Resumo: Consoante as lições de Sacha Calmon Navarro Coelho, “o poder de tributar, modernamente, é campo predileto de labor constituinte. A uma, porque o exercício da tributação é fundamental aos interesses do Estado, tanto para auferir as receitas necessárias à realização de seus fins, sempre crescentes, quanto para utilizar o tributo como instrumento extrafiscal, técnica em que o Estado intervencionista é pródigo. A duas, porque tamanho poder há de ser disciplinado e contido em prol da segurança dos cidadãos”.
Sumário: I – Considerações gerais; II – Segurança jurídica e limitação ao poder de tributar; III – A irretroatividade da lei, IV – Lei interpretativa; V – Irretroatividade relativa da lei; VI – Exclusão de penalidades – retroatividade VII – Lei Complementar nº 118/2005 – inconstitucionalidade; VIII – Conclusão; IX – Bibliografia
I – Considerações gerais
Consoante as lições de Sacha Calmon Navarro Coelho, “o poder de tributar, modernamente, é campo predileto de labor constituinte. A uma, porque o exercício da tributação é fundamental aos interesses do Estado, tanto para auferir as receitas necessárias à realização de seus fins, sempre crescentes, quanto para utilizar o tributo como instrumento extrafiscal, técnica em que o Estado intervencionista é pródigo. A duas, porque tamanho poder há de ser disciplinado e contido em prol da segurança dos cidadãos[1]”.
O inciso XXXVI do artigo 5º da Lei Maior dispõe que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Esta é a forma ampla que consagra o princípio da irretroatividade como direito fundamental do cidadão. Por sua vez, em seu artigo 150 e incisos, veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado. Temos então, de forma específica, o direito fundamental do cidadão contribuinte.[2]
Infere-se que o princípio da irretroatividade possui grande relevância e é um dos princípios basilares que respaldam o exercício do poder de tributar, garantindo os direitos dos contribuintes. Tratando-se de princípios, proveitosa a lição do festejado jurista Geraldo Ataliba:
“Os princípios são as linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema. Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos órgãos do governo (poderes constituídos). Eles expressam a substância última do querer popular, seus objetivos e desígnios, as linhas mestras da legislação, da administração e da jurisdição. Por estas não podem ser contrariados; tem que ser prestigiados até as últimas conseqüências”.[3]
II – Segurança jurídica e limitação ao poder de tributar
O preceito constitucional em comento tem por base o princípio da segurança jurídica, arraigada no ordenamento jurídico pátrio, e de irrefutável valor, constituindo-se em limitação ao poder de tributar. Tal limitação assegura a promoção de sumos pilares sociais, proporcionando legislação adequada e sua saudável aplicabilidade, norteando, inclusive, toda espécie de normas do arcabouço jurídico nacional.
Nessa esteira, o magistério de Roque Antonio Carrazza, versando sobre as limitações constitucionais impostas à norma infraconstitucional, assevera:
“A União, os Municípios e o Distrito Federal têm competência para criar tributos. Mas, para que os contribuintes não fiquem à mercê do arbítrio destas pessoas políticas, ela deve desenvolver-se dentro de certos paradigmas, que nossa Carta Fundamental minuciosamente traçou.
É ponto bem assentado que a Constituição Brasileira ocupou-se, de espaço, com a tributação, vale dizer, com a ação estatal de exigir tributos. Dito de outro modo, ela contém grande número de disposições que tratam, direta ou indiretamente, de matérias tributárias.”[4]
Indubitavelmente, a exação não poderia estar desvinculada de diretrizes constitucionais, a ponto de possibilitar inúmeras ofensas aos contribuintes, mormente se considerarmos que, mesmo com o regramento da Constituição, encontram-se nos Tribunais diversos julgados que evidenciam a existência de cobranças abusivas ou contrárias aos princípios determinados aos entes tributantes.
O preclaro ensino de José Eduardo Soares de Melo, com a clareza que lhe é peculiar, alteia a necessidade de que a matéria tributária tenha exegese subordinada à Constituição, uma vez que esta é a lei fundamental e suprema do Estado. Vale a transcrição:
“O sistema constitucional tributário, constituído por princípio e regras específicas, é expressamente disciplinado em capítulo próprio da Constituição Federal (arts. 145-146) e demais normas esparsas (arts. 7º, III, 195, 212, § 5º, 239, §§ 1º e 4º, e 240 e ECs 21/1/1999 e 37/2002). Assim, os lineamentos, os contornos, as balizas e os limites da tributação encontram-se estatuídos na Constituição. O exame da matéria tributária impõe, necessariamente, a análise e a compreensão dos princípios e normas hauridos na Constituição, como lei fundamental e suprema do Estado, conferindo poderes, outorgando competências e estabelecendo os direitos e garantias individuais”.[5]
Obviamente, não há negação da necessidade de segurança jurídica na legislação pátria. Existe, porém, dissensões geradas por diferentes prismas, mormente a existência de exceções – ou aparentes exceções – ao princípio da irretroatividade tributária e seus desdobramentos, bem como as razões expendidas acerca do caráter relativo ou absoluto da retroatividade da lei.
No que diz respeito à segurança jurídica e a irretroatividade, disserta com peculiar saber, o insigne jurista Aliomar Baleeiro:
“O Estado de Direito encontra na irretroatividade os necessários suportes de segurança, previsibilidade e confiança. O que a Constituição garante, por meio da irretroatividade, é a perenidade do Direito expresso em lei e, em certo momento, revelado no ato administrativo ou judicial”.[6]
Resta patente que tanto os atos administrativos, como os judiciais, devem respeitar os limites delineados pela limitação que se impõe ao poder de tributar. Isso porque, a segurança jurídica consubstancia-se na previsão que o contribuinte pode ter em relação aos seus atos, aos fatos jurídicos e a lei.
III – A irretroatividade da lei
Como posto à vista, a Constituição Federal, objetivando a segurança jurídica, inseriu lineamentos que limitam o poder de tributar, submetendo todo o ordenamento infraconstitucional aos princípios balizadores. Dentre eles consagrou o princípio da irretroatividade da lei. Foi o que citamos inicialmente acerca da vedação à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado. (artigo 150, III, “a”).
Não se pode olvidar da explanação de Aliomar Baleeiro, quanto ao termo “vigência”, já que este é frequentemente confundido com eficácia:
“O termo vigência deve ser articulado ao princípio da anterioridade, uma vez que, no Direito tributário, uma lei pode estar vigente, mas ter sua eficácia por ele inibida (o que acontecia usualmente, quando existente, entre nós, o princípio da autorização orçamentária).
A expressão vigência, utilizada pela Constituição, em seu art. 150, III, a e b deve ser analisada de forma desvinculada à eficácia (…)”.[7]
Oportuna também a declaração de Luciano Amaro bordando a expressão “fato gerador”, contida no inciso III, alínea “a” do art. 150, CF:
“O texto não é feliz ao falar em fatos geradores. O fato anterior à vigência da lei que institui tributo não era, ainda, gerador. Só pode se pode falar em fato gerador anterior à lei quando aumente (e não quando institua) tributo. O que a Constituição pretende, obviamente, é vedar a aplicação da lei nova, que criou ou aumentou tributo, ou permanece como gerador de menor tributo, segundo a lei da época de sua ocorrência[8].”
Feita a ressalva e compreendida a importância dos princípios basilares, impende sobrelevar, o que dita o artigo 106, I, do Código Tributário Nacional:
“A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:
I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;”
O indigitado dispositivo tem gerado desmedida celeuma jurídica, principalmente, pela defesa de teses no sentido da relatividade da retroação da lei ou quanto à lei interpretativa. Além disso, autorizados mestres defendem que nem se trata de exceção, e sim, aparente exceção.
Para a análise minuciosa do artigo 106 e incisos, esmiuçaremos, separadamente, as expressões nele contidas, norteando-nos pelo exame da melhor doutrina, que, aliás, oferece farto material terminológico nesse sentido.
IV – Lei interpretativa
Quanto à cognominada “lei interpretativa”, por vezes, não há consenso se determinada lei é meramente interpretativa ou não. Em razão disso, concebem-se confrontos de teses jurisprudenciais e doutrinárias, como veremos.
Sob os escólios do Mestre Luciano Amaro, extrai-se que “nem a pretexto de interpretar lei anterior pode uma lei tributária voltar-se para o passado, com o objetivo de “explicitar” a criação ou aumento de tributo. Ou a incidência já decorre da lei velha, ou não: no primeiro caso, a lei “interpretativa” é inócua: no segundo, é inconstitucional[9]“.
A previsão de retroatividade interpretativa da lei, vai de encontro à proeminente trilha doutrinária, principalmente, pelo fato de confundir o papel dos poderes, uma vez que há a concepção de que a função de interpretar leis é cometida a seus aplicadores, basicamente ao Poder Judiciário. Destarte, imperioso fazer menção à sábia lição de Hugo de Brito Machado, em consonância com o ensino de Roque Antonio Carrazza e também encontrada na obra de coordenação de Ives Gandra Martins[10]:
“É importante termos em mente que a função de interpretação das leis pertence ao Poder Judiciário. Assim, se este já fixou uma das interpretações possíveis como sendo a que se deve adotar, se a jurisprudência firmou-se proferindo determinada interpretação entre as que foram sustentadas para um dispositivo legal, já não cabe ao legislador, a pretexto de editar lei interpretativa, adotar interpretação diversa daquela já adotada pelo Judiciário.”[11]
Nessa linha, insta mencionar a decisão do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria do Eminente Ministro João Otávio de Noronha, publicada em 11.05.2009 que versa sobre situações jurídicas, direitos subjetivos constituídos em razão da interpretação dada à Lei, antes do surgimento do dispositivo interpretativo:
“(…) Lei Interpretativa. Irretroatividade. As situações jurídicas, os direitos subjetivos constituídos em função da interpretação dada à Lei, antes do dispositivo interpretativo, não podem mais ser alterados ou atingidos, ainda que a hermenêutica autêntica venha infirmar o entendimento dado à Lei interpretada. (…)” (STJ; EREsp 327.043; Proc. 2001/0188612-4; DF; Primeira Seção; Rel. Min. João Otávio de Noronha; Julg. 27/04/2005; DJE 11/05/2009)
V – Irretroatividade relativa da lei
A erudição de Luciano Amaro faz crédito à irretroatividade relativa da lei, haja vista que, segundo o mestre, havendo obediência às restrições, a lei pode, em princípio, voltar-se para o passado:
“Como princípio geral, a Constituição prevê a irretroatividade relativa da lei, ao determinar que esta não pode atingir o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI); há, ainda, outras vedações à aplicação retroativa da lei (de que é exemplo a que decorre do item XXXIX do mesmo artigo: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”). Obedecidas as restrições, a lei pode, em princípio, voltar-se para o passado, se o disser expressamente ou se isso decorrer da própria natureza da lei; se nada disso ocorrer, ela vigora para o futuro.
A norma jurídica, em regra, projeta sua eficácia para o futuro. Diz a Lei de Introdução ao Código Civil que a lei em vigor terá efeito imediato e geral (art. 6º). Porém, em certas situações, e de modo expresso, pode a lei reportar-se a fatos pretéritos, dando-lhes efeitos jurídicos, ou modificando os efeitos jurídicos que decorreriam da aplicação, àqueles fatos, da lei vigente à época de sua ocorrência. Há leis que naturalmente, se vocacionam para atuar sobre fatos do passado, como se dá com as de anistia ou remissão.”[12]
Por outro prisma, Aliomar Baleeiro, resguarda o caráter absoluto do princípio da irretroatividade, afastando a relatividade e ponderando o posicionamento dos textos constitucionais na trajetória do ordenamento jurídico pátrio, bem como destaca o entendimento do pretório excelso, nesse sentido. “in verbis”:
“O princípio da irretroatividade no Direito positivo brasileiro não é relativo (como em outros países, em que não obteve consagração constitucional), mas absoluto e insistentemente repetido nos Textos Magnos nacionais. Mesmo antes da Constituição de 1988, na qual, pela primeira vez, o princípio da irretroatividade foi especificamente expresso para o Direito Tributário, o Supremo Tribunal Federal acolheu esse entendimento, repelindo empréstimos compulsórios retroativos, embora criados em situações excepcionais de calamidade pública ou urgente absorção temporária do poder aquisitivo (com base na Constituição de 1967/69).”[13]
Nas declamações de Hugo de Brito Machado, encontramos a exortação para distinção de “anistia” e “aplicação retroativa”, prevista no art. 106, II do CTN. Impreterível sua transcrição:
“Não se há de confundir aplicação “retroativa” nos termos do art. 106, II, com a anistia, regulada nos arts. 180 a 182 do Código. Embora em ambas as hipóteses ocorra aplicação da lei nova que elide efeitos da incidência de lei anterior, na anistia não se opera alteração ou revogação da lei antiga. Não ocorre mudança na qualificação jurídica do ilícito. O que era infração continua como tal. Apenas fica extinta a punibilidade relativamente a certos fatos. A anistia, portanto, não é questão pertinente ao direito intertemporal.”
VI – Exclusão de penalidades – retroatividade
A retroatividade tratada nesta ocasião, como já mencionamos, refere-se aos atos não definitivamente julgados. (art. 106, II). No entanto, há requisitos constantes nas alíneas “a”, “b” e c. Quais sejam:
a) quando deixe de defini-lo como infração; b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo; c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática. Relativamente a esses requisitos Hugo de Brito Machado, comenta:
“Não conseguimos ver qualquer diferença entre as hipóteses da letra a e da letra b. Na verdade, tanto faz deixar de definir um ato como infração, como deixar de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão.”[14]
Ainda, consoante às palavras de Hugo de Brito Machado, a exclusão de penalidades não é absoluta, pois tal autorização refere-se à má interpretação da lei, não aos casos em que se deixou de observá-la em sua totalidade. A respeito desta exclusão, leciona:
“Tal exclusão — é importante insistir neste ponto de grande relevância — não é absoluta, como poderia parecer da leitura do artigo 106 do Código. Ela diz respeito à má interpretação da lei, não à sua total inobservância. Admitindo-se, por exemplo, que em face de algum dispositivo da legislação do IPI se tenha dúvida sobre a necessidade de emitir o documento “a” ou o documento “b”, e que dispositivo novo, interpretativo, diga que no caso deve ser emitido o documento “b”, não se aplica qualquer penalidade a quem tenha emitido o documento “a”. Mas quem não emitiu documento nenhum, nem “a” nem “b”, está sujeito à penalidade, não se lhe aplicando a exclusão de que trata o artigo 106 do Código.”[15]
VII – Lei Complementar nº 118/2005 – inconstitucionalidade
Cumpre salientar que, não obstante o discorrido concernente ao princípio da irretroatividade, há, não raro, ofensas aos preceitos estabelecidos. Aplique-se, a título de exemplo, a declaração de inconstitucionalidade, no que se refere à prescrição tratada na Lei Complementar nº 118/2005, que alterou e acresceu dispositivos ao Código Tributário Nacional, dispondo sobre a interpretação do inciso I do art. 168 da mesma Lei. “in verbis”:
“Art. 3º Para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o § 1o do art. 150 da referida Lei.
Art. 4º Esta Lei entra em vigor 120 (cento e vinte) dias após sua publicação, observado, quanto ao art. 3o, o disposto no art. 106, inciso I, da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional”.
O STJ pacificou o entendimento no sentido de não considerar como norma interpretativa o artigo 3º da referida Lei Complementar supra colacionada, negando-lhe a aplicação retroativa. Sedimentou-se o entendimento de inconstitucionalidade, pela ofensa a preceitos constitucionais, como a violação ao art. 5º – XXXVI da Constituição Federal. (ERESP 644.736/PE).
Nesse sentido, editou-se a Súmula nº 52/TRF2, com o seguinte enunciado:
“É inconstitucional a expressão “observado, quanto ao art. 3º, o disposto no art. 106, inciso I, da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional”, constante do art. 4º, segunda parte, da Lei Complementar nº 118, de 09 de fevereiro de 2005, por violação ao art. 5º – XXXVI da Constituição Federal.”
VIII – Conclusão
Diante do exposto, resta patente a necessidade do exame vígil às leis insertas no ordenamento pátrio, a fim de se resguardar, diuturnamente, os princípios que regem a limitação ao poder de tributar, abrigando à imprescindível segurança jurídica.
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