Heloana Vera Albuquerque – Graduada em Direito pela Universidade Antônio Eufrásio de Toledo. Especialista em Direito Civil pela Universidade Anhanguera Uniderp. (e-mail: heloana_oleh@hotmail.com)
Resumo: O presente trabalho busca analisar, em juízo de primeiras impressões, a novidade trazida pela Lei nº 13.964/19 (conhecida como Lei do Pacote Anticrime) no âmbito da Lei de Improbidade Administrativa, qual seja: o acordo de não persecução cível. Adotando-se o método dedutivo de pesquisa, com base na legislação, doutrina e jurisprudência nacionais, analisa-se a evolução normativa e costumeira acerca da possibilidade de celebração de acordo, em sede de ação de improbidade administrativa, até o advento da inovação apresentada pela Lei nº 13.964/19. Referida lei trouxe o instituto denominado de acordo de não persecução cível, a respeito do qual se avaliou as regras, os requisitos, o procedimento e as implicações jurídicas da nova previsão legal. Mostra-se, dessa forma, o grande avanço na seara administrativa, a qual necessitava de um instrumento eficaz para maximizar as investigações dos atos ímprobos. Não obstante, também se demonstram algumas incongruências trazidas pela Lei nº 13.964/19, cujo entrave deverá ser superado para o progresso, ainda maior, da luta contra a corrupção.
Palavras-chave: Acordo de não persecução cível. Negócio jurídico. Improbidade administrativa. Pacote Anticrime.
Abstract: The present scientific article seeks to analyze, in first impressions, the novelty brought by Law nº 13.964/19 (known as Law of Anti-crime Package) within the scope of the Administrative Improbity Law, namely: the civil non-prosecution agreement. Adopting the deductive research method, based on national legislation, doctrine and jurisprudence, we analyze the normative and customary evolution regarding the possibility of entering into an agreement, in the context of administrative impropriety action, until the advent of the innovation presented by Law nº 13.964/19. Said law brought the institute called a civil non-prosecution agreement, in respect of which the rules, requirements, procedure and legal implications of the new legal provision were evaluated. In this way, the great advance in the administrative area is shown, which needed an effective instrument to maximize the investigations of the improbable acts. Nevertheless, there are also some inconsistencies brought by Law nº 13.964/19, whose obstacle must be overcome for the even greater progress in the fight against corruption.
Keywords: Civil non-persecution agreement. Procedural legal business. Administrative dishonesty. Anti-crime package.
Sumário: Introdução. 1. Do ato de improbidade administrativa: regulamentação normativa. 2. Da possibilidade de acordo no âmbito da ação de improbidade administrativa: evolução jurídica e costumeira. 3. Da análise do acordo de não persecução cível: primeiras notas. 3.1. Previsão legal, conceito, natureza jurídica, legitimidade e momento 3.2. Requisitos e procedimento. 3.2.1. Regulamentação vetada do acordo de não persecução cível: artigo 17-A da Lei nº 8.429/92 (vetado). 3.2.2. Das razões do veto ao art. 17-A da Lei nº 8.429/92. 3.2.3. Da interrupção do prazo para contestação diante da iminência de acordo: aparente contradição entre a regra do art. 17, § 10-A com a norma vetada do art. 17-A, § 2º. 3.2.4. Das regras a serem observadas em razão da ausência de regulamentação própria. Conclusão. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Em sede de ato de improbidade administrativa, a redação original da Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa) vedava, de forma categórica, a realização de qualquer tipo de acordo no contexto das ações de improbidade, tudo diante da indisponibilidade do interesse público.
Por sua vez, na prática, os Tribunais vinham reconhecendo a legitimidade dos acordos que eram celebrados no âmbito de tais demandas cíveis, uma vez que a realização destes acordos conferia maior efetividade às investigações dos atos ímprobos por eles abordados, já que contavam com a colaboração eficaz dos investigados na busca da verdade.
Recentemente, a Lei nº 13.964/19, conhecida como Lei do Pacote Anticrime, encerrou esse entrave ao prever, na Lei de Improbidade Administrativa, a figura do acordo de não persecução cível, tema esse que é objeto da presente pesquisa científica.
A relevância desse instituto se destacou nos dias atuais, sobretudo porque se trata de uma novidade eficaz na luta pelo fim da corrupção, proporcionando mais uma ferramenta ao aplicador do direito com o intuito de viabilizar, com sucesso, a conclusão das investigações dos atos ímprobos praticados por agentes públicos, com ou sem o auxílio de terceiros.
Analisou-se, por ocasião do presente artigo científico, o novo instituto jurídico: o acordo de não persecução cível. Nessa oportunidade, avaliaram-se as regras, os requisitos, o procedimento e as implicações jurídicas da nova ferramenta no combate à corrupção. Paralelo a esse estudo, também se apontaram algumas incongruências apresentadas pela Lei nº 13.964/19, mas que deverão ser reparadas ao longo do tempo.
De todo modo, ressalta-se que a presente pesquisa não visou o exaurimento de seu objeto, mormente porque se trata de novidade no campo de improbidade administrativa e ainda não há doutrina ou jurisprudência consolidada acerca do tema. Desse modo, foram trazidas as primeiras impressões sobre o novo instituto jurídico à luz da legislação vigente e das diretrizes já enraizadas no ordenamento jurídico.
Para subsidiar esse trabalho científico, adotou-se o método dedutivo de pesquisa. Demonstraram-se, de início, os aspectos gerais em relação à possibilidade ou não, desde a implementação da Lei de Improbidade Administrativa, da celebração de acordo no âmbito da ação de improbidade administrativa. Em seguida, em um segundo momento, aferiu-se a inovação apresentada pela Lei nº 13.964/19, caminhando pelas regras e desdobramentos jurídicos da figura do acordo de não persecução cível.
Por fim, quanto à técnica empregada para a materialização dessa pesquisa científica, buscou-se apoio no entendimento jurídico sufragado na legislação, doutrina e jurisprudência pátrias, bem como à intenção do legislador ao criar o “Pacote Anticrime” em prol da luta contra a corrupção.
A Constituição Federal Brasileira tratou do tema de ato de improbidade administrativa no capítulo referente à Administração Pública, bem como o incluiu como uma das hipóteses de perda ou suspensão dos direitos políticos, consoante se infere do trecho destacado a seguir:
“Art. 37, § 4º – Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
(…)
V – improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.”
Por sua vez, o art. 37, § 4º, da CF, por constituir uma norma de eficácia limitada, foi regulamentado pela Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa). Referida lei prevê as características, modalidades, sanções e o processo relativos ao ato de improbidade administrativa.
Em relação à abrangência do termo de improbidade administrativa, em linhas gerais, pode-se afirmar que ele não se restringe ao conceito de imoralidade. A respeito dessa distinção, aliás, ministra a eminente doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2005, p. 711)
“(…) Quando se fala em improbidade como ato ilícito, como infração sancionada pelo ordenamento jurídico, deixa de haver sinonímia entre as expressões improbidade e moralidade, porque aquela tem um sentido muito mais amplo e muito mais preciso, que abrange não só atos desonestos ou imorais, mas também e principalmente atos ilegais. Na lei de improbidade administrativa (Lei nº 8.429, de 2-6-92), a lesão à moralidade administrativa é apenas uma das inúmeras hipóteses de atos de improbidade previstos em lei.”
Visando aclarar o entendimento do aplicador do direito, a aplaudida lei trouxe, em seus artigos 9º, 10, 10-A e 11, as hipóteses legais em que restaria configurado o ato de improbidade, sem, contudo, esgotá-las. Trata-se, pois, de rol exemplificativo, devendo ser analisado o caso concreto.
Visto isso e considerando que o objeto do presente artigo científico não é a análise aprofundada da norma da Lei de Improbidade Administrativa, passemos à análise e ao destaque das primeiras impressões (uma vez que, dada a recente novidade, ainda não há doutrina ou jurisprudência formada) a respeito do tema central desse trabalho.
Diferentemente do regramento conferido à ação civil pública, na qual é possível a realização de acordo, a antiga redação da Lei de Improbidade Administrativa vedava, categoricamente, a celebração de transação, acordo ou conciliação (art. 17, § 1º – antiga redação), independentemente do seu objeto, momento processual ou hipóteses de incidência na seara das ações de improbidade administrativa. Buscava-se, assim, assegurar a indisponibilidade do interesse público.
Em meados do ano de 2013, contudo, foi criada a chamada Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846 2013), estabelecendo a responsabilidade, civil e administrativa, das pessoas jurídicas que cometam atos contra a administração pública. Na oportunidade, foi criada a figura do acordo de leniência, sob a supervisão do Tribunal de Contas da União (Instrução Normativa nº 74/15 do TCU).
Sobre o laureado acordo de leniência, nas palavras de Pedro Canário (2020):
“(…) Foi prevista a primeira possibilidade de acordo envolvendo atos de improbidade administrativa. Mas a lei diz expressamente que esses acordos, chamados de acordo de leniência, só podem ser tocados pela Controladoria-Geral da União ou suas contrapartes nos estados e municípios, a depender de regulamentação local.” – grifos nossos
A título de curiosidade e estudo científico, confira-se o disposto no capítulo V da referida lei acerca do acordo de leniência:
“Art. 16. A autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo, sendo que dessa colaboração resulte:
I – a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; e
II – a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.” – grifos nossos
Nota-se do teor desse artigo que a lei não permitiu a realização de acordo de leniência pelo membro do Ministério Público. Apesar da falta de autorização legal, o que se notou, na prática, é que o Parquet firmou acordos de leniência em diversas oportunidades.
Ato contínuo, o dispositivo legal supramencionado ainda traz outras condições, efeitos e processamento do acordo de leniência, a saber:
“§ 1º O acordo de que trata o caput somente poderá ser celebrado se preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:
I – a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito;
II – a pessoa jurídica cesse completamente seu envolvimento na infração investigada a partir da data de propositura do acordo;
III – a pessoa jurídica admita sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento.
2º A celebração do acordo de leniência isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II do art. 6º e no inciso IV do art. 19 e reduzirá em até 2/3 (dois terços) o valor da multa aplicável.
Art. 17. A administração pública poderá também celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável pela prática de ilícitos previstos na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, com vistas à isenção ou atenuação das sanções administrativas estabelecidas em seus arts. 86 a 88.” – grifos nossos
Todavia, em que pese a previsão normativa do instituto do acordo de leniência, ainda assim permanecia em vigor a vedação legal de realização de transação nas demandas de improbidade.
Em 2015, porém, a norma do art. 17, § 1º, da LIA foi revogada pela Medida Provisória nº 703, derrubando essa proibição. Mas, logo em seguida, regressou ao arcabouço legal após a referida medida provisória perder sua eficácia quando de sua não aprovação pelo Congresso Nacional.
É claro que, apesar da vedação da lei, os Tribunais vinham reconhecendo a legitimidade dos acordos de leniência celebrados no âmbito das demandas de improbidade no caso concreto, isso em razão da efetividade que eles proporcionavam às investigações dos atos ímprobos.
Sobre esse ponto, discorre Felipe Luchete (2020):
“O fim de uma medida provisória que tentava regulamentar acordos de leniência “ressuscitou” dispositivo da Lei de Improbidade Administrativa que impede qualquer transação, acordo ou conciliação nesse tipo de processo. (…) Na prática, porém, negociações entre acusadores e investigados podem continuar, pois há precedentes judiciais e correntes no Direito que reconhecem a prática mesmo com a lei.” – grifos nossos
Em 2017, o Conselho Nacional do Ministério Público editou a Resolução nº 179/17, regulamentando o compromisso de ajustamento de conduta, firmado pelo Ministério Público, para a garantia dos direitos e interesses transindividuais.
Na ocasião, foi previsto, em seu art. 1º, § 2º, que o Ministério Público também poderá firmar compromisso nas hipóteses de improbidade administrativa, a saber:
“É cabível o compromisso de ajustamento de conduta nas hipóteses configuradoras de improbidade administrativa, sem prejuízo do ressarcimento ao erário e da aplicação de uma ou algumas das sanções previstas em lei, de acordo com a conduta ou o ato praticado.” – grifos nossos
Finalmente, a Lei nº 13.964/19 (Lei de aperfeiçoamento penal e processual penal ou Lei do Pacote Anticrime) trouxe, recentemente, a possibilidade de realização de acordo no âmbito das ações de improbidade administrativa. Trata-se do acordo de não persecução cível, o qual será objeto de análise do presente estudo científico.
Passemos, agora, às primeiras reflexões acerca desse novo instituto criado no cerce do direito administrativo, também servindo como instrumento para os direitos difusos e coletivos. É claro que não se irá esgotar o tema, mas apenas iniciar o debate acerca dessa novidade.
O acordo de não persecução cível foi criado pela Lei nº 13.964/19 (Lei de Pacote Anticrime) e configura uma grande novidade no nosso ordenamento jurídico, que há anos carecia de regulamentação legal e específica para maximizar e legitimar a luta contra a corrupção no país.
Paralelo a esse instituto, também foi criado o acordo de não persecução penal no âmbito criminal (art. 28-A e ss. do CPP), o qual já possuía previsão na Resolução nº 181/17 do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público).
3.1. Previsão Legal, Conceito, Natureza Jurídica, Legitimidade e Momento
O novo instituto jurídico possui previsão no art. 17, § 1º, da Lei de Improbidade Administrativa, conforme se vê:
“Art. 17, § 1º, da Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa). As ações de que trata este artigo admitem a celebração de acordo de não persecução cível, nos termos desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019).” – grifos nossos
O acordo de não persecução cível configura um negócio jurídico, consistente em um acordo celebrado entre o Ministério Público, ou a pessoa jurídica lesada, e o investigado de atos ímprobos, antes do início da ação de improbidade (ou, para alguns, durante a própria demanda cível), permitindo, diante do estabelecimento e cumprimento de determinadas condições, a não instauração da alusiva ação cível.
Por oportuno, destaca-se que, quanto ao momento para a celebração desse acordo, temos um tema polêmico e que será debatido a seguir.
Por sua vez, extrai-se do conceito acima destacado que esse instituto possui natureza jurídica de negócio jurídico, vez que depende da declaração de vontade das partes para sua pactuação. O professor e doutrinador Flávio Tartuce (2014, p. 333) conceitua o negócio jurídico como sendo o:
“Fato jurídico, com elemento volitivo qualificado, cujo conteúdo seja lícito, visando a regular direitos e deveres específicos de acordo com os interesses das partes envolvidas. Diante de uma composição de vontade de partes, que dita a existência de efeitos, há a criação de um instituto jurídico próprio, visando a regular direitos e deveres.”
No mesmo sentido da concepção colacionada dispõem os eminentes juristas Antônio Junqueira de Azevedo (in Negócio Jurídico. Existência, validade e eficácia, 2002, p. 16) e Álvaro Villaça de Azevedo (in Teoria Geral do Direito Civil, 2012, p. 169), ressaltando a importância da manifestação de vontade para a conclusão do negócio jurídico.
Em outro ponto, o promotor de justiça Landolfo Andrade (2020) assevera, ainda, que os legitimados não estão obrigados a firmar a transação, não constituindo ela um direito subjetivo ao investigado por ato ímprobo. É o que se extrai de seu pensamento:
“Justamente em razão da sua natureza consensual bilateral, não estão os legitimados obrigados a propor o acordo[iii], assim como não se pode obrigar o agente ímprobo a firmá-lo. Por exemplo, pode o Ministério Público, a partir de um juízo de conveniência e oportunidade, ajuizar a ação de improbidade administrativa ou formalizar o acordo de não persecução cível. Deve-se verificar qual a situação mais adequada, de acordo com as circunstâncias do caso concreto. É claro que se as condições se mostrarem favoráveis à celebração do acordo, deve-se privilegiar essa forma de solução do conflito, sendo dever tanto do Ministério Público como da Administração Pública buscar a solução negociada de forma exaustiva. Todavia, não existe para o agente ímprobo um direito subjetivo à celebração do acordo.” – grifos nossos
Em relação à legitimidade, apesar de carecer de regulamentação pormenorizada, mas em atenção ao veto do art. 17-A, caput e § 3º, da LIA e a sua respectiva razão (analisaremos adiante), entendemos que esse tipo de acordo pode ser celebrado tanto pelo Ministério Público quanto pela pessoa jurídica interessada.
De outro lado, quanto ao momento para realização do acordo, destaca-se que havia permissão, no projeto final da Lei nº 13.964/19, para que o acordo de não persecução cível fosse celebrado durante o curso da ação de improbidade (art. 17-A, § 2º). Porém, esse artigo também foi vetado, em cujas razões se consignou:
“§ 2º do art. 17-A da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, alterado pelo art. 6º do projeto de lei (…) Razões do veto
A propositura legislativa, ao determinar que o acordo também poderá ser celebrado no curso de ação de improbidade, contraria o interesse público por ir de encontro à garantia da efetividade da transação e do alcance de melhores resultados, compromete a própria eficiência da norma jurídica que assegura a sua realização, uma vez que o agente infrator estaria sendo incentivado a continuar no trâmite da ação judicial, visto que disporia, por lei, de um instrumento futuro com possibilidade de transação.” – grifos nossos
Nesse ponto, notamos que a razão do veto foi justamente a de impedir a realização do acordo de não persecução cível no curso da própria ação de improbidade, trazendo para momento anterior a sua celebração e visando não dar ensejo à persecução cível.
Assim, à luz desse entendimento, demonstrou-se a intenção em restringir a pactuação desse acordo à fase extrajudicial, à semelhança do que ocorre com o acordo de não persecução penal (art. 28-A e ss. do CPP), o qual também é realizado antes do início da ação penal.
É claro que a doutrina e a jurisprudência poderão se firmar em sentido contrário, justamente em razão do silêncio da lei. De fato, averígua-se que a Lei de Improbidade Administrativa nem autoriza e nem veda, de forma expressa, a celebração do acordo na fase judicial. Além disso, a permanência da regra do art. 17, § 10-A, como se verá mais abaixo, também poderá fortalecer essa corrente.
Nesse sentido, aliás, já se posiciona Landolfo Andrade (2020) em artigo jurídico publicado no Blog Gen Jurídico (http://genjuridico.com.br/2020/03/05/acordo-de-nao-persecucao-civel/), entendendo pela possibilidade de realização do acordo de não persecução cível no bojo da própria ação de improbidade.
3.2. Requisitos e Procedimento
Conquanto seja aplaudido o inédito instituto negocial, o acordo de não persecução cível carece, atualmente, de regulamentação de seus requisitos e processamento. Isso porque a disposição legal que regulamentava o acordo foi vetada, na íntegra, pelo Presidente da República.
3.2.1. Regulamentação vetada do acordo de não persecução cível: artigo 17-A da Lei nº 8.429/92 (vetado)
O artigo 17-A da Lei de Improbidade Administrativa tratava de todo o processamento do novo acordo previsto na lei, porém acabou sendo vetado. Entretanto, vale a pena ser colacionado o seu teor no presente artigo para fins de estudo científico, a saber:
“Art. 17-A. O Ministério Público poderá, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar acordo de não persecução cível, desde que, ao menos, advenham os seguintes resultados: (VETADO)
I – o integral ressarcimento do dano; (VETADO)
II – a reversão, à pessoa jurídica lesada, da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados; (VETADO)
III – o pagamento de multa de até 20% (vinte por cento) do valor do dano ou da vantagem auferida, atendendo a situação econômica do agente. (VETADO)
plano judicial ou extrajudicial, deve ser objeto de aprovação, no prazo de até 60 (sessenta) dias, pelo órgão competente para apreciar as promoções de arquivamento do inquérito civil. (VETADO)
Como se vê, os dispositivos vetados traziam os requisitos e todo o trâmite a ser observado para a confecção do acordo de não persecução cível.
O caput do artigo, juntamente com o seu § 1º, dispunham a respeito dos requisitos para a concessão desse benefício, analisando “as circunstâncias do caso concreto”. De outro lado, os incisos do art. 17-A traziam as condições que deviam ser observadas pelo investigado para que pudesse auferir esse benefício.
Na sequência, a lei estabelecia o momento em que o acordo poderia ser celebrado (§ 2º) e os legitimados para a sua celebração (§ 3º).
Regra interessante era a do § 4º, que previa que o acordo deveria ser objeto de aprovação prévia pelo “órgão competente para apreciar as promoções de arquivamento do inquérito civil”. Ressalta-se, que tal exigência não foi feita no âmbito do acordo de não persecução penal previsto no Código de Processo Penal.
Por fim, somente após o cumprimento dessa exigência é que o acordo seria “encaminhado ao juízo competente para fins de homologação” (§ 5º), momento a partir do qual estaria apto para surtir seus efeitos.
3.2.2. Das razões do veto ao art. 17-A da Lei nº 8.429/92
Como já se comentou acima, toda a regulamentação do acordo de não persecução cível foi vetada. Nas razões do veto, consignou-se o seguinte:
“Caput e §§ 1º, 3º, 4º e 5º do art. 17-A da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, alterados pelo art. 6º do projeto de lei (…) Razões dos vetos
“A propositura legislativa, ao determinar que caberá ao Ministério Público a celebração de acordo de não persecução cível nas ações de improbidade administrativa, contraria o interesse público e gera insegurança jurídica ao ser incongruente com o art. 17 da própria Lei de Improbidade Administrativa, que se mantém inalterado, o qual dispõe que a ação judicial pela prática de ato de improbidade administrativa pode ser proposta pelo Ministério Público e/ou pessoa jurídica interessada leia-se, aqui, pessoa jurídica de direito público vítima do ato de improbidade. Assim, excluir o ente público lesado da possibilidade de celebração do acordo de não persecução cível representa retrocesso da matéria, haja vista se tratar de real interessado na finalização da demanda, além de não se apresentar harmônico com o sistema jurídico vigente.” – grifos nossos
Nessa mensagem de veto, o Presidente da República menciona a possibilidade de celebração do acordo de não persecução cível também pela pessoa jurídica de direito público lesada pelo ato ímprobo, e não somente pelo órgão do Ministério Público.
Deve-se abrir uma pausa para se fazer uma crítica nesse ponto: ora, essa razão do veto presidencial também foi usada para vetar os demais dispositivos legais, os quais, assevera-se, não correspondiam à matéria de legitimidade exclusiva do Ministério Público. Referiam-se, apenas, ao requisitos e processamento do acordo, não havendo razão – ao menos justificada expressamente – para o veto nesses casos.
Superada essa crítica, destaca-se que também foram publicadas as razões do veto ao § 2º do art. 17-A, sob as quais já se argumentou acima.
3.2.3. Da interrupção do prazo para contestação diante da iminência de acordo: aparente contradição entre a regra do art. 17, § 10-A com a norma vetada do art. 17-A, § 2º
A Lei nº 13.964/19 trouxe outra inovação legislativa a respeito do tema, a qual foi sancionada sem maiores indagações. Vejamos:
“§ 10-A. Havendo a possibilidade de solução consensual, poderão as partes requerer ao juiz a interrupção do prazo para a contestação, por prazo não superior a 90 (noventa) dias. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)”
Nota-se que quando o artigo supracitado menciona o termo “solução consensual”, ele está se referindo ao acordo de não persecução cível, previsto no § 1º do art. 17, uma vez que o § 10-A destacado foi inserido na Lei de Improbidade Administrativa pela mesma lei que criou o acordo de não persecução cível.
Entretanto, adverte-se que a norma do novo § 10-A do art. 17 (“interrupção do prazo para a contestação”) vai de encontro às razões do veto à norma travada no § 2º do art. 17-A, que proibia a realização de acordo durante o curso da ação de improbidade.
Isso porque o § 10-A dá a entender que a possibilidade de acordo será realizada no curso da ação cível, uma vez que cita a expressão “prazo para a contestação”. Segundo a LIA, só há contestação após o recebimento da ação de improbidade, momento em que já se encontra instaurada a fase judicial.
Ora, se não é possível propor acordo no curso da ação judicial (como queria o veto) também não faz sentido em se falar em “possibilidade de solução consensual” durante o prazo aberto para contestação, dentro da ação de improbidade e da própria fase judicial.
Em que pese a contradição, o certo é que a permanência dessa regra no ordenamento jurídico (§ 10-A, art. 17) poderá fortalecer a corrente que sustentará a possibilidade de celebração do acordo de não persecução cível na fase judicial, já que existe uma regra vigente na Lei de Improbidade (§ 10-A, art. 17) que trata do acordo, ainda que indiretamente, no bojo da ação judicial.
De toda sorte, em razão da recente normatização da regra no ordenamento jurídico, ainda deveremos esperar qual será o posicionamento da doutrina e da jurisprudência a respeito do tema, mas deixa-se registrada a contradição para efeito de debate jurídico.
3.2.4. Das regras a serem observadas em razão da ausência de regulamentação própria
Diante do veto aos requisitos e às regras procedimentais para celebração do acordo de não persecução cível, esse instituto ficou sem regulamentação própria no ordenamento jurídico. Para o caso, Landolfo Andrade (2020) entende que:
“Diante da ausência de regulamentação, o próprio Conselho Nacional do Ministério Público pode regulamentar a matéria, em nível nacional, editando normas gerais a serem complementadas pelos Ministérios Públicos dos Estados e da União. Entendemos, também, que a própria Administração Pública poderá definir os parâmetros procedimentais e materiais a serem observados por seus entes na celebração dos acordos de não persecução cível.”
De toda forma, até que sobrevenha previsão por ato legal ou regulamentar para sistematizar a matéria, acredita-se que os transatores poderão se valer, no caso concreto e em atenção ao diálogo das fontes, da regulamentação de acordos semelhantes, como é o caso do acordo de leniência e do próprio acordo de não persecução penal, esse último cuja criação se deu na mesma ocasião – pela Lei nº 13.964/19 – do acordo de não persecução cível.
Acredita-se, porém, que esse fator não será motivo para o impedimento da utilização desse instrumento, afinal já há notícias de seu manuseio, segundo os informes do Boletim de Notícias ConJur, por Tadeu Rover (2020): “o Ministério Público Federal em Goiás assinou seu primeiro acordo de não persecução cível e criminal com um ex-diretor de escola da rede pública estadual”.
Resta, agora, aguardar o posicionamento da doutrina e jurisprudência nacionais sobre o tema.
CONCLUSÃO
Depreende-se da análise feita nesse trabalho científico que o processo administrativo carecia de um instrumento que pudesse viabilizar, de forma efetiva, a a conclusão satisfatória das investigações de atos ímprobos, proporcionando a diminuição da corrupção no país.
Não bastasse isso, verificou-se que esse cenário era encorajado pela própria Lei de Improbidade Administrativa, uma vez que ela trazia a vedação de realização de qualquer tipo de acordo em sede de ação de improbidade (art. 17, § 1º, da Lei nº 8.429/92 – LIA).
É verdade que, na prática, os Tribunais vinham reconhecendo a legitimidade desses acordos realizados no caso concreto, porém destacou-se que o cenário carecia de regulamentação legal, a fim de conferir maior credibilidade e efetividade à transação na seara administrativa.
Após várias tentativas e disposições normativas sem força de lei, recentemente, com a publicação da Lei do Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/19), houve a criação da figura do acordo de não persecução cível. Analisou-se que esse instituto, finalmente, permitiu a celebração de acordo no âmbito das ações de improbidade.
Todavia, aferiu-se que, embora a novidade seja benéfica, o acordo de não persecução cível não possui regulamentação própria a respeito de suas regras e processamento, uma vez que o artigo legal que tratava desses requisitos foi vetado pelo Chefe do Poder Executivo.
Assinalou-se que apenas permaneceu em vigor o dispositivo normativo que permite a celebração de acordo de não persecução cível, sem mais detalhes, bem como outro artigo legal que interfere no procedimento da ação de improbidade e vai de encontro ao veto de uma das normas que tratava sobre o acordo.
Como se trata de novidade, arremata-se que os entraves deverão ser analisados e solucionados, ao longo do tempo, pela doutrina e jurisprudência, bem como por uma nova regulamentação que tape as lacunas normativas deixadas. Apesar disso, não se pode deixar de reconhecer que já se conquistou mais um passo na direção da redução à corrupção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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