem por característica circunscrever o estudo do direito às normas positivadas que compõem o ordenamento, constituindo-se uma mera descrição sistemática destas normas como dogmas. E, sendo dogmas, as normas são vistas como preceitos estabelecidos a priori e apresentados como verdades definitivas, incontestáveis, tidas como naturais, aceitas e seguidas, sem discussão ou análise crítica[18]. Nessa idéia, revestem-se de abstração e logicidade, com conceitos absolutos e com exclusão de interferências de outras ciências.[19], [20]
Assinala Karl Larenz:
“[…]dogmas fundamentam-se e comungam da autoridade da lei, que não pode ser posta em causa no quadro da dogmática de um determinado direito positivo. O termo ‘dogmática’ significa a vinculação do processo de conhecimento àquilo que na lei é assumido e que, neste quadro, deixa de ser questionado.”[21]
Um esboço de sua superação se deu através da abordagem crítica do direito, afinal a ciência jurídica deveria ter reflexo no contexto social, ser efetiva e transformadora de forma a moldar e adaptar as exigências decorrentes do sistema sócio-politico. A atividade de intérprete não se limitaria à aplicação das normas, mas possuiria a função precípua de criar o direito, cujo exercício envolve, não só o conhecimento jurídico, mas valores e convicções dos quais é portador.
Os resquícios o ideário positivista sob a legitimação de dogmas sofreu e ainda tem sofrido duras críticas. Hugo de Brito Machado Segundo em denso trabalho sobre a razão da Dogmática Jurídica, ensina que, mesmo que se admita que o cientista do direito parta de normas postas, não lhe cabendo discutir sua obrigatoriedade, tal motivo não seria suficiente para atribuir-lhe caráter dogmático, afinal, mesmo sem discutir a procedência dessa visão principialista, também nos outros ramos do conhecimento científico o objeto a ser conhecido seria também um dado não alterável pelo sujeito cognoscente, regido por leis que não podem ser por ele modificadas mas apenas descobertas .[22]
Corroborando com Hugo Segundo, o Prof. Arnaldo Vasconcelos no prefácio da obra “Por que dogmática jurídica” do primeiro autor, relaciona como alguns dos prejuízos trazidos pelas posições dogmáticas, a intolerância com a visão pluralista do mundo; uma postura autoritária, acrítica e antidemocrática, bem como a imobilização do pensamento, e arremata acusando o dogmatismo da mais prolífica fonte de erros dos sistemas jurídicos.[23]
Não obstante, ainda existe parcela da doutrina nacional que reconhece a legitimidade da Dogmática Jurídica.[24]
7. TEORIA CRÍTICA DO DIREITO – EM BUSCA DE UM DIREITO TRANSFORMADOR.
A necessidade de se conceber uma nova visão, menos anacrônica e mais efetiva, do direito veio através das teorias críticas do direito.
As teorias críticas partiam basicamente do pensamento marxista que buscava denunciar o direito enquanto poder, instrumento de legitimação das classes dominantes, através da ideologia de superestrutura social de ocultação/alienação. O direito não serviria como objeto de emancipação por ser ligado a uma ideologia.
Tais teorias identificaram-se em diversas vertentes, dentre as quais a epistemológica, a sociológica, a semiológica, psicanalítica e teoria crítica da sociedade. Especificar cada umas dessas vertentes não está na órbita de delimitação deste trabalho, porém é importante realçar que todas partiam da premissa que o direito representava uma instância de poder dominador e alienador.
“A teoria crítica, portanto, enfatiza o caráter ideológico do Direito, equiparando-o à política, a um discurso de legitimação do poder. O Direito surge, em todas as sociedades organizadas, como a institucionalização dos interesses dominantes, o acessório normativo da hegemonia de classe. Em nome da racionalidade, da ordem, da justiça, encobre-se a dominação, disfarçada por uma linguagem que a faz parecer natural e neutra. A teoria crítica preconiza, ainda, a atuação concreta, a militância do operador jurídico, à vista da concepção de que o papel do conhecimento não é somente a interpretação do mundo, mas também a sua transformação.”[25]
A teoria crítica proporcionou uma nova leitura da ciência jurídica frente à defasada hegemonia do positivismo jurídico. Todavia, a nova forma da idéia de juridicidade partiu da falsa premissa de dominação, situação essa que desencadeou algumas conseqüências desarrazoadas, como a inviabilidade de uma dogmática emancipatória; o desprestígio do discurso jurídico; o esvaziamento da dignidade normativa, dentre outros.
Apesar do insucesso das teorias críticas sobre a onipotência positivista e a inércia em que vivia a ciência jurídica, floresceu aí o que podemos chamar de a semente do neoconstitucionalismo.
8. NEOCONSTITUCIONALISMO OU PÓS-POSITIVISMO
O pós-positivismo ou neoconstitucionalismo[26] foi a válvula de escape, o suspiro que faltava à já tão cansada fórmula positivista.
A reaproximação do direito com ética e com os valores postos de lado pelo positivismo, promoveram uma revolução na ciência jurídica.[27]
Reviu-se a questão da legalidade estrita, os princípios passaram a ser dotados de normatividade, surge uma nova concepção hermenêutica e desenvolve-se de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana.
O arcabouço teórico do neoconstitucionalismo trouxe em si uma nova forma de organização política, o Estado Constitucional, representado pela justaposição simbiótica entre a democracia e constitucionalismo do pós-guerra.
Historicamente temos como marco inicial a lei fundamental de Bonn, bem como a fértil produção jurisprudencial da Corte Constitucional Alemã. No Brasil o processo de reconstitucionalização deu-se sob o manto do nascimento de um novo Estado, com a promulgação de uma nova constituição (1988) e dentro de uma transição de um regime ditatorial para o democrático, possibilitando um período de estabilidade constitucional.
Em clínico olhar Luis Roberto Barroso infere:
“Sob a Constituição de 1988, o direito constitucional no Brasil passou da desimportância ao apogeu em menos de uma geração. Uma Constituição não é só técnica. Tem de haver, por trás dela, a capacidade de simbolizar conquistas e de mobilizar o imaginário das pessoas para novos avanços. O surgimento de um sentimento constitucional no País é algo que merece ser celebrado. Trata-se de um sentimento ainda tímido, mas real e sincero, de maior respeito pela Lei Maior, a despeito da volubilidade de seu texto. É um grande progresso. Superamos a crônica indiferença que, historicamente, se manteve em relação à Constituição. E, para os que sabem, é a indiferença, não o ódio, o contrário do amor.”[28]
No plano teórico, três grandes transformações subverteram o conhecimento convencional relativamente à aplicação do direito constitucional: a) o reconhecimento de força normativa à Constituição; b) a expansão da jurisdição constitucional; c) o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional.[29]
9. O PAPEL DA NOVA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL.
O caráter preeminente das normas constitucionais bem como a insuficiência dos métodos tradicionais de interpretação frente a nova estrutura de normatividade dos princípios, foram decisivos para a elaboração de um novo conjunto de métodos de interpretação constitucional que prestigiassem a ponderação de valores e a teoria argumentativa. É necessário ressaltar que tal situação não implica na defasagem dos métodos hermenêuticos tradicionais.[30]
“Pelo contrário, é no seu âmbito que continua a ser resolvida boa parte das questões jurídicas, provavelmente a maioria delas. Sucede, todavia, que os operadores jurídicos e os teóricos do Direito se deram conta, nos últimos tempos, de uma situação de carência: as categorias tradicionais da interpretação jurídica não são inteiramente ajustadas para a solução de um conjunto de problemas ligados à realização da vontade constitucional. A partir daí deflagrou-se o processo de elaboração doutrinária de novos conceitos e categorias, agrupados sob a denominação de nova interpretação constitucional, que se utiliza de um arsenal teórico diversificado, em um verdadeiro sincretismo metodológico.”[31]
Essa nova forma de interpretação constitucional tem por fundamento o alto nível de abertura interpretativa promovido pelo texto constitucional, com densa carga axiológica, permitindo assim um sem número de possibilidades interpretativas à vista dos elementos do caso concreto, em busca de uma solução providente.
9.1 A NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS [32]
Tema instigante e essencial dentro do pós-positivismo é a normatividade dos princípios. Com a insurreição da força normativa constitucional, os princípios jurídicos insculpidos na carta constitucional passaram a gozar de um status de aplicabilidade relevantíssimo, superou-se a função puramente axiológica, ética e ineficaz, passando à uma incidência direta no caso concreto.
“A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas em geral, e as normas constitucionais em particular, enquadram-se em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras. Antes de uma elaboração mais sofisticada da teoria dos princípios, a distinção entre eles fundava-se, sobretudo, no critério da generalidade. Normalmente, as regras contêm relato mais objetivo, com incidência restrita às situações específicas às quais se dirigem. Já os princípios têm maior teor de abstração e incidem sobre uma pluralidade de situações. Inexiste hierarquia entre ambas as categorias, à vista do princípio da unidade da Constituição. Isto não impede que princípios e regras desempenhem funções distintas dentro do ordenamento. Nos últimos anos, todavia, ganhou curso generalizado uma distinção qualitativa ou estrutural entre regra e princípio, que veio a se tornar um dos pilares da moderna dogmática constitucional, indispensável para a superação do positivismo legalista, onde as normas se cingiam a regras jurídicas. A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central. A mudança de paradigma nessa matéria deve especial tributo às concepções de Ronald Dworkin e aos desenvolvimentos a ela dados por Robert Alexy. A conjugação das idéias desses dois autores dominou a teoria jurídica e passou a constituir o conhecimento convencional na matéria. Regras são, normalmente, relatos objetivos, descritivos de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações. Ocorrendo a hipótese prevista no seu relato, a regra deve incidir, pelo mecanismo tradicional da subsunção: enquadram-se os fatos na previsão abstrata e produz-se uma conclusão. A aplicação de uma regra se opera na modalidade tudo ou nada: ou ela regula a matéria em sua inteireza ou é descumprida. Na hipótese do conflito entre duas regras, só uma será válida e irá prevalecer. Princípios, por sua vez, contêm relatos com maior grau de abstração, não especificam a conduta a ser seguida e se aplicam a um conjunto amplo, por vezes indeterminado, de situações. Em uma ordem democrática, os princípios freqüentemente entram em tensão dialética, apontando direções diversas. Por essa razão, sua aplicação deverá se dar mediante ponderação: à vista do caso concreto, o intérprete irá aferir o peso que cada princípio deverá desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas, e preservando o máximo de cada um, na medida do possível. Sua aplicação, portanto, não será no esquema tudo ou nada, mas graduada à vista das circunstâncias representadas por outras normas ou por situações de fato”.[33]
Superadas as concepções jusnaturalistas e metafísicas, bem como aquelas que os tinham como simples fonte normativa subsidiária, os princípios passaram por uma fase de positivação constitucional.[34]
Assim, para Paulo Ricardo Schier, os novos sistemas constitucionais acentuam sua carga axiológica, os princípios passam a caracterizar o cerne das constituições, promovendo uma verdadeira filtragem constitucional na leitura de todas as questões da dogmática jurídica.
Avilta-se nesse momento neoconstitucional a vinculatividade especial da Constituição a permitir uma adequada solução às hipóteses de colisões normativas, bem como a implementação de uma dogmática principialista.
10. CONCLUSÃO
A constitucionalização do direito vem revelando-se um marco, uma nova forma de pensar a ciência jurídica. Sua vagarosa evolução ao longo dos séculos é a demonstração clara de como o pensamento científico desenvolve-se ao mesmo passo do desenvolvimento do comportamento social.
A vigência e superação de pensamentos teóricos afirmam a constante do progresso científico. A evolução do direito natural ao positivismo, passando pela teoria crítica do direito, a superação da dogmática, com o deságüe no pós positivismo embebido de uma proeminência normativa constitucional e sua efetividade é o resumo do caminho traçado peça ciência jurídica até seu atual estágio.
Superou-se o Estado Legalista e impôs-se o Estado Constitucional. A ciência jurídica deita-se sobre um novo paradigma e o homem de mero coadjuvante passa a ser ator principal, traduzido em sua dignidade.
Graduado em Direito pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI; Especialista em Direito do Estado (Constitucional, Tributário e Processo) pela Universidade Católica de Brasília – UCB (Subárea de concentração – Direito Constitucional Processual); Membro Associado da Academia Brasileira de Direito Processual Civil – ABDPC; Servidor do Tribunal Regional Eleitoral do Piauí – TRE/PI; Foi Coordenador (2006) e Professor (2006, 2007, 2008) do Curso de Direito da Universidade Estadual do Piauí – UESPI/Campus Dom José Vasquez Diaz
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