Resumo: O presente artigo investiga se, na Índia, um dos fundamentos do hindu – que é a conexão entre todos os seres vivos – teve impacto no modelo jurídico de proteção ao meio ambiente. Ao final, pode-se verificar que houve um misto de influência dos Acordos Internacionais de proteção do meio ambiente e de influência do direito hindu, em um sincretismo típico daquele país.
Abstract: This paper investigates whether, in India , one of the Hindu Law fundamentals – that human beings are connected to every living beings – had an impact on the legal model of environmental protection. At the end, it can be seen that there was a mixture of influence of environmental protection of international agreements and influence of the Hindu law , in a typical Indian syncretism.
Sumário: I – Introdução,II – Direito Hindu,II.1. Período pré-clássico,II.2. Direito Hindu Clássico,II.3. Direito Hindu Clássico tardio,II.4. Direito Hindu Pós-clássico,III. Período da invasão muçulmana (1100 – 1600),IV. O período da ocupação inglesa,V. O Direito Nacional na Índia,VI. O Direito Ambiental na Constituição da Índia
I. Introdução
O ordenamento jurídico brasileiro alçou a proteção ao meio ambiente à estatura constitucional, reconhecendo-o como direito fundamental. O art. 225 da Constituição Federal de 1988 assegura a todos direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Em face do enunciado constitucional, desvela-se que a Lei Fundamental brasileira reconhece expressamente a existência de um bem ambiental da coletividade (indeterminada e indeterminável), na medida em que declara expressamente que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de todos.
Frente ao exposto, MILARÉ (2011) qualifica o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito e garantia fundamental, argumentando que “o reconhecimento do direito a um meio ambiente sadio configura-se, na verdade, como extensão do direito à vida, quer sob o enfoque da própria existência física e saúde dos seres humanos, quer quanto ao aspecto da dignidade dessa existência – a qualidade de vida, que faz com que valha a pena viver”.
No mesmo sentido, manifestou-se o Supremo Tribunal Federal:
O direito à integridade do meio ambiente — típico direito de terceira geração — constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) — que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais — realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) — que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas — acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade. (MS 22.164, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 30-10-95, DJ de17-11-95). No mesmo sentido: RE 134.297, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13-6-95, DJ de 22-9-95.
A Constituição Federal inaugurou, também, a ordem constitucional econômica brasileira, nos termos de seu art. 170. A Constituição econômica brasileira, como várias outras constituições democráticas do século XX, também condiciona o exercício da atividade econômica, dentro do sistema capitalista, à concretização da existência digna dos cidadãos brasileiros, observados diversos princípios, dentre eles, o da defesa do meio ambiente. Nesse contexto, a Constituição expressamente incumbe o Estado a condicionar/direcionar o livre exercício da atividade econômica por meio dos instrumentos legais de intervenção na economia para proteger o meio ambiente e a sadia qualidade de vida.
Assim, diante da necessidade de nossa sociedade em proteger um determinado objeto alçado à esfera jurídica – o meio ambiente –, optou-se por qualificá-lo como direito fundamental, por ser ele, segundo o pensamento recorrente desta época, inerente à condição humana, integrando o aspecto ambiental da dignidade da pessoa humana.
BENJAMIN (2008, p. 60/62) defende que a constitucionalização do meio ambiente é uma tendência internacional, fruto de um consenso que começou a ser construído a partir dos anos 70, como resultado da Declaração de Estocolmo de 1972. Em um primeiro momento, os países europeus que estavam superando regimes ditatoriais incluíram em seu texto a proteção ao meio ambiente – Grécia (1975), Portugal (1976) e Espanha (1978) – posteriormente, em um segundo grupo, veio o Brasil, em 1988, e, com a RIO-92, surgiu uma terceira leva de constitucionalização do meio ambiente.
É importante, porém, ter em mente que o discurso traduzido nas linhas acima é válido dentro do ordenamento jurídico brasileiro e em um contexto ocidental e é isso que instiga a perguntar: em outros sistemas jurídicos, foi necessário instituir normas para a proteção do meio ambiente? Tal proteção recebeu o selo de “direito fundamental”?
O sistema jurídico indiano desperta curiosidade na matéria ambiental a partir da constatação de que lá, como no Brasil, o ordenamento jurídico é o resultado de um processo histórico de dominação colonial, mas, ao contrário do caso brasileiro, ainda sofre forte influência do direito hindu, ali instituído a partir de 1500aC.
Os portugueses, aqui chegando, encontraram tribos indígenas, que viviam de acordo com seus costumes, muitos dos quais acolhidos na cultura brasileira, entretanto, suas regras de convivência foram suplantadas pelo colonizador, que, ao longo da História, não as reconheceu, dentro do ordenamento jurídico. Os grupos indígenas foram sistematicamente dizimados, escravizados e subjugados (RIBEIRO, 2006) e, até hoje, tem-se grande dificuldade em defender os direitos a eles conferidos pela Constituição de 1988.
No caso da Índia, como se verá adiante, não se pode dizer que havia um direito positivo de origem estatal dos hindus, mas que, em apertada síntese, havia um sistema de imposição de normas consolidado ao qual o sistema inglês se sobrepôs, respeitando várias das estruturas originárias de aplicação de regras e, principalmente, costumes. Antes dos ingleses, o Direito Hindu foi mantido, com exceção dos tributos e do direito penal, pelos muçulmanos, que passaram a ocupar a região. Esse sistema evoluiu para o atual Direito Nacional da Índia.
Além disso, na origem, o direito hindu chama atenção pela concepção que se tem da relação homem-natureza, em que esses e todos os demais elementos existentes na terra estão ligados e são regidos por uma ordem superior macro e microcósmica. O Direito hindu, em sua essência, está em harmonia com o meio ambiente, pois os homens, assim como todos os demais seres vivos, devem ter tanto respeito à natureza quanto eles têm a si mesmos – “as leis da natureza são normativas e existe um dever moral de cumpri-las” (GLENN, 2007, p. 73).
É fato que a Índia, hoje, aderiu ao modo de produção capitalista e é um dos principais países emergentes no mercado global. Resta saber se aquela concepção inicial da relação do homem com a natureza, que embasou a construção das tradições que exercem influência no Direito Positivo Indiano, exerceu influência na conformação jurídica do direito ambiental.
Investigar como o sistema jurídico indiano protege o meio ambiente e o qualifica é uma atividade do Direito Comparado e, para ser concluída com o mínimo grau de confiabilidade, deve observar os métodos e critérios dessa parte da ciência jurídica.
WEIGERT e KOTZ (1998, p. 34) indicam que o princípio metodológico básico do Direito Comparado é a funcionalidade, já que os sistemas jurídicos de cada sociedade enfrentam essencialmente os mesmos problemas e os resolve de formas distintas, mas chegando a um resultado similar. Exceção a essa tendência geralmente ocorre quando o problema é de grande interesse político. Assim, para os autores, a questão a ser enfrentada pelo jurista deve ser posta em termos essencialmente funcionais, sem referência ao sistema jurídico de origem. Seguem: nesse trabalho, o comparatista deve buscar todos os dados sobre tudo que afeta o Direito, todos os fatos, eventos, correntes de pensamento e, principalmente, a história do país, que, juntos, influenciam um sistema jurídico.
Bastante cautela é necessária nessa breve investigação de Direito Comparado, pois o substrato social e cultural indiano é tão distinto do brasileiro e também em razão de o objeto da comparação – proteção jurídica ao meio ambiente – ser considerado, aqui, um direito fundamental.
A qualificação de um direito como fundamental é o resultado de um processo ocorrido essencialmente no ocidente, acompanhado de correntes de pensamento que justificam desde longa data a necessidade de garantir esses direitos a todos e quaisquer seres humanos ocupantes da face da Terra.
PANIKKAR (2004, 213/216) aponta os fundamentos filosóficos essencialmente ocidentais que embasam a concepção de direitos humanos: (1) pressuposto da existência de uma natureza humana universal, comum a todos os povos, que implica em que: a natureza humana deve ser cognoscível; o conhecimento dessa natureza se dá por meio de um instrumento universal, a razão; a natureza humana difere da dos demais seres e coisas do universo, que faz com que os demais seres vivos sejam inferiores, não sendo sujeitos desse direito; a dignidade do indivíduo é absoluta e irredutível frente à sociedade e ao Estado; há uma verdadeira separação entre o indivíduo e a sociedade; existe uma autonomia da humanidade frente ao cosmos; (2) pressuposto da ordem social democrática, que, por sua vez, implica que cada indivíduo seja considerado igualmente importante; que a sociedade seja considerada a soma total dos indivíduos cujas vontades é soberana; e os direitos e liberdades individuais só podem ser limitados quando colidirem com as liberdades e direitos de outrem, o que justifica racionalmente a “ditadura” da maioria. A leitura desses pressupostos dá ao jurista ocidental a impressão de que está lendo nada menos que a verdade sobre o universo e é aí que vem a riqueza das tradições orientais, que permitem um questionamento e uma tomada de consciência sobre as verdades do ocidente.
Com base nesses pressupostos, no ocidente, firmou-se a ideia de que os direitos humanos são universais, mas é preciso ter uma postura crítica também quanto a isso, como ressalta Boaventura de Sousa Santos, no sentido de que o simples fato de se supor que os direitos sejam universais já trai a sua universalidade (SANTOS, 2006, p. 443). Sousa também defende que seus fundamentos são essencialmente ocidentais, identificados nas premissas de que a natureza humana é superior às demais, o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível a ser defendida perante a sociedade e o Estado e exige uma sociedade organizada a partir do somatório de indivíduos livres e autodeterminados.
Essa concepção do indivíduo nos moldes ocidentais pode ser facilmente contrastada com a concepção presente nas origens do Direito Hindu, por exemplo, de que o homem integra uma grande e harmônica ordem universal, devendo cumprir o seu papel dentro dessa ordem que, em determinadas circunstâncias, pode se impor à vontade pessoal do indivíduo – aqui, há uma centralidade do pensamento na comunidade e na própria comunhão do humano com a natureza em pé de igualdade[1]. Nesse contexto, a imposição de direitos humanos na concepção ocidental representaria clara forma de globalização hegemônica. Foram frequentes os casos na História em que países hegemônicos, na ordem global, utilizaram-se do discurso de defesa dos direitos humanos para impor seu poderio e, quando lhes aprouvera, promoviam a politica de invisibilidade desses direitos (SANTOS, 2006).
Partindo desses pressupostos, Boaventura propõe um estudo dos direitos fundamentais a partir de uma hermenêutica diatópica, que seria o diálogo entre duas culturas, que compreendem seus topoi, acolhendo, a um só tempo, sua condição como premissa de argumentação dentro de uma determinada cultura e, também, a sua incompletude perante a cultura de quem a está analisando. Essa análise diatópica permite a compreensão do caráter opressor dos direitos humanos, como concebidos inicialmente no ocidente, e de seu caráter original enquanto artefato cultural (SOUZA, 2006, p. 456).
PANIKKAR (2004) apresenta uma metodologia parecida com a proposta por SOUSA (2006), que atende bem ao requisito enunciado inicialmente para o desenvolvimento de um estudo de Direito Comparado, o da funcionalidade. Também partindo da hermenêutica diatópica, PANIKKAR apresenta o conceito de “homeomorfismo”, que representa:
“um equivalente funcional específico, descoberto através de uma transformação topológica. É um tipo de analogia funcional existencial.
Dessa forma, não buscamos transliterar os direitos humanos para outras linguagens culturais, nem devemos procurar simples analogias; tentamos, ao invés disso, buscar o equivalente homeomórfico” (PANIKKAR, 2004, p. 209).
Com esses parâmetros, passamos a investigar se o povo indiano, dentro de suas estruturas jurídicas, decidiu criar normas para a proteção do meio ambiente e se houve a necessidade de encobrir tais direitos com o manto dos direitos fundamentais. Para tanto, busca-se no trajeto histórico do Direito Nacional da Índia a resposta para os questionamentos lançados.
II. O direito hindu
A compreensão do direito da Índia, hoje, necessariamente passa pelo conhecimento da evolução do Direito Hindu, cujas origens remontam a 1500 aC.
Nesse contexto, é valiosa a definição apresentada por Glenn (2007) de que esse conjunto de normas deve ser estudado como uma tradição ctônica, que significa a tradição jurídica daqueles que vivem em harmonia com a terra, buscando os elementos para sua definição dentro das tradições e não a partir de critérios externos (GLENN, 2007, p. 60). É uma perspectiva interessante para o estudo de países que sofreram o domínio colonial europeu e tiveram sua cultura alterada de maneira violenta para atender aos desígnios do colonizador e mais adequada à análise de um Direito milenar, pois busca dentro da vivência da sociedade ao qual o direito se aplica os elementos que identificam esse sistema.
GLENN (2007, p. 60) explica que as tradições jurídicas ctônicas simplesmente surgiram a medida em que as experiências sociais se desenvolviam e a oralidade e a memória exerciam seu papel. Não há uma atividade específica reconhecida como produção do Direito, Direito é a informação que direciona todas as formas de ação da comunidade ctônica. O Direito, como concebido atualmente, existe nessas tradições misturado com várias outras atividades das comunidades, não se pode separá-lo da moral, dos costumes e da religião; é considerado apenas como “uma espécie de amálgama social” (GLENN, 2007, p. 69).
Suas características essenciais são a oralidade, procedimentos informais de solução de controvérsias, mais focados na solução do conflito do que na adjudicação – não havia fontes formais, regras precisamente definidas, apenas informações compartilhadas sobre a forma de viver a vida. Chama atenção, novamente, a relação do homem com a terra e o meio ambiente: o ser humano não domina o mundo natural, vive em harmonia com ele.
Faz-se necessário o registro feito por MENSKY (2006) de que, dentro da própria Índia, os estudos sobre o Direito Hindu enfrentaram grandes obstáculos diante da necessidade de tradução e compreensão dos textos sânscritos. Além da dificuldade com a linguagem, existiu uma barreira cultural (em especial dos ingleses) para traduzir o termo-chave do direito hindu, que é o dharma – complexo de deveres do indivíduo de fazer a coisa certa, no momento certo em qualquer fase da vida – simplesmente como Direito. Esse e outros conceitos hindus que regem as relações sociais não encontram correspondência nas normas oriundas de revelações monoteístas, base do Direito islâmico, ou positivismo Justiniano das famílias de Direito romano-germânico. Embora não haja correspondência entre os conceitos, também não se pode dizer que o conjunto de regras do Direito Hindu não seja Direito – não é nas mesmas bases da maioria dos ordenamentos jurídicos ocidentais, mas o é naquele contexto. Essa compreensão é imprescindível para que o estudo de Direito comparado seja minimamente válido.
Feita essa ressalva, fica assentado que, ao longo do presente tópico, a referência a Direito Hindu diz respeito ao conjunto de normas que rege as condutas pessoais e sociais nos períodos que precedem a implantação de um Direito instituído pelo Estado.
O Direito hindu também não pode ser compreendido como um direito uno, mas, sim, uma família de direitos, aplicado em uma grande área geográfica, adaptado às realidades e costumes de cada local, convivendo com os diferentes grupos religiosos, nos diferentes períodos históricos (MENSKY, 2006). MENSKY aponta outras características relevantes, que são a pluralidade e a justiça relativa, além da tolerância[2] (2006, p. 202).
Feitas essas considerações, é hora de lançar um olhar sobre a evolução histórica do Direito Hindu. MENSKY (2006), que juntamente com GLEN (2007) formam as bases para esse breve estudo, dividiu a História em quatro principais períodos, deixando claro que as características de cada uma das fases podem ser encontradas também na fase anterior ou na seguinte. São elas: a fase pré-clássica, dos textos védicos (1500aC – 500aC), fase clássica (500aC – 200dC), fase clássica tardia (500aC – 1100dC), período medieval sob a dominação muçulmana (1100 – 1600). Encerrada essa fase, segue o período colonial (1600 – 1950) e, por fim, o Direito Nacional da Índia (1950 até o presente).
II.1. Período pré-classico
O período pré-clássico é compreendido a partir da rica literatura existente, conhecida como os textos védicos ou Vedas. Mais ou menos 3500 anos atrás, helenos, italiotas, celtas e germânicos, vindos de onde hoje é o Iran, chegaram às planícies do que hoje é a Índia e se chamaram de arianos (indoeuropeus) ou superiores, com relação aos povos ali encontrados. Segundo a tradição, traziam Veda consigo, por isso, são védico-arianos (GLENN, 2007).
Os gregos chegaram no século IV aC e chamaram os que ali se encontravam de indoi (do original shidu ou rio). Hindu, originalmente, estava relacionado à ocupação territorial e não à religião. A tradição védica aos poucos foi se expandido e se modificando, até que toda a população que ali vivia passou a reconhecer o “direito ” védico como seu (GLENN, 2007).
Os textos védicos não consistem em um relato antropológico da vida das comunidades hindus naquele período, são textos com forte caráter de ficção e mitológicos, mas que permitem compreender a visão de mundo dos hindus nesse período. Nenhum Deus específico é indicado como autor, não há um mensageiro, profeta ou salvador. É um texto atemporal, auto-existente e eternamente imanente, de caráter divino e revelado por divindades, deuses não especificamente identificados (GLENN, 2007).
Um dos principais conceitos extraídos dos Vedas e que instiga o pesquisador a investigar como, no futuro, os indianos irão construir um sistema jurídico de proteção ao meio ambiente é o de Rita, que é um dos conceitos clássicos do hinduísmo e do Direito Hindu. Rita consiste em uma ordem macrocósmica em que tudo e todos estão conectados e, dentro desse contexto, têm um papel a cumprir – daí sua relevância para a compreensão do Direito. Existe um ideal de universo ordenado em dimensões macro e microcósmicas, como se fosse uma simbiose ecológica e cada parte tem seu papel, que representa a conceituação índica, hindu e do sul da Ásia sobre direito natural, tanto religioso quanto secular (MENSKY, 2006). A título de exemplo, o Regveda, o mais antigo dos vedas, continha menção expressa ao poder curativo das árvores: “Let fruitful plants, and fruitless, those that blossom, and blossomless, urged onward by Brhaspati, release us from our pain and grief”[3]. No Rigveda, há também registros dos rituais de adoração às árvores, que, como elemento da natureza, eram mais do que um presente dos deuses, representava um dos atributos desses deuses.
As normas individuais eram regidas essencialmente pelos costumes, definidos por forte influência da religião e dos rituais, que definiam a relação entre o homem e a natureza. Restará verificar adiante se o surgimento de costumes baseados na ideia de que o homem e a natureza integram a mesma ordem, sem uma dominação ou predominância humana – já que todos, inclusive os deuses, estavam submetidos à Rita – levou os indianos a, no futuro, precisarem (ou não) de um arcabouço jurídico robusto para proteger o meio ambiente.
Nesse período inicial, o enfoque maior era sobre a ordem macrocósmica. Os textos védicos continham rituais a serem precisamente[4] seguidos com o objetivo de manter essa ordem natural pré-existente, de que todos fazem parte. Nesses rituais, havia o propósito de pedir aos vários deuses (também sujeitos à ordem universal) que exercessem influência benigna sobre os homens, para que fossem beneficiados (MENSKY, 2006).
Os Brâmanes constituíam a elite religiosa que tinha a permissão para realizar os rituais. Quem detinha poder político e econômico financiava esses rituais, mas também estava submetido à ordem universal (MENSKY, 2006). Os textos ensinados pelos Brâmanes, por meio da tradição oral e, assim, adaptados para realidade local. Eram ensinados por meio de fórmulas mnemônicas, os sutras (smriti – tradição), que foram as primeiras manifestações escritas dessa tradição. As tradições passaram a ser escritas nos sastras (GLENN, 2007).
Os sutras contêm as orientações, regras, princípios por meio dos quais o homem pode alcançar os três objetivos da existência humana: a virtude, através do dharma, bens e poder (artha) e o prazer (kama). Partindo desses objetivos, desenvolveram-se os respectivos sutras e sastras.
Vedas já continham referência à organização comunitária: parishads (conselheiros em questões filosóficas), samiti (conselho deliberativo em questões legislativas menores); Sabha (conselho comunitário, responsável pela resolução de disputas, formado pelos autores do smriti).
II.2. Direito hindu clássico (500 aC – 200aC)
Nesse período, o foco passa a ser a ação do indivíduo e as comunidades já não mais dependem apenas de sua relação com a natureza e a ordem universal (Rita), o que provoca uma reconfiguração sócio-juridica no Direito Hindu, pois cada indivíduo tem seu papel ou responsabilidade, não estando a mercê apenas da natureza (MENSKY, 2006).
Primeiro conceito relevante dessa fase é o karma ou o que seria lei da ação e reação. Considerando que a alma é eterna e cada vida aqui na terra é uma passagem, a condição de vida do ser humano é resultado de suas ações e omissões em outras vidas, que podem ser um karma bom ou ruim. Por sua vez, o dharma consiste em uma ação boa ou correta em qualquer período da vida do indivíduo. Inicialmente, era obrigação elitista de realização dos rituais, que se expande e se populariza para incluir todas as ações humanas. São “privilégios, deveres e obrigações de um homem, seus padrões de conduta como membro de uma comunidade ariana, como membro de uma das castas, como pessoa em um estágio particular da vida.” Importante notar que são obrigações que submetem o homem às leis que regem o universo e que, por conseguinte, regem sua vida, abrangendo o nível macrocósmico e microcósmico (MENSKY, 2007).
Aqui, apesar da mudança do enfoque, o homem permanece como um elemento integrado à natureza pela ordem cósmica. Além da unidade com o universo, existe a ideia de unidade de espírito em uma pluralidade de formas. Separação e mudança não podem de fato existir. Não há dogmas ou teorias, não há instituições formais, mas a busca da plena consciência do ser, a realização simples de que as coisas simplesmente são (GLENN,2007, p. 290).
Em conjunto, karma e dharma explicam a existência das castas: o dharma define o papel de cada um na vida social, com obrigações determinadas e específicas decorrentes dessa posição. A casta a que a pessoa pertencer é decorrente de seu karma acumulado. As castas prevalecem até hoje e nenhum estudo conseguiu explicar seu surgimento e existência a partir de condições sociais específicas da Índia. São quatro castas: brâmanes (os que ensinam), Kshatirya (que protege, os guerreiros e benfeitores), Vaishyas (que fazem comércio) e os sudras (servos). Os três primeiros são considerados twice-born, pois, com a maturidade, terão acesso ao mundo da responsabilidade sagrada. Castas foram proibidas na Constituição, mas ainda persistem e há milhares que crêem nelas (GLENN, 2007).
A crença de que os rituais tem impacto na vida das pessoas passa por uma metamorfose, evoluindo para um raciocínio mais secular de que as próprias ações das pessoas é que impactam em suas vidas. A partir dos fundamentos védicos de ordem macrocósmica, o Direito Hindu Clássico desenvolve uma série de idéias interconectadas sobre o homem e o mundo em um sistema coerente de obrigações centradas em aspectos mais seculares: o karma e o dharma, resultando em um sistema de ordem auto-controlada, a percepção de um estado de humanidade ideal a ser perseguido, em que cada um agiria de acordo com seu dharma.(MENSKY, 2006).
Assim, karma e dharma, juntos, constituem um complexo sistema de demandas morais, ameaças e promessas retributivas, todos com o objetivo de promover comportamento apropriado “ideal”, em uma dada situação. Cria a ideia de um indivíduo com potencial para o autocontrole. Esse ideal não é viável na vida real, pois quem está em situação mais vantajosa sempre irá tirar vantagem disso – essa constatação provoca uma mudança no direito hindu, que “evolui” para a criação de obrigações seculares, como danda e vyavahara (MENSKY, 2006). O danda é instrumento secular de execução forçada (enforcement) do rei, cujo papel é garantir que os súditos cumpram seus dharmas. O rei até podia legislar, mas sua obrigação era aplicar a os comandos postos nos sastras e violar essas normas seria sinal de karma ruim (DAVID, 2002, p. 551). Assim, o rei reconhece que não pode impor normas, apela para o autocontrole e consciência de seus súditos. Isso reforça a sobreposição dos costumes ao Direito posto.
Três principais dharmasastras, escritos em versos, são o Código de Manu, que data de 100 aC (Glenn o considera como reservatório de regras legais, conceitos e instituições, que sempre deve prevalecer, posição criticada por Mensky); Yajnavalkya 300 dC; e Narada sec IV ou V dC – considera-se que ele concentra a Civil Law. Glenn (2007) entende que a filosofia e teologia foram deixadas de fora desses livros com o passar do tempo, chegando no auge de Narada. Para Mensky (2006), a filosofia hindu está implícita e, por ser óbvia, não precisou ser reproduzida.
Livro de Manu indica quatro fontes do Direito Hindu (formas de definir o dharma): Veda; smriti (conduta virtuosa daqueles que conhecem as escrituras); sadacara (comportamento dos bons) e consciência individual, nessa ordem. Na prática, entretanto, o hindu parte da análise de se fazer a coisa certa, no momento certo, em determinada situação, considerando o contexto social.
É preciso ter cuidado para não considerar os sastras apenas como textos jurídicos e para não reduzir o Direito Hindu aos textos. É mais fácil estudar os escritos, em oposição à pesquisa de campo para levantar as tradições e costumes, essa dificuldade, entretanto, não permite que se faça esse reducionismo quanto aos textos. Só se tem notícia de litígios em tribunais a partir do século XVII.
II.3. Direito Hindu clássico tardio (500 aC – 1100 dC)
Nesse período, tem-se a compreensão de que os indivíduos são egoístas por natureza e precisam de lembretes sobre suas obrigações, de forma que foi necessário criar um suporte sistêmico para fortalecer o autocontrole individual e social. A manutenção da ordem cósmica agora passa a envolver agentes públicos/externos e não mais simplesmente o controle social local ou o autocontrole (MENSKY, 2006).
Surge o vyavahara como instrumento de resolução de conflitos e suporte externo à manutenção do dharma. Começa a se verificar a necessidade de um Direito estatal e de intervenção judicial e surgem os primórdios do processo (DAVID, 2002, p. 552). É um processo que busca remover uma dúvida sobre o dharma, concebido para buscar a verdade (satya). Não se busca mais o rita, mas o que é apropriado e correto entre os humanos no contexto do dharma.
Ocorre a mudança do autocontrole para o danda (ameaça de punição), o que reforça as funções do Hindu ruler (raja), que é o guardião do dharma, cuja violação impunha a aplicação de sanções. Segundo Mensky, isso consiste apenas nos primórdios do Direito Penal, já que a conduta do cidadão ainda é definida a partir da ordem universal, com fortes nuances locais, e não pelo Estado. O Raja não cria norma primária de direito, ele administra o que as pessoas entendem o que é a sua lei, sem que elas possam desconsiderar a moral e a ligação entre suas obrigações e a ordem macro e microcósmica. Na realidade, as noções do que é apropriado, com base nos costumes locais, continua sendo a mais importante fonte de direito na realidade social.
Raja tem as características do Varuna, o guardião védico de Rita. Sua função evolui para uma atividade de resolução de conflitos. Sua função ainda não é dizer e impor o direito, mas viabilizar que seus “súditos/regulados” cumpram seu próprio dharma, na medida do possível. Na origem, o ruler protegia a comunidade de ataques externos e sua função evolui para a proteção do dharma (MENSKY, 2006).
Nesse período, a violação do dharma passa a ser uma questão pública, mas é difícil qualificá-lo como Direito positivo em si, pois ele ainda está ligado ao sistema cósmico. Não há um conceito simples de direito positivo na Índia antiga, o que há é um conceito intricado, de consciência plural, de proteção às comunidades (MENSKY, 2006). Ruler era chamado quando havia disputas a serem resolvidas ou crimes a serem punidos, mas não havia uma regra clara de competência que justificasse a sua atuação, tudo dependeria do contexto.
Essa maneira de resolver as questões dá aos ocidentais a impressão de que se está agindo de maneira corrupta, contrária à lei, mas é, na verdade, a aplicação das antigas formas de solução de conflitos hindu. A menos que o ruler estivesse em busca de proveito pessoal próprio, ele atuava mais como um supervisor e nem tomava conhecimento dos conflitos existentes (MENSKY, 2006).
Em um conflito, não se discutia o direito subjetivo de uma das partes, mas se a conduta das partes representava o cumprimento de seu dharma. PANIKKAR apresenta uma interessante reflexão sobre o dharma e os direitos:
“Um mundo no qual a noção de Darma é central e permeia quase tudo não se preocupa em identificar o “direito” de um indivíduo em relação ao outro, ou do indivíduo em relação à sociedade, mas, mais do que isso, com a designação do caráter dérmico (direito, verdadeiro, coerente…) ou a-dármico de algo ou de uma ação dentro do complexo antropocósmico da realidade como um todo.(…)
Nosso ponto de partida não é um indivíduo, mas toda a complexa concatenação do real. Para proteger o mundo, em nome da proteção deste universo, diz Manu, Svayambhu, aquele que existe per se, organizou castas e seus deveres. O darma é a ordem da realidade como um todo, aquilo que mantém o mundo coeso. O dever do indivíduo é manter seus “direitos”, é descobrir seu lugar em relação à sociedade, ao cosmos e ao mundo transcendente”. (PANIKKAR, 2004, p. 231)
São fontes do direito hindu nessa fase: virtude (dharma – processo de conscientização da parte que está errada, interno ou prévio ao início do processo), “processo de resolução externa de conflitos” (vyavahara), evidência dos costumes (caritra) e o veredito do rei (rajasasana).
II.4. Direito Hindu pós-clássico (1100 em diante)
Nessa fase, a ênfase é ainda maior para encontrar o equilíbrio na sociedade em processos tangíveis e mais públicos de resolução de controvérsias, as questões seculares ganham maior expressão.
Os smriti tem novas funções: na medida em que passam a comentar regras antigas, esses textos promovem a atualização dessas regras, tornando-as mais aplicáveis às situações contemporâneas. Não há revogação de textos antigos, mas interpretações, que precisam ser bem criativas para viabilizar sua adaptação ao contexto legal.
Os responsáveis pelos comentários não são simplesmente juristas, são especialistas na ciência do dharmasastra e tem especial interesse em gramática ou filosofia e menos em Direito. É importante lembrar que as normas de conduta ainda estão atreladas ao contexto cósmico do direito hindu tradicional. Nessa fase, ocorriam abusos e interpretações meramente pessoais dos textos antigos (MENSKY, 2006).
Os dois textos mais importantes do período, que abordam questões de propriedade e foram usados pelos ingleses na tentativa de compreender o direito hindu são Dayabhaga of Jimutavahana; e Mitashara of Vijanesvara (MENSKY, 2006).
A maior parte do direito hindu, no período, permaneceu sob o enfoque das tradições, praticadas de maneira informal, sem registros e, portanto, não disponível para análise jurídica formal. É um período em que se fortaleceu ainda mais o processo formal de resolução de disputas, enquanto a essência da cultura hindu permaneceu invisível e internalizada.
III. Período da invasão muçulmana (1100 – 1600)
A fragmentação política da Índia medieval facilitou a dominação islâmica e a instituição de um poder central. O poder político esteve nas mãos dos muçulmanos, que se alternaram no poder em vários reinos durante esse período, mas o direito hindu não deixou de existir e continuou a ser aplicado em vários níveis. Na verdade, o Direito Hindu tornou-se parte do direito oficial, em seus próprios termos no período de dominação islâmica, reforçando o pluralismo jurídico na Índia (MENSKY, 2006).
Depois da consolidação do domínio islâmico, os dois sistemas jurídicos conseguiram conviver em relativa harmonia, em razão da similaridade entre eles, já que ambos estavam fundamentados em prescrições religiosas e sociais, de certa forma, compatíveis; ambos deduziam normas jurídicas de textos sagrados, aos quais era submetida toda a sociedade; e tiveram uma evolução histórica bem parecida (LOSANO, 2007, p. 478/479).
A vida do Hindu, em geral, não sofreu grandes mudanças, a menos que estivesse próximo à capital. Sendo minoria, os islâmicos desistiram de regular a vida cotidiana do hindu, preservando as normas islâmicas para os seus, ficando sua imposição restrita às cidades, ao recolhimento de tributos e à administração da justiça criminal. Permitiram a existência de hindu subrulers, desde que fossem pagos tributos, de modo que os islâmicos não interferiam na vida dos hindus. Deve-se considerar, ainda, a tradição hindu de que uma disputa raramente era resolvida fora do clã ou da família. Com a presença islâmica, essa tradição é reforçada, até como forma de preservação das comunidades hindus. Ruler islâmico até chegava a aplicar direito hindu nas relações entre hindus e, em alguns casos, entre hindus e muçulmanos (MENSKY, 2006). O direito hindu era aplicado no âmbito dos panchayats, que eram as assembleias comunitárias.
Até como reação à dominação islâmica, foram produzidos smriti, que tomaram a forma de digestos ou nibandhas, tal como o Krityakalpataru ou Bhatta Lakshmidhara. Experts nesses textos passaram a ter o monopólio do conhecimento e alcançaram considerável poder, o que fora até objeto de abuso e exploração, como os ingleses vieram a perceber mais tarde.
IV. O período da ocupação inglesa
A presença inglesa, inicialmente, se fez por meio da Companhia das Índias Orientais, que construiu sua primeira base em 1612 e foi, paulatinamente, expandindo seus domínios, o que inclui a imposição do direito anglo saxão sobre o território indiano. Até que em 1858, a Coroa Britânica decidiu assumir diretamente a administração da justiça na Índia por meio do Indian Act, quando a rainha Victória torna-se a Imperatriz da Índia, que passa a ser governada por um Vice-Rei, auxiliado por um conselho de natureza administrativa, o Legislative Council (LOSANO, 2007).
Durante o período da ocupação inglesa, o Direito Hindu sofreu profundas transformações, notadamente na parte do direito de propriedade e obrigações, que passaram a ser regidos pelo Common Law (WEIGERT e KOTZ, 1998, p. 317). Nas relações econômicas e sempre que um inglês era uma das partes, aplicava-se o seu direito.
Na parte do direito de família e sucessões, as relações eram regidas pelo Direito Hindu. A presença dos ingleses, assim, teve um impacto positivo, na medida em que reconheceu como oficial o direito hindu para aplicá-lo aos povos hindus, da mesma forma como fez com o direito islâmico. Por outro lado, definiu seus âmbitos de aplicação, deixando, por vezes, questões relevantes do ponto de vista dos costumes sob a égide do direito imposto (DAVID, 2002).
Os ingleses trouxeram consigo o sistema do Common Law, bem como juízes ingleses, que, para aplicar o direito hindu, lançaram mão dos pandits, que eram uma espécie de perito que, segundo os dharmasastras e o nibanda diziam o direito no caso concreto.
Os pandits foram muito criticados, acusados de terem sido levianos e, por vezes, tirado proveito ilícito de sua atividade, tanto que, a partir de 1847, não atuavam mais em auxílio aos juízes ingleses. Na verdade, como bem observa DAVID (2002), o próprio princípio sobre o qual se fundava esse sistema estava equivocado, pois o dharma de cada indivíduo não podia ser identificado de maneira objetiva, como se os textos sagrados fossem lei geral e abstrata nos moldes dos códigos ocidentais. Esse é um conceito que só pode ser encontrado em um determinado local, tempo e contexto social – a relatividade da Justiça é da essência do direito hindu.
O direito hindu, então, continuou sofrendo grandes transformações ao ser aplicado pelos juízes ingleses, que atuavam de acordo com a lógica do Common Law.
Houve um forte movimento no sentido da codificação do Direito aplicável no território Indiano. A codificação tinha como objetivo conferir uma pretensa segurança e unidade ao direito, viabilizando a expansão da atividade econômica do país e permitindo a recepção de um direito inglês sistematizado, simplificado e adaptado às condições da Índia, mas, nesse processo, foram consideradas as peculiaridades da Índia, resultando em um direito muito distinto daquele aplicado na Inglaterra.
Surge, também nesse período, o conceito de lex locci, que era o conjunto de regras autônomo em relação à religião ou tribo (DAVID, 2002). É um corpo jurídico que regula as relações em um território que abriga comunidades de diferentes religiões, como os hindus, muçulmanos, cristãos e judeus.
V. O Direito Nacional na Índia
Ao longo do século XX, começam a ganhar força os movimentos de independência da Índia, contexto em que se destaca a atuação de Ghandi, considerado pai da independência da Índia. Ao decidir pelo ingresso da Índia na II Guerra Mundial sem consultar os indianos, a Coroa aprofundou os conflitos entre muçulmanos e indianos (o primeiro grupo aderiu à decisão inglesa, enquanto o segundo não), o que resultou em violentos conflitos durante o movimento de independência e criação do Estado da Índia e do Paquistão (LOSANO, 2007, p. 485/486).
Em 1947, a Índia tornou-se independente e, em 1950, entrou em vigor sua Constituição. LOSANO (2007) apresenta o novo arranjo institucional da União Indiana:
“A constituição de 1950 deu à Índia a estrutura de uma república presidencial, com sistema bicameral de deputados eleitos e representantes de cada um dos Estados da União Indiana.(…)
Em conclusão, a evolução da União Indiana criou uma democracia de tipo ocidental que, apesar dos problemas do subdesenvolvimento, da corrupção e das guerras locais, pode ser considerado um modelo positivo de transição do regime colonial para o democrático. Seu direito segue, assim, a estrutura formal do Common Law, adotando normas de tipo ocidental adaptadas às peculiaridades de um Estado gigantesco e heterogêneo. Sobretudo, mesmo tendo nascido de uma divisão fundamentada na religião dos habitantes, a União Indiana é um Estado laico.” (LOSANO, 2007, p.488)
Dentro do novo território, o Direito Hindu não se confunde com o Direito Nacional da Índia, que tem o seu caráter laico reforçado em um Estado concebido nos moldes dos sistemas jurídicos ocidentais.
Em um contexto em que convivem as normas que buscam viabilizar o crescimento econômico em escala global e um direito gerado a partir das tradições, durante muito tempo, o Direito Hindu foi relegado pelos juristas da Índia e observadores externos, que entendiam estar a sua aplicação restrita à seara do Direito de Família. As tendências da globalização dos mercados também exerceram (e ainda exercem) forte pressão para uma adequação da legislação indiana aos padrões internacionais, em especial nas áreas do direito que afetam mais diretamente as relações econômicas (MENSKY, 2006).
Embora tenha prevalecido essa visão por longa data, hoje, é possível concluir que essa não foi a melhor conduta. MENSKY (2006) constatou que importantes searas do Direito da Índia foram recentemente restruturadas utilizando-se conceitos do Direito Hindu, tais como o acesso à justiça, os direitos fundamentais, o direito ambiental e os direitos do consumidor.
Ao longo da História, foi construído um Direito na Índia que respeitava leis pessoais dos muçulmanos, cristãos e judeus residentes ali residentes. A Constituição de 1950, tida por secular, propõe um modelo equidistante de todas as religiões, mas com forte coloração hindu, que ainda se faz muito presente na vida das comunidades, muitas vezes, a despeito do Direito estatal (MENSKY, 2006).
VI. O Direito Ambiental na Constituição da Índia
Ao analisar meramente o texto da Constituição Indiana e sua leitura, feita a partir da Corte Constitucional, é possível identificar um discurso muito próximo ao exposto no início desse ensaio, que retratou o status jurídico da proteção ao meio ambiente no Brasil.
O art. 48-A[5] da Constituição determina que o Estado proteja e fomente o meio ambiente e mantenha as florestas e vida selvagem. O art. 51-A-G[6] impõe também aos cidadãos o dever de proteger e fomentar o meio ambiente, que inclui as florestas, lagos, rios e a vida selvagem e que tenha compaixão com as criaturas vivas. Esses dois artigos foram inseridos na Constituição pela 42° emenda constitucional, em 1976, fazendo da Índia um dos primeiros países a contar com previsão expressa sobre o direito fundamental ao meio ambiente, ao lado de países europeus, como Portugal e Espanha.
Sobre as origens desses e dos demais direitos fundamentais relacionados ao meio ambiente, CHOUHAN e DALEI (2012) apontam que os princípios da Declaração de Estocolmo estão refletidos nos artigos da Constituição Indiana que tratam do direito à igualdade, liberdade de expressão e direito à vida e à liberdade pessoal – direitos insculpidos na parte que prescreve os direitos fundamentais.
A par do texto constitucional, seguem os autores, a Suprema Corte Indiana, a partir dos anos 80, teve grande protagonismo na área ambiental, ao reconhecer (1) que a poluição que afeta o meio ambiente é considerada como atentado à vida, aplicando-se o art. 21[7], que garante o direito à vida e à liberdade; (2) a possibilidade do fechamento de determinada atividade econômica que afeta negativamente o equilíbrio do meio ambiente; (3) O direito à vida abrange o direito aos meios de vida, assim, o desenvolvimento não é contrário ao meio ambiente, mas se este causar um dano evitável ao meio ambiente de modo a inviabilizar os meios de vida, há ofensa ao direito à vida; (4) direito à igualdade é violado quando o Estado autoriza empreendimentos de maneira arbitrária, em desacordo com as normas ambientais aplicáveis e sem considerar devidamente seus impactos ambientais. Nesse último ponto, grupos representantes da sociedade civil tem questionado judicialmente esses atos.
SHANDILYA (2013) faz uma leitura do texto constitucional que remete aos fundamentos do direito hindu. Para ele, a área rural é verdadeiro repositório do meio ambiente e essas regiões devem ser conservadas. A Emenda 73 declarou os Panchayats (espécie de assembleia comunitária que teve origem no direito hindu) como instituições de autogoverno e concedeu mandato para que, nesse locus institucional, seja elaborado e executado planejamento para econômico e de justiça social. Dentro do conceito de justiça social está o direito a um meio ambiente equilibrado e os meios para viabilizá-lo. Vê-se, aqui, o empoderamento das esferas locais de poder, onde, provavelmente, as tradições do direito hindu permanecem mais vivas, e há uma vinculação, ao menos no direito positivo, entre a atuação dos Panchayats e o ideal de justiça social ambiental.
Assim, o Direito Nacional da Índia concebeu a proteção ao meio ambiente como direito fundamental, que integra uma das dimensões da dignidade humana. Dessa constatação, podem ser levantadas algumas teses.
Considerando os pressupostos ocidentais que deram origem e sustentam o discurso de validade dos direitos fundamentais e o longo período de dominação inglesa no território indiano, tem-se a impressão de que, ao menos nesse trecho, a norma constitucional aparece muito mais como o resultado da dominação ocidental do que da tradição hindu fundada no dharma.
Isso porque a definição do dharma de cada indivíduo não estava centrada em sua individualidade ou em um conjunto de direitos subjetivos, o dharma se define a partir da posição do indivíduo dentro da sociedade e em relação à ordem cósmica universal que conecta todas as coisas vivas. O enfoque do direito hindu não conhecia o conceito de dignidade da pessoa humana, em termos ocidentais, até porque esse conceito pressupõe a separação do indivíduo da sociedade, como bem observado por SANTOS (2006).
Utilizando a hermenêutica diatópica, PANIKKAR lança um olhar interessante sobre os direitos humanos, a partir dos pressupostos do direito hindu. Essa leitura corrobora a hipótese de que até é possível encontrar o equivalente homeomórfico de direitos fundamentais no direito hindu, mas os conceitos não se confundem e tem pressupostos filosóficos diferentes:
Segundo PANIKKAR (2004, p. 232/234), os direitos humanos não devem ser “absolutizados” e tomados como entidades objetivas, existindo por conta própria e isolados do contexto real das sociedades; os direitos humanos não são apenas direitos individuais, pois o “humanum não está encarnado apenas no indivíduo. (…) O indivíduo é apenas um nó, que está inserido e participa da rede de relacionamentos que formam o tecido do real.”; os Direitos Humanos também estão relacionados à disposição geral cósmica geral do universo, que envolve os seres vivos e não vivos; os direitos humanos devem abranger também os deveres humanos para manter a ordem universal e cumprir sua participação na “função metabólica” do universo.
É evidente que a leitura feita pelo Autor dos direitos humanos utilizou parâmetros do Direito Hindu, que não se confunde com o Direito Nacional da Índia, mas o exercício é válido, na medida em que expõe o distanciamento entre os fundamentos filosóficos do texto constitucional e do direito hindu.
Como a proteção ao meio ambiente afeta diretamente a atividade econômica de exploração dos recursos naturais, é provável que, nesse ponto, o ordenamento jurídico tenha se conformado mais aos interesses do país dominante e, após a Independência, da classe responsável pelo exercício da atividade econômica (que não mudou substancialmente). WEIGERT e KOTZ (1998, p. 66), ao analisar o enquadramento de ordenamentos jurídicos nas famílias legais, alerta para o fato de que, dependendo do ramo do Direito, um país pode se enquadrar em um ou outro grupo. Na parte de direito de família, a Índia sofre forte influência do Direito Hindu, mas as leis econômicas sofreram grande pressão do pensamento jurídico da Common Law, o que poderia, em tese, justificar a semelhança com um modelo ocidental, como o brasileiro, de proteção ao meio ambiente.
Em um breve ensaio como este, sem o devido amparo das demais ciências sociais, fica difícil concluir se a semelhança entre os sistemas de proteção ao meio ambiente indiano e brasileiro é mais um resultado positivo da aplicação da tese de WEIGERT e KOTZ (1998) de que as sociedades costumam das soluções parecidas para os mesmos problemas ou se a necessidade de qualificar o meio ambiente como direito fundamental já é resultado da constatação, na prática, de que o homem já não se sente mais conectado à natureza por uma ordem universal, vendo-a como fonte de recursos econômicos apenas, protegidos por meio de mero discurso jurídico e normas positivadas, para atender a uma pressão internacional de proteção apenas aparente ao meio ambiente.
A tese lançada nas linhas acima tem um contraponto. MENSKY (2006) verificou que, a partir dos anos 70, constatou-se que a chamada “modernização” do sistema jurídico (com a Constituição e um conjunto de códigos) não foi capaz de cumprir suas promessas, tais como a diminuição da pobreza e da desigualdade social. Os níveis de corrupção do Estado demonstram ser ele um dos principais violadores da lei[8]. A partir daí, conclui ele, houve um retorno aos fundamentos do direito hindu, que, aos poucos, passaram a aumentar sua influência no direito positivo. Ao que parece, ele continuou existindo (e resistindo) apesar dos códigos estatais.
Esse período coincide que a época em que foram editadas as emendas constitucionais que insculpiram a expressa proteção do meio ambiente. Essas mudanças se operaram durante o Estado de Emergência, carreado pela Primeira Ministra Indira Ghandi, que provocou profundas alterações econômicas, jurídicas e políticas na Índia. MENSKI (2006, p. 269) lê essas emendas como uma exortação a que os indianos acessem sua consciência individual para acessar o que é apropriado, como no período hindu clássico, em que se depositava grande confiança na consciência. Ele defende que houve uma “tradicionalização” do direito positivo, que passou a exprimir o espírito do direito hindu.
Assim, respondendo às indagações postas no início deste breve estudo, pode-se concluir que o povo indiano entendeu ser necessária a criação de institutos jurídicos para a proteção do meio ambiente e, ainda, necessitou qualifica-los como direitos fundamentais constitucionalmente protegidos.
A inclusão dos direitos humanos na Constituição da Índia pode, sim, ter sido resultado da pressão para modernização do sistema jurídico, do longo processo de dominação britânica e todos os valores ocidentais.
No mesmo sentido, também é possível que a constitucionalização da proteção ao meio ambiente tenha sido influenciada pela Declaração de Estocolmo, como resultado da dominação ocidental. Como visto acima, os fundamentos dos direitos fundamentais, como concebidos no ocidente, encontram pontos de forte divergência com os fundamentos do direito hindu.
Apesar da divergência em seus pressupostos, também é possível (e até bem provável) que, partindo dos fundamentos do direito hindu e, principalmente das ideias de Rita e dharma, o povo hindu tenha a necessidade de proteger o meio ambiente em que vive (e morre, e vive, e morre…) e ao qual está integrado por uma ordem cósmica superior. Essa proteção poderia ter outra roupagem que não a dos direitos fundamentais, sendo o equivalente homeomórfico do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Diante desse quadro, é importante lembrar que o Direito da Índia é o resultado da imposição de um modelo inglês, que se sobrepôs ao direito islâmico, que, por sua vez, se sobrepôs e conviveu com o direito hindu, resultando em um Estado laico. Esse sistema jurídico precisa compatibilizar, a um só tempo, o crescimento econômico em níveis globais e conformar povos hindus, muçulmanos, cristãos e judeus com um longo e arraigado histórico de conflito. Ademais, é preciso sustentar um direito positivo que apresenta grande déficit de legitimidade entre os regulados, que ainda valorizam mais as tradições e o costume do que as normas estatais.
Diante de tamanha complexidade, os Direitos Humanos foram positivados na Constituição a priori em sua concepção ocidental. Posteriormente, como vários dos institutos importados, sofreram mutação resultante da presença ainda viva e forte do direito hindu. Dessa equação resultou um direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado de feições ocidentais (inspirados na Declaração de Estocolmo) e espírito hindu – um sincretismo tradicionalmente indiano.
Mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília procuradora federal com atuação na área de Direito Ambiental perante os Tribunais Superiores
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