Conforme advoga Fiorillo (2005, p.224), todo bem referente à nossa cultura, identidade e memória integra a categoria de bem ambiental difuso.
Quando a Carta Constitucional previu que, além do poder público, compete à comunidade a promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro, designou a este sua natureza jurídica.
Miranda (2006, p. 16) assevera que a proteção do patrimônio cultural insere-se, sem dúvida, no conceito de direito fundamental de terceira geração, sendo inconteste que a tutela desse direito satisfaz a humanidade como um todo (direito difuso), na medida em que preserva a sua memória e seus valores, assegurando a sua transmissão às gerações futuras.
Segundo Piovesan (2000, p. 37), são três as gerações de direitos fundamentais (direitos humanos):
1- Os direitos fundamentais de primeira geração – enquadram-se os direitos civis e políticos, compreendem as liberdades clássicas, são os que realçam o princípio da liberdade;
2- Os direitos fundamentais de segunda geração – neste estão os direitos econômicos, sociais e culturais. Identificam-se com as liberdades positivas, reais ou concretas e alicerçam o princípio da igualdade e
3- Os direitos fundamentais de terceira geração – englobando o direito ao meio ambiente equilibrado, uma saudável qualidade de vida, progresso, paz, autodeterminação dos povos e outros direitos difusos, cuja titularidade coletiva. consagra o princípio da fraternidade.
Existem autores que mencionam a existência de direitos fundamentais de quarta geração, os chamados novos direitos.
Sobre tal temática recomenda-se explorar Sarlet[1] (1998, p. 129).
É importante destacar que os direitos difusos compartilham de algumas características peculiares: a não – patrimonialidade integrada à qualidade de vida e à igualdade.
Quer dizer, o benefício em prol da preservação e proteção daquilo que é culturalmente (historialmente) importante se dá por força de um direito à igualdade e ao conceito de bem-estar.
Aliás, é assim que tem decidido o STF[2] em matéria ambiental:
“MS 22164 / SP – SÃO PAULO
MANDADO DE SEGURANÇA
Relator(a): Min. CELSO DE MELLO
Julgamento: 30/10/1995
Órgão Julgador: TRIBUNAL PLENO
A questão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – direito de terceira geração – princípio da solidariedade. – o direito a integridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração – constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao individuo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, a própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade. Considerações doutrinárias.”
Ademais, a nova ordem constitucional introduziu, no plano do direito positivo, novos e fundamentais conceitos, especialmente o conceito de direitos culturais como direitos humanos e a definição de patrimônio cultural, conforme estabelece o artigo 216[3] da Constituição Federal.
Neste sentido podemos afirmar que estes direitos culturais podem ser considerados verdadeiros exemplos de direitos humanos caracterizados pelo atributo da universalidade e fundamentalidade, como bem visualiza Alexy (apud Sarlet, p.160).
Como lembra Armelin (2008, p. 50):
“A importância de ser um bem jurídico autônomo decorre principalmente da melhor proteção jurídica que pode ser conferida a esse bem, e ainda da nova concepção constitucional dada ao patrimônio cultural, que necessita ser absorvida e aproveitada em sua amplitude e importância para que haja uma efetiva tutela. Ao ser ele separado do ambiente (natural[4]), cada órgão administrativo pode voltar-se para sua proteção específica, com maior ênfase e qualidade. Isto em nada denigre nem prejudica estes bens jurídicos, apenas os individualiza, por terem substantividade própria.”
No campo da cultura, a Constituição Federal de 1988 avançou mais que qualquer outra, tanto por consolidar o uso da expressão Patrimônio Cultural, já conhecida e usada no plano Internacional e na própria doutrina nacional, quanto por criar novas formas de proteção,
Tradicionalmente conhecia-se o instituto do tombamento, porém foi com a Carta Magna que surgiram as novas figuras protetivas.
Ademais, a nova ordem constitucional introduziu, no plano do direito positivo, novos e fundamentais conceitos, no campo da cultura, quer pelas disposições constitucionais, quer pelas normas estaduais.
Pertencem, tais direitos, por reconhecida compreensão doutrinaria e legal, ao grupo dos chamados direitos difusos, integrantes da categoria de direitos “metaindividuais”, em que indivisibilidade é a primeira característica, dado que são “de todos e (de) cada um, de cada um e de todos” (Sarlet, 1998, p.135).
Segundo Bernardo Olavo Gomes de Souza[5] (2000, p.6), um dos componentes destes direitos culturais é o direito de acesso ao Patrimônio cultural, conforme clara disposição da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul.
Continua Souza (2000, p.7) afirmando que o conceito de Patrimônio Cultural, por sua vez, está claramente exposto na Constituição Federal, cujo artigo 216 desvela o que se entende como (seus) elementos constitutivos,
E não é outra a noção trazida na Constituição do Estado. Além de explicitar a inclusão dentre os direitos culturais, o direito de acesso ao Patrimônio Cultural, reproduz e alarga a conceituação do art. 216, já antes mencionado.
Assim, a proteção do Patrimônio Cultural é uma decorrência de seu próprio conceito, do direito de acesso a ele e do dever constitucional imposto ao poder publico (Constituição Federal, artigo 215, caput e Constituição Estadual, artigo 220, caput e parágrafo único) como um desdobramento da nova categoria de direitos culturais, expressão do gênero de direitos difusos, protegidos pela ação popular, ao alcance de qualquer cidadão (CF. artigo 5º, LXXIII), e pela Ação Civil Pública, própria do Ministério Público (CF, artigo 129, III).
É importante registrar que, além das clássicas e conhecidas medidas de tombamento e desapropriação, a nova ordem jurídico-constitucional prevê novas e múltiplas formas de proteção do Patrimônio Cultural, como os inventários, os registros e a vigilância, além de outras formas de acautelamento e preservação.
Quanto à competência legislativa, tanto a jurisprudência, como a doutrina e a norma são taxativas, a espécie é a da competência concorrente. Competência concorrente é aquela em que vários órgãos das três esferas possuem capacidade de legislar.
Esta característica viabiliza a todos os legisladores, municipal, estadual e federal, propor e elaborar norma protetiva ao patrimônio cultural edificado, cada qual dentro do conceito de caráter local, estadual ou nacional.
Aliás, estes pressupostos encontram-se alicerçados na própria Carta Constitucional:
“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente[6] sobre:
I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;
II – orçamento;
III – juntas comerciais;
IV – custas dos serviços forenses;
V – produção e consumo;
VI – florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição;
VII – proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;
VIII – responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico[7];
IX – educação, cultura, ensino e desporto; […]”
E em decisões como as do Tribunal Regional Federal[8] da 1ª Região:
“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO – TOMBAMENTO – CENTRO HISTÓRICO DE CUIABÁ – PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL – COMPETÊNCIA DA UNIÃO, DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS – VIOLAÇÃO À AUTONOMIA DO MUNICÍPIO E AO PRINCÍPIO DA FEDERAÇÃO – INOCORRÊNCIA – DECRETO-LEI Nº 25/37 – 1. O fato de a concessão de alvarás sobre os imóveis pertencentes ao Centro Histórico de Cuiabá ser função da Prefeitura não exclui a competência da União, prevista na Constituição (arts. 216, § 1º, e 23, III e IV), para tratar da preservação do patrimônio cultural. Além disso, o inciso IX do art. 30 faz a ressalva de que a ação do Município no âmbito do patrimônio cultural deve observar “a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual”. 2. A r. sentença não constitui invasão da competência do Poder Legislativo. Ao determinar que o apelante se abstivesse de emitir alvarás autorizativos de obras que importassem em descaracterização da área à época em processo ainda não concluído de tombamento, o eminente magistrado acertadamente adequou ao caso concreto o disposto no art. 17 do Decreto-Lei nº 25/37. 3. Sentença mantida. Apelação e remessa oficial improvidas.” (TRF 1ª R. – AC 01000042556 – MT – 1ª T.Supl. – Rel. Juiz Fed. Conv. Manoel José Ferreira Nunes – DJU 05.06.2003 – p. 133)
Quanto à competência administrativa, optou o legislador constituinte em determinar que a mesma seja comum, vale dizer, incumbe as três esferas criar órgãos executivos, tais como o IPHAN (esfera federal), IPHAE (estadual) e Coordenadorias de Memória e Patrimônio[9], vinculadas às Secretarias Municipais.
“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
I – zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;
II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural[10];
V – proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;
VI – proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;
VII – preservar as florestas, a fauna e a flora”; […]
Quanto à competência do município, não resta dúvida que este tem possibilidade de legislar sobre norma de patrimônio cultural edificado que esteja vinculado a um interesse local:
“Art. 30[11]. Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local[12];
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; […]
IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual[13].”
É bem verdade que a análise das competências administrativa e normativa acerca da proteção do patrimônio cultural deve ser feita levando, também, em conta o disposto no art. 216 § 1º, da CF/88 que estabelece em tom imperativo e cogente que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro como bem lembra Miranda (2006, p. 87).
A Lei Orgânica Municipal de Pelotas, de 03 de abril de 1990, também assevera a competência municipal para a preservação do patrimônio cultural edificado:
“Art. 205 – Cabe ao Município promover o desenvolvimento cultural da comunidade local, mediante:
I – oferecimento de estímulos concretos ao cultivo das manifestações artísticas e culturais;
II. – cooperação com a União e o Estado na proteção dos locais e objetos de interesse histórico, artístico e cultural;
III – incentivo, promoção e divulgação da história, dos valores humanos e tradições culturais locais;
IV – instituição de órgãos destinados à realização de atividades de caráter educativo, cultural e artístico promovendo, prioritariamente, as manifestações da cultura regional;
V – convênios de intercâmbio cultural, científico e de cooperação financeira com entidades públicas ou privadas do Brasil e do exterior;
VI – promoção de incentivos especiais ou concessão de prêmios e bolsas, atividades e estudos de natureza cultural. […]”
Neste aspecto o artigo 208 da Lei Orgânica do município é bem elucidativo:
“Art. 208 – O Poder Público Municipal protegerá o patrimônio cultural através de inventários, registros, vigilâncias e desapropriações[14], cabendo-lhe:
I – estimular a preservação de tal patrimônio, através do Conselho Municipal de Cultura;
II – valorizar e destacar o tema no Plano Diretor;
III – priorizar o plano temático de preservação do patrimônio cultural e a qualidade da paisagem urbana;
IV – instituir departamento específico para o tema;
V – inventariar e tombar os documentos, obras, objetos, paisagens e demais bens móveis ou imóveis representativos do patrimônio histórico, artístico e cultural de Pelotas, por sua relação com a identidade cultural do Município;
VI – incentivar a potencialidade de concluir de modo a proteger os bens de interesse para preservação do patrimônio cultural.
Parágrafo Único – Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos na forma da lei.”
Como mencionado também os Tribunais (jurisprudência) tem tido este entendimento do Supremo Tribunal Federal[15]:
“FEDERAÇÃO – COMPETÊNCIA COMUM – PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO COMUM, INCLUÍDO O DOS SÍTIOS DE VALOR ARQUEOLÓGICO (CF, ARTS. 23, III, E 216, V) – ENCARGO QUE NÃO COMPORTA DEMISSÃO UNILATERAL – 1. Lei Estadual que confere aos municípios em que se localizam a proteção, a guarda e a responsabilidade pelos sítios arqueológicos e seus acervos, no Estado, o que vale por excluir, a propósito de tais bens do patrimônio cultural brasileiro (CF, art. 216, V), o dever de proteção e guarda e a conseqüente responsabilidade não apenas do Estado, mas também da própria União, incluídas na competência comum dos entes da Federação, a qual, substantivam incumbência de natureza qualificadamente irrenunciável. 2. A inclusão de determinada função administrativa no âmbito da competência comum não impõe que cada tarefa compreendida no seu domínio, por menos expressiva que seja, haja de ser objeto de ações simultâneas das três entidades federativas: donde, a previsão, no parágrafo único do art. 23 CF, de Lei Complementar que fixe normas de cooperação (V., sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos, a Lei nº 3.924/61), cuja edição, porém, é da competência da União e, de qualquer modo, não abrange o poder de demitirem-se a União ou os Estados dos encargos constitucionais de proteção dos bens de valor arqueológico para descarregá-los ilimitadamente sobre os Municípios. 3. Plausibilidade da argüição de inconstitucionalidade da Lei Estadual questionada: suspensão cautelar deferida.” (STF – ADI-MC 2544 – RS – TP – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJU 08.11.2002 – p. 21)
Atualmente a União, os Estados e os Municípios dispõem de inúmeros instrumentos legais de conceituação e de amparo à preservação do patrimônio cultural edificado.
O Brasil, neste sentido, tem sido signatário de diversas cartas patrimoniais, o que coloca o país numa posição positiva frente ao patrimônio cultural edificado. Ademais, o poder público (em todas as esferas) tem criado órgãos especializados para estas ações preservacionistas, por vezes junto às secretarias de cultura ou então nas secretarias de planejamento urbano.
Notadamente a falta de participação da comunidade na fiscalização e na criação destas normas pode ser um referencial negativo na ineficácia das mesmas.
Por outro lado, os poucos recursos destinados ao aparelhamento dos instrumentos de preservação contribuem para desmantelamento dos edifícios históricos públicos ou privados.
Por último, não se pode olvidar que a par de toda esta profusão legislativa, ainda convive-se com um desrespeito (violência) à preservação ao patrimônio, seja material ou imaterial [16], o que significa dizer que inevitavelmente devemos aumentar as vozes a clamar pela a garantia do exercício do que pretendo chamar de cidadania cultural.
Bacharel em Direito (UFPel). Pós-graduado em Direito de Família e Sucessões (ULBRA). Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural (UFPel). Foi aluno regular do Mestrado em Direito (PUC/RS). Atualmente é Coordenador do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Professor Assistente I da FURG, onde ministra Direito Civil, Professor do Curso de Especialização em Educação em Direitos Humanos – FURG/UAB. Membro do Núcleo de Pesquisa, Extensão e Estudos Jurídicos em Direitos Humanos NUPEDH (FURG). Pesquisador do GTJUS – Grupo Transdisciplinar em Pesquisa Jurídica para a Sustentabilidade (CNPq). Advogado. Membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/RS – Subseção Pelotas. Professor da Escola Superior de Advocacia – ESA – OAB/RS.
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