Fabio Augusto Galvão Machado Cardoso – Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Assessor Jurídico de Promotoria do Ministério Público da Bahia. fabiogmc1992@gmail.com.
Resumo: O presente trabalho propõe a organização de debates jurídicos e criminológicos sobre a problemática que gira em torno das provas ilícitas no processo criminal e sua atual aplicabilidade prática na visão dos órgãos judiciários e doutrinadores. Inicialmente, teremos uma abordagem histórica dos motivos que levaram a atual Constituição da República a vedar a admissão das provas ilícitas, bem como a posterior apresentação das principais teses jurídicas de admissibilidade aplicadas hoje pelo Poder Judiciário. Desta feita, visa-se o estudo também no que concerne a essa admissibilidade das provas consideradas ilícitas através de um juízo ponderador que recai sobre um conflito real entre bens jurídicos: por um lado um bem social consubstanciado no interesse público punitivo; por outro um bem individual, considerado como garantia fundamental constitucionalmente prevista. Assim, o trabalho buscará discutir o papel do intérprete nessa relação e a tendência em que se encontra o posicionamento dos Tribunais para um futuro sobre a flexibilização das provas ilícitas.
Palavras-chave: Provas Ilícitas; Admissibilidade; Proporcionalidade; Interpretação
Abstract: The present work proposes the organizing of juridical and criminological debates about the problematic that surround the illicit proofs in the criminal process and your actual practical applicability in the vision of the judiciary organs and scholars. Initially, we will have a historical approach of the reasons that the current Constitution of the Republic uses to seal the admission of illegal evidence, and the subsequent presentation of the main legal theories of admissibility applied today by the Judiciary. This time, the aim is also to study regarding the admissibility of this evidence deemed illegal by a court that weight falls on an actual conflict between legal interests: on one hand a social embodied in punitive public interest; by another individual as well, regarded as a fundamental constitutional guarantee provided. Thus, the paper aims to discuss the role of the interpreter in this relationship and the tendency is that the positioning of the Courts for a future on the easing of illegal evidence.
Keywords: Illegal Evidence; Admissibility; Proportionality; Interpretation.
Sumário: Introdução. 1. Da Teoria das Provas em Geral e das Provas Ilícitas. 1.1. Noções conceituais. 1.2. Princípios do livre convencimento motivado do juiz/ vedação do excesso/ máxima efetividade dos direitos fundamentais. 2. Provas Ilícitas Por Derivação: A Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada. 3. Provas Ilegítimas. 4. Teorias de Aceitabilidade das Provas Ilícitas. 4.1. Teoria do Encontro Fortuito de Provas. 4.2. Teoria da Descoberta Inevitável. 4.3. Teoria da Fonte Independente. 4.4. Aproveitamento das provas Ilícitas na exclusão de ilicitude. 5. A Relativização da Ilicitude. 6. A Aceitação das Provas Ilícitas Sob os Prismas Constitucional e Administrativo. 7. Considerações Finais. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
No presente artigo, a pretensão inicial relativa aos resultados se pauta em estudos doutrinários e jurisprudenciais – a partir de uma metodologia eminentemente indutiva – que dizem respeito à temática das provas ilícitas e sua admissibilidade no processo penal, confrontada com a tese administrativista de supremacia do interesse público frente a garantias individuais fundamentais.
A perspectiva preliminar deste autor tende a defender a inadmissibilidade das provas ilícitas em linhas gerais, porém a admitir sua flexibilização em determinados casos específicos em que o interesse público demonstre ser tão maior que as garantias individuais constitucionais que impedem a violação de certos direitos. O cerne do trabalho, então, girará em torno do art. 5º, LVI da Constituição da República, o qual a princípio veda de maneira total e peremptória a introdução de qualquer sorte de prova ilícita no processo (em geral).
Com isso, a proposta aqui delineada buscará contemplar as diversas teses atinentes à questão, bem como os posicionamentos do Poder Judiciário frente à matéria das provas processuais, seguindo o entendimento de que não existem na ordem jurídica direitos absolutos que impeçam um juízo de ponderação e proporcionalidade, quando duas garantias estão em conflito entre si. Interessante colocar que serão expostos também nestas linhas pontos de vista divergentes dos deste autor, no sentido de democratizar e oportunizar visões distintas sobre este debate, o que com certeza o enriquecerá.
Assim, a tese que se buscará esgrimir nessas linhas é a de que o interesse público deve ser sobreposto ao interesse individual quando da atividade punitiva, mas a admissão das provas ilícitas deve se dar somente em determinados casos em que esse mesmo interesse seja justificadamente maior (considerando inicialmente que o interesse coletivo está contido em todo e qualquer ato punitivo estatal). Não será, dessa maneira, admitida a prova ilícita em todo e qualquer processo, cabendo ao Juiz da causa ponderar interesses e conflitos entre bens jurídicos distintos.
A capitulação do trabalho será feita da seguinte forma: inicialmente, capítulo conceitual sobre a matéria e os princípios jurídicos que a circundam; posteriormente, capítulo de análise das questões constitucionais e administrativas na questão do interesse público punitivo; tópicos sobre as teorias utilizadas, bem como as causas de exclusão da ilicitude das provas processuais penais; capítulo que irá discutir a questão que tangencia a relativização das provas ilícitas; e por fim as considerações finais do trabalho.
A inadmissibilidade suscitada tem fundamento, ademais, num processo histórico de evolução democrática que buscou limitar a atuação do Estado punitivo, tendo em vista que este monopoliza a produção das provas penais e é o responsável pela máquina pública utilizada para punir.
Por outro lado, deve se ter em mente que a flexibilidade conferida pelo intérprete (Magistrado), quando da análise do caso concreto para permitir a produção da prova considerada ilícita também constitui uma forma de defesa de garantias fundamentais, só que direcionadas à coletividade, e não a determinado indivíduo especificamente.
Ademais, ainda em um juízo perfunctório, mister salientar o atual período político em que se encontra o ordenamento jurídico brasileiro, notadamente no que tange à Constitucionalização de direitos ditos fundamentais – assim adotados como premissas básicas ao regular desenvolvimento do Estado democrático de Direito.
Com efeito, é assente em toda a doutrina e jurisprudência a valoração dos chamados “princípios jurídicos” não só como balizas orientadoras da criação e aplicação de normas, mas também como normas efetivamente aplicáveis. O surgimento de tais dispositivos deu-se com a consolidação do chamado “Neo-Constitucionalismo”, fenômeno que revelou inúmeros expoentes jurídicos e tendeu à criação de diversas teorias hermenêuticas que buscaram a instrumentalização de métodos interpretativos no sentido de preencher e aplicar as normas.
Dessarte, sabido que essas técnicas interpretativas, bem como os princípios jurídicos hoje se arvoram por todos os ramos da configuração atual do Direito brasileiro, dentre eles o do Processo Penal. Nesse sentido, tem-se que suas aplicações no processo crime possuem algumas particularidades inerentes à atividade punitiva, tornando esta multidisciplinar pela relação de congruência com as questões Constitucionais, bem como Administrativas.
Assim se diz porque, dentre as garantias individuais trazidas pela Constituição Federal de 1988 (em especial muitas daquelas elencadas em seu art. 5º), podemos destacar inúmeras das quais são direcionadas à processualística penal. A que será objeto de estudo direto deste trabalho está contida na regra do inciso LVI do referido dispositivo, não se olvidando, por óbvio, as demais premissas principiológicas que coadunam com o tema aqui exposto.
É de se dizer quanto a isso, que as restrições que o legislador constituinte (e ordinário) impôs à atuação administrativa no exercício da função punitiva estatal configuraram importante avanço no enfrentamento da arbitrariedade e das injustiças penais que historicamente existiram em todo o mundo. O processo de evolução político/constitucional do Direito permitiu a ampliação de debates em torno dessas garantias, que até então agem com o escopo de frear o interesse público em punir.
Nessa toada, o conteúdo do inciso supracitado é claro ao infirmar a incidência das provas ilícitas em quaisquer espécies de processo, mormente ao processo penal, visto tratar-se de restrição de garantias individuais fundamentais, verbis: “LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Em uma ordem jurídica em que se prestem louvores às instituições democráticas e a estas garantias individuais, este mecanismo representa um importante meio de proteção aos jurisdicionados contra decisões arbitrárias do Estado punitivo.
Contudo, é necessário frisar que tal regra não apresenta conteúdo peremptório, exauriente ou mesmo absoluto, devendo ser interpretada à luz de diversos outros princípios em juízo de ponderação, tais como da Proporcionalidade e da Razoabilidade.
Assim, impende destacar a importância de se sopesar a aplicação de regras e princípios jurídicos (não só no processo penal), sob pena de incorrer em juízos distorcidos de realidade e interpretações incoerentes da intenção do legislador.
Doutra banda, apenas para efeitos de uma melhor compreensão do todo, cabe citar algumas das demais garantias direcionadas ao indivíduo no processo crime, que configuram verdadeira oposição ao denominado jus puniendi (entendido como um direito, mas também como um dever do Estado em punir): a) a vedação à prisão de qualquer indivíduo, salvo por força de sentença judicial ou em situação de flagrante delito; b) o direito a não auto incriminar-se; c) a não imputação de crime sem lei anterior que a defina; dentre outras.
Feitas as considerações iniciais sobre o tema, cumpre agora cingi-lo.
1.1 Noções conceituais
O simples conceito do termo “prova judicial” pode ser definido como todo e qualquer elemento material, direcionado ao julgador para apreciação, no sentido de esclarecer, elucidar, trazer à verdade os fatos alegados em determinada fase processual.
Nessa toada, prova judicial é todo “recurso”, todo “instrumento” apto a demonstrar a veracidade das alegações das partes em juízo, por meio do qual o julgador irá emitir uma decisão de convencimento a respeito da causa.
O objeto sobre o qual determinado meio de prova recai é um fato determinadamente controvertido, que necessita de algum elemento externo que lhe confira a verossimilhança das alegações que sobre ele incidem. Excepcionalmente, matérias de direito também podem ser objeto da incidência de prova.
No que tange à diferenciação entre “fonte” e “meio” de prova, tem-se que o primeiro representa um elemento externo ao processo, notadamente mais amplo (qualquer fato jurídico em sentido amplo serve como “fonte” de prova); enquanto o segundo se constitui em apenas os mecanismos internos processuais, aptos a servir como espécies de comprovação.
Melhor dizendo, os meios de prova são as espécies admissíveis de prova (confissão, depoimento pessoal, interrogatório, testemunhas, dentre outros) na instrução processual, quando as fontes podem se consubstanciar em qualquer fato jurídico.
Por fim, alcançando a conceituação que mais nos interessa neste trabalho, passemos a falar das provas ilícitas.
Conforme dito alhures, a Constituição da República de 1988, em seu artigo 5º, inciso LVI, veda expressamente a utilização de provas ilícitas no processo. Destarte, a prova ilícita, segundo a Doutrina mais atualizada, e pelo entendimento já pacificado pelos Tribunais Superiores, é compreendida como
“(…) qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em conseqüência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do “male captum, bene retentum”. Doutrina. Precedentes. (HC 82788, CELSO DE MELLO, STF.)[1]“
Assim, o decisum acima destrinchou com maior clareza o próprio conceito trazido pelo caput do artigo 157 do Código de Processo Penal (com redação dada pela Lei 10.690/08), senão vejamos: “Art. 157: São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais” (grifo deste autor).
Sem prolongamentos desnecessários (pela clareza trazida no julgamento do Habeas Corpus e no caput do artigo), a prova ilícita é toda aquela que afronta as disposições de normas do ordenamento, seja por sua própria natureza, seja pelo meio empregado para sua obtenção.
1.2 Princípios do Livre Convencimento Motivado do Juiz/ Vedação do Excesso/ Máxima Efetividade dos Direitos Fundamentais
Cabe destacar, e aqui de maneira efusiva, que a ordem jurídica vigente no Brasil adotou como princípio processual atinente às provas o do “Livre Convencimento Motivado” do Juiz.
É certo que o momento em que se deve valorar o conteúdo das provas processuais penais foi bem flexibilizado pelas normas vigentes, sendo regra a produção daquelas a qualquer tempo (incluindo a fase de recursos), devendo-se respeitar apenas o contraditório. Do mesmo modo, no que concerce à valoração em si, ao juízo de admissibilidade e análise de mérito que recai no conjunto probante, sabido que possui uma considerável carga discricionária por parte do julgador.
Isso porque, o atual sistema permite ao Magistrado apreciar livremente as provas contidas no processo, adotando quaisquer delas como fundamento para o seu livre convencimento sobre os fatos ali declinados. A única (e legítima) preocupação (ou limitação) que possui o juiz é em ter que expor sua decisão de maneira bem assentada, motivando as razões que o levaram a adotar tal convicção. Nesse sentido, são os ensinamentos de Pacelli:
“Por tal sistema, o juiz é livre na formação de seu convencimento, não estando comprometido por qualquer critério de valoração prévia da prova, podendo optar livremente por aquela que lhe parecer mais convincente. (…) A liberdade quanto ao convencimento não dispensa, porém, a sua fundamentação, ou a sua explicitação. É dizer: embora livre para formar o seu convencimento, o juiz deverá declinar as razões que o levaram a optar por tal ou qual prova, fazendo-o com base em argumentação racional (…).[2]“
Assim, percebe-se que o emprego da expressão “racional” faz alusão à utilização das técnicas dogmáticas processuais, bem como de juízos de verossimilhança e robustez do material empregado como prova. Vale ressaltar o contido no art. 155 do Código de Processo Penal, que veda ao julgador fundamentar determinada condenação apenas nas evidências colhidas em fase investigatória.
Por sua vez, os princípios da Vedação ao Excesso e da Máxima Efetividade dos Princípios Fundamentais conferem ao Juiz uma margem de atuação mais justa e controlada, na medida em que impedem juízos arbitrários que desrespeitam as individualidades, bem como a implementação de meios escusos na consecução dos fins jurisdicionais. A vedação ao excesso está intimamente ligada à noção de Proporcionalidade principiológica, visto que é defeso ao julgador, em regra, transpor os limites legais/constitucionais na aplicação da norma.
Por outro lado, tal proporcionalidade deve ser suscitada também quando da necessidade de flexibilização de algumas garantias em nome de outras que lhe sejam maiores. Assim é o atual modelo interpretativo das provas ilícitas, que não admite a vedação absoluta e inatacável de sua aplicação em toda e qualquer circunstância. Nesse sentido, é de se dizer que deve haver uma ponderação fática entre os bens jurídicos que se discutem, na qual cabe ao juiz sopesar as consequências das decisões aplicáveis ao caso. Sobre isso, dispõem os brilhantes ensinamentos de Adriana Maria Gomes:
“Há uma estreita conexão, portanto, entre o princípio da proporcionalidade e as características da relatividade e da limitabilidade que marcam os direitos fundamentais. São inúmeros os exemplos de situações em que dois ou mais direitos fundamentais, que postulam soluções contrárias, competem entre si. É nessa esfera que se torna admissível e, mesmo necessária a atribuição de competência do Estado para, tutelando primordialmente o interesse público, fazer o devido balizamento da esfera até onde vão interesses particulares e comunitários, para o quê, inevitavelmente restringirá direitos fundamentais, visto que não podem ser todos, concretamente, atendidos de forma absoluta e concreta. É nessa dimensão objetiva que aparecem os princípios da isonomia e da proporcionalidade, como engrenagens essenciais na acomodação de diversos interesses em jogo de dada sociedade, e porquanto indispensáveis para garantir a preservação dos direitos fundamentais. [3]“ (grifos deste autor)
Tais premissas serão objeto de estudo mais detalhado adiante. Finalmente, cabe relatar que para efeito de valoração de provas, não há hierarquia entre as mais diversas possíveis, cabendo somente ao juiz emitir sobre elas uma decisão, desde que fundamentada em arrazoados lógicos, éticos e motivados que garantam a probidade.
Possui considerável importância afirmar aqui que, dentro da ordem jurídica brasileira, as provas ilícitas não são consideradas somente aquelas sob as quais recai diretamente sua obtenção por meios subreptícios, mas sim também as chamadas ilícitas por Derivação. Por derivação, entende-se o processo no qual determinado objeto se origina através de outro, que lhe precede. Em se tratando de conteúdo probatório derivadamente ilícito, coube ao Tribunal Excelso lhe definir com primazia:
“qualquer novo dado probatório, ainda que produzido, de modo válido, em momento subsequente, não pode apoiar-se, não pode ter fundamento causal nem derivar de prova comprometida pela mácula da ilicitude originária (STF, RHC 90.376/RJ)[4]“
Em outras palavras, prova derivadamente ilícita é toda aquela que, mesmo tendo sido produzida de forma válida, possui sustentação/ligação com outra prova originariamente ilícita. E não só com outra prova, mas também com qualquer ato jurídico eivado de vício de ilegalidade irreparável. Nesse sentido dispõe o texto do próprio artigo 157, parágrafo 1º, do Código de Processo Penal: “São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.”
A teoria que balizou a noção de derivação das provas ilícitas ficou conhecida como “Teoria dos Frutos da Árvore envenenada”, oriunda da doutrina norte-americana (Fruits of the Poisonous Tree). Este preceito possui raiz na Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Siverthorne Lumber Co. vs. United States, na década de 20, quando a empresa sonegou tributos federais e agentes do governo copiaram seus livros fiscais como prova da fraude, de forma irregular. A partir disso se iniciou a discussão que circunda a temática, sendo que a teoria foi oficialmente introduzida nos EUA em uma decisão judicial apenas no ano de 1939, no caso Nardone vs. United States. Sobre essa tese, leciona Pacelli que
“Se os agentes produtores da prova ilícita pudessem dela se valer para a obtenção de novas provas, a cuja existência somente teria se chegado a partir daquela (ilícita), a ilicitude da conduta seria facilmente contornável. Bastaria a observância da forma prevista em lei, na segunda operação, isto é, na busca das provas obtidas por meio das informações extraídas pela via da ilicitude, para que se legalizasse a ilicitude da primeira (operação). Assim, a teoria da ilicitude por derivação é uma imposição da aplicação do princípio da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente.[5]“
Indo além da noção de derivação apenas por provas ilícitas, defende este autor que a ilicitude também pode advir de qualquer ato jurídico ou administrativo eivado de vício de nulidade. O que se pretende dizer com isso é que: alguns dos atos de obtenção de provas já são pacificamente inadmissíveis; porém o estigma da ilicitude também deve ser estendido a quaisquer atos administrativos que ocasionem a descoberta de crimes, desde que maculados por qualquer irregularidade, mesmo que de natureza meramente administrativa. Por exemplo, qualquer ato de fiscalização do Poder Público realizado com afronta aos elementos inerentes a todo ato administrativo (competência, finalidade, objeto, forma e motivo) cujo resultado seja a descoberta de um delito, não deve ser admitido no processo penal como meio de prova válido. Entretanto, se o ato for praticado em conformidade com tais elementos, bem como aos limites impostos pela legislação pertinente, não há que se falar em qualquer nulidade ou vício da descoberta.
Seguindo essa orientação, não seria descabido pensar que no caso de usurpação de função pública, na qual há absoluta ausência de vínculo entre a administração pública e o “agente”, e, portanto, inexistência do ato administrativo praticado (obviamente, por incompetência), qualquer dado incriminador advindo não poderá ser considerado para efeitos processuais.
Da mesma forma, um ato praticado fora dos ditames relativos à finalidade pública, bem como ao motivo ou objeto administrativos que produza determinada prova processual, não pode ser albergado pelo ordenamento e gerar efeitos probantes no processo penal. É o que ocorre quando das situações de abuso de poder (excesso de poder e desvio de finalidade), cujas vicissitudes maculam o regular exercício da finalidade pública e da competência administrativa. Nessa esteira, a própria Lei de Abuso de Autoridade (Lei 4.898/65) prevê, em seu artigo 3º, algumas das situações comumente abarcadas pela inadmissibilidade no procedimento de produção ilícita de provas no processo penal, cuja violação implica no seu desentranhamento, a saber: inviolabilidade do domicílio (alínea “b”); sigilo de correspondência (alínea “c”); incolumidade física do indivíduo (alínea “i”, a configurar o crime de tortura pelo seu descumprimento).
Quanto a isso, cabe referendar que, nos atos cuja prática depende de prévia autorização judicial (quebra de sigilo bancário, por exemplo), mas não são realizados com a mesma, estamos diante da ilicitude direta, e não por derivação. Por sua vez, os atos administrativos que não necessitam de autorização, mas são praticados fora da esfera de legitimidade na atuação do agente público, são derivadamente ilícitos. Neste caso, a derivação não decorre da natureza do próprio ato (que pode ser lícito), mas sim de um vício quanto a um dos seus elementos.
Para tornar a tese mais clara, imaginemos a seguinte situação: um Guarda Municipal, atuando fora de sua esfera de competência, realiza uma vistoria em um determinado veículo, e em decorrência disso descobre o cometimento de um homicídio. Assim, temos que o Guarda não necessita de prévia autorização judicial para tanto, nem tampouco o ato de vistoria é ilícito. Apenas o agente que praticou o ato é absolutamente incompetente para tanto.
Assim, mesmo sendo o ato lícito, a descoberta tornar-se-á ilícita por derivação, já que a ação administrativa está eivada de nulidade. Por outro lado, as demais situações retratadas no referido diploma (Lei de Abuso de Autoridade), por óbvio, também configuram atos administrativos passíveis de anulação, o que, por conseguinte, geram ilicitudes por derivação na descoberta de qualquer evidência de prática criminosa.
Prudente salientar, todavia, que a prática do ato viciado deve manter relação direta de causalidade e derivação com a produção da prova para que esta seja considerada ilícita. Não basta a mera ação isolada, que não guarde conexão com a produção da ilicitude. Seguindo essa linha, não seria incorreto excogitar o fundamento de que, até mesmo nas situações em que há uma expressa autorização por parte do Poder Judiciário para a execução de medidas investigatórias, haverá ilicitude quando estas transbordarem os preceitos éticos e normativos estabelecidos. Nem tampouco se pode afastar a mácula da ilicitude quando do excesso. À guisa de ilustrar o quanto exposto e demonstrar a aplicabilidade dessa teoria na ordem jurídica nacional, segue excerto do Supremo Tribunal Federal:
“É ilícita a prova produzida mediante escuta telefônica autorizada por magistrado, antes do advento da Lei nº. 9.296, de 24.07.96, que regulamentou o art. 5º, XII, da Constituição Federal; são igualmente ilícitas, por contaminação, as dela decorrentes: aplicação da doutrina norte-americana dos “frutos da árvore venenosa”. Inexistência de prova autônoma. Precedente do Plenário: HC nº. 72.588-1-PB. Habeas-corpus conhecido e deferido por empate na votação (RI-STF, art.150, § 3º), para anular o processo ab initio, inclusive a denúncia, e determinar a expedição de alvará de soltura em favor do paciente” (STF, 2ª Turma, HC 74116/SP, Rel. para o acórdão Min. Maurício Corrêa, DJU de 14.03.1997, pág. 06903)[6] (grifo deste autor)”
Como podemos observar, a própria legislação prevê a inadmissibilidade das provas ilícitas por derivação, tese já perfeitamente consolidada na ordem jurídica.
A doutrina processualista comumente costuma fazer distinção entre os conceitos de prova ilícita e prova ilegítima. A primeira, como já dito, é toda prova obtida por meios que contrariam a ordem normativa de alguma forma. Assim, as provas ilícitas seriam aquelas cuja violação incide sobre regras de Direito Material. Por sua vez, são consideradas “provas Ilegítimas” aquelas que menoscabam normas de Direito Processual. Na seara da práxis judicial, essa distinção não possui aplicabilidade importante, já que os efeitos gerados são os mesmos (desentranhamento).
O exemplo mais comum de prova ilegítima trazido pela doutrina é a chamada “prova emprestada”, ou seja, uma prova produzida em processo distinto daquele em que será introduzida, criticada pela doutrina pelo fato de geralmente não render ensejo ao contraditório processual. Nesse sentido, Pacelli traz um bom exemplo do que seria a chamada prova emprestada:
“Em ação penal instaurada contra determinados réus, é possível, por exemplo, que, no caso de morte de uma testemunha, a acusação obtenha uma certidão de inteiro teor do depoimento por ela prestado em outra ação penal, envolvendo os mesmos fatos e outros acusados. Essa prova, assim obtida, seria denominada emprestada, porque produzida efetivamente em outro processo.[7]“
Tal prova, portanto, seria considerada uma prova perfeitamente lícita quanto à sua produção, mas ilegítima quando introduzida em outro processo, porquanto não seria respeitada a ampla defesa nem o contraditório. Quanto a isso, Pacelli acentua ainda que
“Todavia, a sua introdução no novo processo e, sobretudo, a sua valoração, seria inadmissível, por manifesta violação do princípio do contraditório. Efetivamente, como os réus na nova ação não eram os mesmos daquela, no curso da qual teria sido produzida a aludida prova testemunhal, tem-se que eles não puderam manifestar-se concretamente sobre o conteúdo do depoimento constante da prova assim emprestada. Em tese, sempre em tese, é claro, poderiam eles, se ali presentes, confrontar o referido depoimento, demonstrando até mesmo (em tese) a sua falsidade, o que, com a morte da testemunha, e a juntada de simples certidão, seria rigorosamente impossível.[8]“
Parece este o posicionamento mais acertado. Entretanto, vale ressaltar que a inadmissibilidade está intimamente associada à ausência de contraditório entre o processo e a “prova emprestada”. Assim, quando possível que a nova prova introduzida, independentemente de ter sido criada em outro processo, seja passível do exercício do contraditório sem embaraços, será plenamente admitida, não havendo razão para o seu descarte. Nessa linha foi exarada a fundamentação de um dos julgados do Supremo Tribunal Federal, a saber:
“A garantia constitucional do contraditório – ao lado, quando for o caso, do princípio do juiz natural – é o obstáculo mais frequentemente oponível à admissão e à valoração da prova emprestada de outro processo, no qual, pelo menos, não tenha sido parte aquele contra quem se pretenda fazê-la valer; por isso mesmo, no entanto, a circunstância de provir a prova de procedimento a que estranho a parte contra a qual se pretende utilizá-la só tem relevo, se se cuida de prova que – não fora o seu traslado para o processo – nele se devesse produzir no curso da instrução contraditória, com a presença e a intervenção das partes.[9]“
Feitas tais considerações, passemos a analisar outras questões sobre o tema aqui abordado.
4.1 Teoria do Encontro Fortuito de Provas
Outra dentre as teorias aplicáveis no estudo da ilicitude das provas processuais penais é a Teoria do Encontro Fortuito de Provas.
É de se dizer que tal ramificação argumentativa diz respeito à atuação estatal na qual não se pretende a obtenção daquele resultado, a saber, a produção de determinada prova, mas que ocorre pelo mero “acaso”. Tal descoberta pode ocorrer no exercício de uma diligência que se busque fim diverso, ou até mesmo pela inércia da máquina pública. Basta que a produção da prova aconteça sem pretensão, assim como sem violação aos limites de atuação.
Nesse sentido, falar-se-á em “encontro fortuito” quando, por exemplo, for autorizada uma diligência de busca e apreensão no domicílio de um suspeito para a comprovação de um crime “x”, e ao adentrar o local, os agentes descobrem o cometimento do crime “y”. Importante ressalvar, contudo, que não há que se falar em encontro fortuito de prova quando os agentes públicos, no exercício do mandado judicial, excedem os limites nele autorizados para a procura de outros crimes. É o que prescreve Pacelli:
“Quando, na investigação de um crime contra a fauna, por exemplo, agentes policiais, munidos de mandado judicial de busca e apreensão, adentram em determinada residência para o cumprimento da ordem, espera-se, e mesmo exige-se (art.243, II, CPP), que a diligência se realize exclusivamente para a busca de animais silvestres. Assim, se os policiais passam a revirar as gavetas ou armários da residência, é de se ter por ilícitas as provas de infração penal que não estejam relacionadas com o mandado de busca e apreensão. Em semelhante situação, como é óbvio, o local revistado jamais abrigaria o objeto do mandado judicial.[10]“
Assim, corroborando com a tese apresentada no capítulo anterior, não se pode admitir a prova cuja produção derivou de um vício na atuação administrativa, com flagrante excesso ao provimento legal. Aliás, a teoria em questão serve como fundamento de validade daquela tese. Isso porque, em certo sentido, o encontro fortuito de provas não pode ser pautado somente pela “sorte” no descobrimento do fato. É preciso que haja uma lídima execução pelo Estado das medidas autorizadas judicialmente.
Deste modo, na hipótese de uma escuta telefônica na qual se descobre que o investigado cometeu um crime diverso do qual está sob suspeita, mas tal escuta foi efetivada mediante ordem judicial previamente autorizada e plenamente vinculada à lei, não há que se falar em qualquer nulidade ou prejuízo processual, visto que a atuação do poder público em si não possuiu natureza de ilicitude e nem mesmo se podia prever o resultado da descoberta, fruto do acaso (ausência de controle). Apenas se exige que o crime descoberto seja conexo ao crime sob o qual recai a suspeita inicial.
Lado outro, o elemento fortuito não decorre somente de uma atuação positiva do Estado, de um ato comissivo que por sorte produziu tal resultado. Este pode muito bem advir de uma ação do próprio criminoso, ou de um desígnio natural dos acontecimentos cotidianos.
No sentido de elucidar e exemplificar a teoria do Encontro Fortuito de provas, abaixo está o julgado do habeas corpus nº 83.515/RS do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a legitimidade da prova produzida na circunstância de escuta telefônica para investigação de um crime, acabando pela descoberta de outro, verbis:
“HABEAS CORPUS. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. PRAZO DE VALIDADE. ALEGAÇÃO DE EXISTÊNCIA DE OUTRO MEIO DE INVESTIGAÇÃO. FALTA DE TRANSCRIÇÃO DE CONVERSAS INTERCEPTADAS NOS RELATÓRIOS APRESENTADOS AO JUIZ. AUSÊNCIA DE CIÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ACERCA DOS PEDIDOS DE PRORROGAÇÃO. APURAÇÃO DE CRIME PUNIDO COM PENA DE DETENÇÃO. […] 5. Uma vez realizada a interceptação telefônica de forma fundamentada, legal e legítima, as informações e provas coletas dessa diligência podem subsidiar denúncia com base em crimes puníveis com pena de detenção, desde que conexos aos primeiros tipos penais que justificaram a interceptação. Do contrário, a interpretação do art. 2º, III, da L. 9.296/96 levaria ao absurdo de concluir pela impossibilidade de interceptação para investigar crimes apenados com reclusão quando forem estes conexos com crimes punidos com detenção. Habeas corpus indeferido.[11]“ (grifo deste autor)
Importante observar, contudo, que a legitimidade da nova prova colhida, segundo o entendimento firmado pelo STF, está atrelada à conexão que deve haver entre os crimes. Isso quer dizer que, o novo crime descoberto (ou a nova prova colhida) deve manter relação direta com o crime que se investigou inicialmente.
Tal premissa possui fundamento na limitação da atuação dos agentes investigadores, e visa impedir que as interceptações telefônicas sejam requisitadas/concedidas com fins diversos dos previstos em Lei.
Peço licença para manifestar discordância deste posicionamento do Tribunal Supremo.
Isso porque, deve-se ter em mente que, uma vez preenchidos os requisitos que ensejam a autorização para a escuta telefônica – e estes requisitos devem ser analisados minuciosamente pelo julgador – não haverá margem para uma atuação desvirtuada dos agentes investigadores. Com efeito, o artigo 2º da Lei nº 9.296/96 (Lei que regula a interceptação das comunicações e dados telefônicos) traz o rol de hipóteses em que não será admitida tal modalidade de prova no processo, cabendo única e exclusivamente ao Magistrado a realização do juízo de conveniência e legalidade do gravame. Dessa forma, na medida em que observadas essas regras (indícios suficientes de autoria da infração; impossibilidade de produção da prova por outros meios; e o fato investigado ser punível apenas por reclusão) pelo Juiz, não há como se vislumbrar a ocorrência de equívoco nem má-fé de qualquer agente público.
À bem da verdade, sendo obviamente possível que se tenha uma atuação maliciosa de qualquer um que participe de determinada investigação criminal, tais ardis tornar-se-ão ineficazes frente à análise detalhada a ser feita pelo julgador antes de implantada a medida invasiva, sendo que tal análise será feita com base em toda uma estrutura de provas e fundamentos a serem apreciados pelo Judiciário.
Dessarte, defende este autor que, em qualquer caso em que se tenha o encontro fortuito de provas processuais, independentemente da conexão entre o crime investigado inicialmente e a prova colhida posteriormente existir ou não, a prova deverá ser considerada lícita (observados, é claro, os elementos de validade dos atos praticados dentro dos limites legais, sob pena de ocorrência da nulidade exposta em capítulo anterior deste trabalho), com base na presunção de legitimidade da atuação administrativa, e mais ainda na presunção de boa fé que devemos ter no Poder Judiciário.
Passemos agora à análise sobre a terceira teoria aplicável à questão das provas ilícitas.
4.2 Teoria da Descoberta Inevitável
A Teoria da Descoberta Inevitável, também invenção da Doutrina processualista Norte Americana, se originou através do caso que ficou conhecido como Nix vs. Williams-Williams II, no ano de 1984. Na espécie, um cidadão era suspeito de ter cometido um homicídio e ocultado o cadáver da vítima para não ser alcançado, em uma cidade com poucos habitantes. Movidos pelo sentimento de justiça, mais de duzentos habitantes iniciaram as buscas pelo corpo na cidade, enquanto a polícia local constrangeu o suspeito até que ele confessasse a prática do crime e indicasse o local onde estava a prova.
Coagido, o suspeito assumiu o delito e apontou onde havia escondido o corpo. Assim, as autoridades judiciárias admitiram a utilização da prova no processo, visto que inevitavelmente a população chegaria ao mesmo resultado, sendo apenas uma questão de tempo até encontrarem o cadáver.
Quanto à conceituação da referida Teoria, muitos doutrinadores acreditam ter havido um equívoco do legislador ordinário quando atribuiu à Teoria do Encontro Fortuito de Provas o conceito que na verdade pertence à Teoria da Descoberta Inevitável, trazida pelo parágrafo segundo do artigo 157 do Código de Processo Penal. A regra assim dispõe: “§ 2º Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova”.
Com efeito, de fato esse é o preciso conceito aplicável à tese da Descoberta Inevitável, quando, invariavelmente a máquina investigatória do Estado dispuser de todos os seus mecanismos habituais de obtenção de provas, e chegar à mesma conclusão alcançada previamente por meios considerados ilícitos. Assim, a natureza ilícita não recai sobre a evidência em si, visto que inevitavelmente se chegaria àquele mesmo resultado posteriormente. Nesse sentido:
“Aplicável essa teoria se demonstrado que a prova seria produzida de qualquer maneira, independentemente da prova ilícita originária. Para a aplicação dessa teoria não é possível se valer de dados meramente especulativos, sendo indispensável a existência de dados concretos confirmando que a descoberta seria inevitável. Não há julgados do STF e STJ adotando esta teoria.[12]“ (grifo deste autor).
Como bem pontuado pela autora citada acima, há que se ter uma comprovação robusta de que a inevitabilidade da descoberta está presente, sob pena de se abrir um precedente abusivo por parte do Estado. Se assim não fosse, a investigação poderia se utilizar de meios invasivos e posteriormente só alegar que chegaria àquele mesmo resultado.
Por outro lado, é de bom alvitre salientar que a Descoberta Inevitável da prova não exclui uma eventual indenização por parte do Poder Público ao investigado. Isso porque, penso que se o exercício do jus persequendi poderia se valer dos mecanismos legais e habituais de investigar, mas não o fez, preferindo-se a produção pelo viés obscuro da ilicitude, independentemente da mesmice do resultado alçado caberá a indenização moral do investigado pela violação a direitos fundamentais.
4.3 Teoria da Fonte Independente
Por fim, dentre as principais teorias estudadas e aplicadas às provas penais tanto pela doutrina processualista quanto pelo próprio Poder Judiciário, deve-se fazer referência à Teoria da Fonte Independente.
Como já afirmado anteriormente, o legislador buscou conceituar a Fonte Independente no parágrafo segundo do artigo 157 do CPP, todavia, acabou por definir uma teoria diversa da pretendida.
Assim, na compreensão da majoritária doutrina, esta vertente está conceituada como quando o poder punitivo demonstra, por meios idôneos, que a informação foi obtida de maneira legítima e independente, nem tampouco decorra de qualquer outra prova originariamente ilícita, sem que com ela haja qualquer conexão direta ou indireta.
Com isso quer-se dizer, por suposto, que a informação será considerada como proveniente de uma fonte autônoma quando não guardar relação com outro meio ilícito. Atente-se que aqui não estamos falando da produção da prova propriamente dita, mas sim da mera informação que leve à descoberta ou à produção de determinada prova processual. Dessa forma, os novos dados poderão perfeitamente ser admitidos para fins instrutórios, já que não contaminados com a mácula da ilicitude original.
Nesse sentido, é de bom alvitre demonstrar a aplicação da tese frente ao STF, que já reconheceu sua incidência em diversos casos adotando o entendimento supra afirmado, e.g.
“Revelam-se inadmissíveis, desse modo, em decorrência da ilicitude por derivação, os elementos probatórios a que os órgãos estatais somente tiveram acesso em razão da prova originariamente ilícita, obtida como resultado da transgressão, por agentes públicos, de direitos e garantias constitucionais e legais, cuja eficácia condicionante, no plano do ordenamento positivo brasileiro, traduz significativa limitação de ordem jurídica ao poder do Estado em face dos cidadãos.
Se, no entanto, o órgão da persecução penal demonstrar que obteve, legitimamente, novos elementos de informação a partir de uma fonte autônoma de prova – que não guarde qualquer relação de dependência nem decorra da prova originariamente ilícita, com esta não mantendo vinculação causal -, tais dados probatórios revelar-se-ão plenamente admissíveis, porque não contaminados pela mácula da ilicitude originária.[13]“ (grifo deste autor)
Assim, somente para efeitos práticos, imagine-se a situação em que “A” e “B” são suspeitos de obter informações contundentes sobre a prática de determinado crime cometido por “C”. Num dia, agentes policiais resolvem coagir “B” para extrair tais informações, sendo que no mesmo momento e sem ter conhecimento da coação, “A” se dirige às autoridades investigatórias e conta tudo o que sabe.
Dessa forma, as informações repassadas por “A” são completamente independentes daquelas retiradas ilicitamente de “B”, não havendo relação entre ambas. Vale ressaltar, por óbvio, que tal situação não exclui o direito de “B” em ingressar em juízo para ser indenizado pelo Estado, mas mesmo assim as informações são autônomas entre si, e o depoimento de “A” é considerado perfeitamente admissível.
É o que julgou o STJ no Recurso Especial 204080/CE – 6ª Turma, de relatoria do Ministro Fernando Gonçalves, cuja ementa se colaciona a seguir:
“[…] PROVAS ILÍCITAS. FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. NÃO OCORRÊNCIA DE NULIDADE. SÚMULA 7. 3. A pronúncia, consoante lançado no acórdão, não teve por base meras conjecturas, mas indícios demonstrativos de autoria, não, evidentemente, de modo incontroverso, mas de simples admissibilidade de acusação. Não foram estes indícios, no entanto, derivados de provas ilícitas (utilização de dados telefônicos sem autorização judicial), mas autônomos, sem a contaminação de que fala a teoria dos frutos da árvore envenenada. (STJ – Resp 204080 – CE – 6ª T. – Rel. Min. Fernando Gonçalves – DJ 01.10.2001 – p. 255)[14]“ (grifo deste autor)
Dessa maneira, percebemos que o referido Tribunal Superior admitiu a eficácia da prova produzida em razão da independência entre as fontes ali postas, por considerar que não havia qualquer tipo de derivação ou conexão direta/indireta com outra evidência contaminada.
4.4 As provas Ilícitas: Aproveitamento com exclusão de ilicitude
Pela exposição feita linhas acima, pudemos observar acerca da ilicitude das provas processuais penais, bem como da sua inadmissibilidade. A essa guisa, cediço que existem ainda causas jurídicas que justificam a inserção, assim como a utilização das provas ilícitas com um respaldo legal na defesa de determinados direitos, excluindo-se a ilicitude e aproveitando-se o seu conteúdo. Tais causas podem ser elencadas separadamente em dois grupos: o do Flagrante Delito e o das Excludentes de Ilicitude.
O primeiro deles, do Flagrante Delito, engloba as situações em que a violação de direitos utilizada na descoberta do crime ocorre no exato momento (ou logo posteriormente) em que este está sendo cometido. Assim, foi uma opção do próprio legislador em conferir ao instituto do flagrante um meio de afastamento da ilicitude na prova colhida. Quanto a isso, é de se dizer que a situação de flagrante está constitucionalmente estabelecida, quando se afirmou na Carta Política que o domicílio é inviolável, somente podendo alguém adentrar sem o consentimento do morador mediante ordem judicial, para prestar socorro ou em situação de flagrante delito.
Cabe registrar, contudo, que a situação descrita no referido dispositivo não pode, de maneira nenhuma, render ensejo a uma atuação arbitrária do Poder Público, justificando a invasão domiciliar com a mera suspeita (que pode ser até mesmo inexistente) de estar havendo um crime adentro. A ocasião deve ser seguramente demonstrada.
Questão interessante é saber se, no caso de haver suspeita de que se está cometendo um crime em determinada residência, mas quando as autoridades adentram o local, descobrem que está sendo praticado crime diverso da suspeita inicial, será este flagrante uma situação admissível? Penso que sim, já que o fenômeno da flagrância já constitui uma causa de exclusão da ilicitude na violação do direito, e ela por si só é suficiente para justificar a atuação diligente (inclusive a aplicabilidade desta causa pode ser perfeitamente associada à tese do Encontro Fortuito de Provas). Devo salientar que este tipo de situação é plenamente reconhecido pela ordem jurídica, especialmente pelo Tribunal Constitucional por excelência. Pacelli traz uma situação bem interessante a este estudo, que é o flagrante na gravação não autorizada de conversa telefônica por um dos interlocutores:
“Por isso, a gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, sem a autorização do outro, poderá ser validamente utilizada, quando realizada durante o flagrante delito, como ocorre, por exemplo, durante o crime de extorsão mediante sequestro. Tratando-se de crime permanente, enquanto durar a sua permanência, as diligências adotadas para a sua apuração não configurarão ilicitude, no que disser respeito à suposta violação da intimidade e/ou privacidade dos autores e participantes.[15]“
Superando, assim, o ponto sobre as situações de flagrante delito, devemos analisar agora o segundo grupo de motivações nas quais se aproveita a prova ilícita: o das excludentes de ilicitude. As excludentes de ilicitude estão previstas no rol do art. 23 do Código Penal, sendo elas: legítima defesa; estrito cumprimento do dever legal; estado de necessidade; e exercício regular de direito. Assim, uma vez que esteja presente qualquer dessas situações na produção de determinada prova, ainda que haja violação a direito subjetivo, esta será considerada lícita, bem como assim a sua obtenção.
Por fim, só pontuando, observe-se que estas duas situações gerais de exclusão de ilicitude derivam da própria vontade da Lei. Foi o próprio legislador que preferiu afastar a mácula da ilicitude, desde que preenchidos os requisitos para tanto, devendo-se atentar para o grau de subjetividade conferido ao intérprete na aplicação da referida norma.
Enfim, após todas as discussões apostas nas linhas acima, passamos agora ao estudo de uma questão que muito seguramente é a que mais gera controvérsias e debates quando se fala em matéria de prova no Processo Penal atualmente. Tal questão perpassa por diversas teorias, princípios e normas jurídicas, baseadas em diferentes abordagens (não raramente surgem novas teses doutrinárias) que ainda não permitiram uma aproximação objetiva e uniforme por parte do Poder Judiciário sobre o tema. Consequência disso é a existência de diversos julgados esparsos – advindos dos mais variados Tribunais espalhados pelo Brasil – diferentes entre si. Ou seja, ainda não há uma linha segura no Judiciário que permita certo grau de previsibilidade quanto ao tema, até mesmo por ter certa natureza polêmica.
Tema certamente dos mais instigantes aos estudiosos da seara penal, está-se aqui a falar da relativização da ilicitude das provas processuais penais. Nos capítulos anteriores, tecemos breves comentários sobre alguns princípios aplicáveis à disciplina da prova no processo, e dentre eles o que mais nos valeremos agora é o da Proporcionalidade (não que este estudo vá excluir, por óbvio, a análise dos demais princípios, considerando a natureza unitária do Direito). Com efeito, sobre aquele, linhas antes afirmamos que se trata de um princípio de “equilíbrio”, se assim podemos dizer.
É através da interpretação pela proporcionalidade que alcançamos um juízo razoável de ponderação de interesses e chegamos (na maior parte das vezes) a decisões balanceadas, com um equilíbrio hermenêutico de excelência. É através, ainda, desta proporcionalidade, que a ordem jurídica sopesa a importância dos bens jurídicos em conflito numa determinada situação. São os ensinamentos de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2012):
“Impede o princípio da proporcionalidade que a Administração restrinja os direitos do particular além do que caberia, do que seria necessário, pois impor medidas com intensidade ou extensão supérfluas, desnecessárias, induz à ilegalidade do ato, por abuso de poder. Esse princípio fundamenta-se na ideia de que ninguém está obrigado a suportar restrições em sua liberdade ou propriedade que não sejam indispensáveis, imprescindíveis à satisfação do interesse público.[16]“
Desse modo, podemos perceber que o princípio da proporcionalidade é utilizado como forma de controle da administração pública, mormente no que concerne às atividades investigativas. Porém, sabido que a noção de proporcionalidade também pode ser usada para mitigar as restrições legislativas e constitucionais à utilização das provas ilícitas. Exemplo disso é quando se estuda determinado crime em que o dano infligido à sociedade é tão maior que a garantia individual do criminoso, que passamos a relativizar a inaplicabilidade de determinada prova obtida por meios ilícitos.
Antes de adentrar o mérito da relativização propriamente dita, em que será exposta a tese defendida por este autor, mister que façamos uma breve análise sobre outro princípio aplicável à processualística penal: o princípio da “verdade real”, consubstanciado no papel de busca instrumental que deve exercer o processo penal na descoberta dos fatos.
Tal dispositivo, como se sabe, é compreendido no papel elucidativo contido no processo penal, que deve se preocupar acima de tudo pela busca na reconstrução dos fatos envolvendo o cometimento de delitos, e posteriormente permitir ao Estado responder de maneira devida. Assim, a “verdade real” legitima a ação estatal no sentido de conhecer dos fatos, e produzir as provas necessárias para luminar a ciência do ocorrido.
Há na doutrina, diga-se de passagem, autores que desconstituem a noção epistemológica de “verdade” e de “fato”, questionando através de um viés filosófico que verdade seria essa ou como se chegou à ideia de verdade (a partir de quais premissas; o que seria a verdade; dentre outras questões). Por razões de limitação temática, não nos cabe aqui adentrar tão profundamente sobre tal questão, mas talvez somente buscar um conceito simples, que justifique as ações penais. Nesse sentido, alguns autores não falam em “verdade”, e sim em graus de “certeza” aproximada incidindo sobre determinado objeto. É o que nos explica Cappi, ao afirmar que
“Nós não conhecemos nenhuma realidade, a não ser a que os nossos sentidos percebem, da maneira como a percebem e dentro da ótica de nossa visão do universo, no nosso mundo antropocultural. Não negamos a existência da natureza. Negamos nossa capacidade de compreendê-la adequadamente, como ela é em si, por meio de verdades absolutas, necessárias e eternas.[17]“
Por sua vez, alguns escritores afirmam que a tal “verdade” é apenas um mito intangível que legitima os discursos punitivos do Estado:
“Todo esse contexto constitui terreno fértil para que o mito da “verdade real” atinja, no processo penal, graus intoleráveis de irracionalidade, uma vez que, “em tempos pós modernos, é a desculpa perfeita para fazer-se tábua rasa dos direitos fundamentais”, pois “o mito da verdade real é apenas o símbolo da barbárie, da ética da irracionalidade” [18]“
Mais uma vez peço licença para discordar da referida autora. Com efeito, a chamada “verdade” buscada no processo penal não constitui óbice ao exercício dos direitos fundamentais. Pelo contrário, a busca pelo conhecimento dos fatos constitui na verdade uma garantia processual dirigida ao próprio acusado, bem como uma garantia social, de tal modo que essa verdade apenas serve como base para a busca e a reconstrução real dos fatos. Se assim não fosse, não existiria qualquer sentença ou observação humana firmada com um mínimo de segurança, abrindo-se um perigoso precedente para o completo desrespeito a normas gerais e a impunidade. Desse modo, a verdade buscada pelo processo é uma verdade humana, relativa (que pode muito bem ser desconstituída) e não universal. Contudo, devido à própria natureza social do nosso convívio, questionar a veracidade de todo e qualquer fato é relativizar demasiadamente a alteridade, negar o outro através dos próprios sentidos e desrespeitar a coletividade.
Feitas tais considerações, é possível afirmar que o objetivo principal das provas no processo penal é de ao menos tangenciar uma certeza para, a partir daí, deflagrar o comando da norma e legitimar a atividade estatal (isso deriva da própria noção de que a função do Direito é a de regular fatos juridicamente relevantes). Tal atividade, como cediço, é chancelada pela atuação dos Ministérios Públicos, cujas incumbências processuais penais visam à produção de provas e, ato contínuo, perquirir o grau de certeza necessário sobre o acontecimento real e juridicamente relevante. Alguns autores se propõem a discutir a legitimidade dos MPs e o seu interesse na produção de provas.
Sobre esse exercício das atribuições do Ministério Público no processo penal e suas funções institucionais (garantidor da democracia, da ordem social, dentre outras), acentua Fabiana Lemes que
“Por outro lado, em razão da posição constitucional do Ministério Público, o exercício desse ônus é mais do que limitado, é informado pela finalidade última do processo penal no Estado democrático de direito, que ao Ministério Público, como defensor da ordem democrática, compete promover: a contenção do poder punitivo e a defesa dos direitos fundamentais. Dessa forma, a atividade probatória desenvolvida no processo penal para o conhecimento dos fatos passados não pode constituir violação aos direitos fundamentais do acusado. Revela-se paradoxal violar direitos fundamentais para o fim de proteção desses mesmos direitos.[19]“
Mais uma vez, esse não parece ser o posicionamento acertado para adotarmos no que tange a tais aspectos. A um, porque as funções institucionais do Ministério Público em momento algum restringem sua atuação no processo penal, mormente no que concerne à produção de provas contra determinado acusado. Não se deve confundir a noção de democracia com a de impunidade, tendo em vista que são institutos completamente distintos e que não guardam relação direta entre si.
Assim, o fato de ser o MP defensor da ordem democrática, bem como um dos órgãos zeladores/defensores dos direitos fundamentais individuais e coletivos não é empecilho na sua atuação contra determinado réu, até mesmo porque, quando age na condição de órgão acusador, age em nome de toda a coletividade na qualidade de “defensor do povo”. Sendo assim, estará o Ministério Público tutelando também direitos fundamentais. A dois, a citada autora também se equivoca quando afirma ser paradoxal a violação de determinado direito fundamental para a defesa de outro, chegando a afirmar especificamente sobre a garantia de inadmissibilidade das provas ilícitas que
“Embora a relatividade seja uma característica ínsita aos direitos fundamentais, decorrente de sua natureza universal, heterogênea e principiológica, a inadmissibilidade, no processo penal, de provas produzidas por meios ilícitos, como garantia do acusado diante da onipotência do poder punitivo estatal, legitimado em um Estado Democrático de Direito, é absoluta.[20]“
É de se respeitar o posicionamento adotado pela autora, contudo sem admitir sua aplicabilidade. Com efeito, não há que se falar em paradoxo pela ponderação de interesses em matéria de prova processual. Simplesmente é o que acontece cotidianamente nas mãos dos responsáveis pela interpretação das normas. A hermenêutica exige a todo instante do julgador um equilíbrio entre vontades e situações das mais diversas, principalmente quando há uma relação de conflito entre elas, em que o Juiz deve decidir de maneira favorável a uma afastando a produção de efeitos pela outra.
Dessa forma, o próprio ordenamento tratou de criar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade visando aparelhar o Poder Judiciário com instrumentos capazes de lidar com situações adversas entre si. A todo instante estamos diante de direitos fundamentais conflituosos, nos deparando com um juízo ponderador que nos leve à proteção do direito mais importante, mais relevante. Acerca dessa interpretação “neoconstitucionalizada” e dos conflitos reais que por vezes se depara o julgador, podemos dizer que
“Quando há colisão entre princípios, um dos princípios deve ceder frente ao outro. Nesse caso, a resolução se dá conforme a dimensão de peso entre os princípios envolvidos, de acordo com as circunstâncias do caso concreto. Esta é a chamada “lei de colisão”, que representa um dos principais fundamentos da teoria dos princípios de Alexy. É um reflexo da característica de otimização dos princípios e da inexistência de prioridades absolutas entre eles. Através da ponderação se soluciona o conflito entre princípios e a regra que se extrai da aplicação da ponderação de princípios, para Alexy, integra o rol das normas adscritas.[21]“
De todo modo, sabe-se que não existem direitos absolutos em nossa ordem jurídica vigente, já que relativizamos a vida, a liberdade de locomoção, de expressão, de associação, e todo e qualquer outro direito constitucionalmente/legalmente concebido. Com a inadmissibilidade das provas ilícitas não haveria de ser diferente. Dessarte é através destes juízos de ponderação afirmados acima que o Magistrado deve analisar cada caso concreto e decidir qual o direito fundamental sobressalente, qual deve ser defendido na relação conflituosa. Para Pacelli, doutrinador mais citado nessa obra pela sua importância bibliográfica singular e por apresentar posicionamentos sempre muito lúcidos, corretos e equilibrados,
“O critério hermenêutico mais utilizado para resolver eventuais conflitos ou tensões entre princípios constitucionais igualmente relevantes baseia-se na chamada ponderação de bens e/ou interesses, presente até mesmo nas opções mais corriqueiras da vida cotidiana. O exame normalmente realizado em tais situações destina-se a permitir a aplicação, no caso concreto, da proteção mais adequada possível a um dos direitos em risco, e da maneira menos gravosa ao(s) outro(s). Fala-se, então, em proporcionalidade.[22]“
Nesse sentido, a ponderação de interesses é um critério mister na solução desses conflitos gerados entre direitos fundamentais, sendo que a preponderância entre um deles, independentemente da mitigação ou afastamento do outro, pode ocorrer. Isso acontece, como vimos, porque adotamos o entendimento de que existem bens jurídicos mais importantes que outros a depender da situação fática em que nos encontramos, sendo que nem sempre podemos tutelar todos eles sem criar um ambiente antinômico.
Feitas tais considerações, nos indagamos: quais os bens jurídicos preponderantes frente a outros “menos importantes”? Quais os posicionamentos adotados pelo Judiciário sobre isso? Tal ponderação se dará até quais limites? E quem seriam os encarregados de realizar o juízo de proporcionalidade? São questões de importância ímpar quando tangenciamos o tema em espeque, devendo buscar solucioná-las a partir dos apontamentos feitos durante este trabalho.
Nesse escorço, veremos que o interesse público em punir é, invariavelmente, superior ao interesse privado no exercício de garantias individuais. No que concerne ao respeito aos direitos fundamentais, não há que ser diferente. Assim, considerando a inadmissibilidade (vedação) à utilização das provas ilícitas uma garantia individual que limita a atuação do Estado Democrático em sua função eminentemente acusadora, não é absurdo excogitar a hipótese que tal vedação seja mitigada, atenuada para atender às situações em que o interesse público (coletivo) em questão seja superior.
Este autor defende, em linhas práticas e gerais, a relativização dessa inadmissibilidade no caso de crimes em que a lesão social advinda pela conduta é muito mais relevante do que a proibição de se utilizar provas obtidas ilicitamente: crimes hediondos (e equiparados); e crimes macroeconômicos. A partir disso, passamos a analisar o motivo que poderia levar à relativização das provas ilícitas nos casos citados acima.
Primeiramente, ao abordarmos a questão relativa aos crimes hediondos, devemos estar cientes de que a natureza jurídica ofertada a tais delitos permite uma abordagem processual disciplinada de maneira diferente quanto aos crimes comuns. Nessa assentada, crimes hediondos são definidos como aqueles cuja prática acarreta numa lesão moral coletiva muito superior aos demais, causando um sentimento social de repulsa e aversão, bem como de punição necessária a bem de toda uma comunidade.
Nesse sentido, o legislador ordinário criou um rol taxativo de crimes hediondos, através da Lei nº 8.072/90, o qual entendeu que mereciam uma reprovação maior por parte do Estado Punitivo, devido à sua natureza mais torpe: são os exemplos do Tráfico de Entorpecentes; Terrorismo; Tortura; Estupro; Homicídio Qualificado ou por Extermínio; Latrocínio; Genocídio; Extorsão Qualificada por Morte, dentre outros.
Dessa maneira, a simples enumeração de tais práticas delituosas já nos faz ter a noção de que os crimes ditos hediondos possuem de fato uma maior reprovabilidade social, pela torpeza com a qual são cometidos. Noutro giro, a lesão causada pelo cometimento destes crimes não gera efeitos meramente individuais, mas também todo um sentimento coletivo de repressão baseado na ideia de proteção aos bens jurídicos comunitários. Ninguém tem dúvida, por exemplo, que um crime de Estupro cometido contra uma criança possua uma repugnância e um grau de sordidez muito maior que um crime de furto. Muitas vezes a prática desses crimes dá origem a um clamor público pela repressão imediata e enérgica por parte do Estado ao agente causador do mal. Nessa linha, é de se dizer que
“Do ponto de vista semântico, o termo hediondo significa ato profundamente repugnante, imundo, horrendo, sórdido, ou seja, um ato indiscutivelmente nojento, segundo os padrões da moral vigente. O crime hediondo é o crime que causa profunda e consensual repugnância por ofender, de forma acentuadamente grave, valores morais de indiscutível legitimidade, como o sentimento comum de piedade, de fraternidade, de solidariedade e de respeito à dignidade da pessoa humana.[23]“
É o que ocorre, portanto, na maioria dos demais crimes de natureza hedionda, em que a justificativa para a intervenção punitiva do Estado no sentido de transpor os limites constitucionais e aceitar uma prova obtida ilicitamente reside no interesse social plenamente reconhecido e legitimado, sendo que a prática de tais crimes por si só já carrega uma repulsa coletiva e um efeito danoso generalizado – daí surge a materialização do princípio do in dubio pro societatis, o qual instrumentaliza a persecução do agressor através da máquina pública judiciária. Sobre este ponto, há tempos que os Tribunais pátrios se arvoram a debater tais questões acerca da ponderação e do equilíbrio na aplicação de princípios sem, contudo, ter avançado significativamente em termos prático-processuais.
Por sua vez, os crimes associados ao Tráfico de Entorpecentes, além de possuírem a questão da lesão à coletividade, ainda possuem um gravame “extra”. Eles não só geram um sentimento e um dano à comunidade, como também atuam diretamente na esfera econômica estatal, interferindo nas relações financeiras e influenciando o mercado. Para se ter ideia, uma pesquisa publicada em 2010 pelo jornal Correio Braziliense[24] constatou que o tráfico de drogas no Brasil movimenta uma quantia de aproximadamente 1,4 bilhões de reais por ano. Seria o suficiente para a compra de mais ou menos 13 Bancos Mercantis do Brasil a cada interregno.
Isso sem mencionar toda a estrutura organizacional criminosa que gira em torno do tráfico de drogas. Ainda que não possuísse um viés econômico, o tráfico, como cediço, cria uma enorme “rede” de violência para a manutenção do poder daqueles que o praticam em larga escala, recrutando inclusive diversas crianças e adolescentes para dar continuidade ao “ofício”. Para agravar a situação referente ao tráfico, ainda há a questão envolvendo as políticas de saúde pública no combate à toxicomania. O volume de recursos públicos destinados à conscientização, dissuasão e tratamento da toxicomania poderia ser reduzido em grande quantidade se o tráfico de entorpecentes fosse combatido com maior eficiência pelo Poder Público.
Nesse sentido, temos que a admissibilidade e a flexibilização das provas processuais penais serviriam como um dos instrumentos hábeis à redução desse tipo de crime (independentemente das discussões que circundam a eficiência do sistema carcerário brasileiro), e de punição dos grandes responsáveis pela internacionalização da prática).
O mesmo ocorre quando falamos em macrocriminalidade econômica, geralmente associada aos crimes de “colarinho branco”, nos quais os delitos estão intimamente vinculados com o desvio de verbas públicas, nos quais o grau de lesão ao interesse público é ainda superior ao dos crimes considerados hediondos. Tais crimes estão frequentemente aliados a um altíssimo grau de profissionalismo e sofisticação nas técnicas utilizadas para a sua consecução, sendo muitas vezes taxados de “crimes invisíveis”. Assim, caso não seja “flexibilizada” sua investigação probatória, jamais conseguirá o Estado chegar a uma conclusão punitiva que satisfaça plenamente a supremacia coletiva. Sobre este ponto Spengler afirma:
“Os danos materiais mais característicos são os financeiros e, pode-se afirmar que são muito maiores do que os da delinqüência violenta, superando a totalidade dos causados pelas outras formas de delito. Com relação aos danos imateriais, pode-se aferir a perda de confiança nas relações comerciais, a deformação do equilíbrio do mercado e o descrédito nas políticas econômicas, financeiras e sociais do governo. [25]“
A autora concluiu ainda, seguindo o raciocínio aqui abordado também em seus estudos que, no caso dessa criminalidade econômica internacionalizada, a extrema nocividade social e o alto grau de reprovabilidade social legitimam uma maior ingerência estatal no sentido de admitir certas provas comumente consideradas ilícitas, bem como a dificuldade em se comprovar seguramente a caracterização deste tipo de delito pelos meios de prova tradicionais:
“A pesquisa possibilitou detectar que a macrocriminalidade econômica, dotada cada vez mais de astúcia, através de conhecimentos tecnológicos de ponta, dificulta em muito uma investigação com os instrumentos de provas usuais constantes do Código de Processo Penal. Destacou-se que, para uma eficaz reprimenda, é necessário, na prática, flexibilizar alguns direitos fundamentais constitucionalmente previstos, sem, contudo suprimi-los, visto que, sem tal flexibilização, jamais seria possível rastrear e desvendar tais delitos, porque, pode-se dizer, os agentes guardam consigo, dentro de sua intimidade, as provas do crime.[26]“
Nessa linha, fica muito claro que os crimes associados a essa macrocriminalidade, na medida em que interferem diretamente na regulação e aplicação legítima do erário nas esferas públicas para atender às necessidades sociais (educação, saúde, segurança, dentre outras.), produzem efeitos colaterais negativos de grande monta, a justificar ainda mais a permissão pelo Poder julgador de condutas mais enérgicas e incisivas do Estado. Tal admissibilidade, como vimos, constitui também uma forma de defesa da democracia e dos direitos fundamentais como um todo.
É interessante que observemos também posicionamentos diferentes dentro do próprio Poder Judiciário quanto a essa flexibilização. Nesse passo, contrário à noção de relativização proposta por grande parte da doutrina, o STF na ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 251.445/GO no ano de 2000, de relatoria do Ministro Celso de Mello, afirmou pela ilicitude e consequentemente pela inadmissibilidade da prova produzida a partir da violação do domicílio do acusado. Na ocasião, se processava o cometimento de crimes contra a dignidade sexual de menores, onde uma das supostas vítimas foi quem invadiu o referido domicílio e coletou a prova do delito.
Uma parcela dos estudiosos da processualística penal seria contrária a essa inadmissão, sob o argumento de que a vedação não teria cumprido sua finalidade maior, qual seja a de impedir uma atuação abusiva por parte do Estado. Assim, considerando que a prova teria sido produzida por particular, mormente por ser uma das vítimas, não haveria ação estatal a ser repreendida.
Não há concordância deste autor quanto a isso, considerando que tal permissão abriria um perigoso precedente para a produção desenfreada de provas ilegais. Com efeito, vê-se que a ilicitude da prova não possui origem naquele que a produz (embora possa advir disso), mas sim em sua forma de produção, ou seja, a maneira como se obtém o elemento probatório é que determina a sua licitude ou não. Nessa esteira, no que tange ao caso concreto julgado pelo STF, o posicionamento do Tribunal foi incorreto pela falta de proporcionalidade entre o mal causado e o interesse público, e não pelo fato de ter sido a prova produzida por particular.
Nesse entendimento, o Tribunal Supremo não tem admitido em linhas gerais a relativização do uso das provas ilícitas quando estiver em favor do Estado. Tal admissibilidade tem ocorrido quando há necessidade de defesa de direitos do acusado, a exemplo do julgamento do RE 402717/PR, de relatoria do Ministro Cezar Peluso, cujo excerto segue adiante:
“[…] Meio, ademais, de prova da alegada inocência de quem a gravou. Improvimento ao recurso. Inexistência de ofensa ao art. 5º, incs. X, XII e LVI, da CF. Precedentes. Como gravação meramente clandestina, que se não confunde com interceptação, objeto de vedação constitucional, é lícita a prova consistente no teor de gravação de conversa telefônica realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, se não há causa legal específica de sigilo nem de reserva da conversação, sobretudo quando se predestine a fazer prova, em juízo ou inquérito, a favor de quem a gravou.[27]“
Atente-se para o fato de que a admissibilidade neste caso não repousa num juízo de proporcionalidade, mas sim na defesa de um direito daquele que realizou a gravação clandestina. Aliás, esta possibilidade já está prevista expressamente no Código de Processo Penal, em seu artigo 233, parágrafo único, quando afirma que qualquer um poderá se utilizar da violação de cartas particulares para a defesa de seu direito, ainda que sem o consentimento do signatário.
Sobre esse ponto, temos que as decisões que tratam da relativização das provas ilícitas tanto no STJ como no STF ainda não aplicam o princípio da proporcionalidade na relação entre o mal causado e a garantia individual protegida. Apenas admitem tais provas quando, ou se trata de defesa de direito próprio por aquele que produz a prova, ou se trata da vítima que produz a prova para instruir sua notitia criminis. Nesse caso, reputa-se perfeitamente legítima, por exemplo, a prova produzida por meios escusos visando à demonstração de inocência de determinado réu, ou para a defesa de qualquer outro direito que necessite da intervenção da esfera judicial. Do mesmo modo, os tribunais têm reconhecido a admissão daquelas provas quando produzidas pela vitima do delito para serem utilizadas na instauração de inquérito investigativo.
Acerca de tais premissas, o STJ fundamentou no julgamento do HC 52995/AL de relatoria do Ministro OG Fernandes, a possibilidade de o Poder Judiciário aceitar a incidência de uma prova considerada ilícita através da ponderação de interesses, visto que não existem direitos absolutos na ordem jurídica vigente (o Tribunal utiliza exatamente essa expressão, de inexistência de direitos absolutos). Afirmou a Corte Superior que a interpretação que deve ser dada ao dispositivo constitucional de inadmissibilidade das provas ilícitas é a interpretação “com temperamentos”, embora ainda não tenha aplicado de maneira sólida tal ponderação em favor do Poder Público e, consequentemente, do interesse geral na acusação em certos casos.
Nesse passo, como dito acima, ainda não há decisões que expressamente admitam tal princípio fora das hipóteses elencadas no parágrafo anterior, embora haja discussão que circunda a temática. Por outro lado, há quem questione a existência de um conflito entre direitos fundamentais na relação de interesse entre punir e produzir provas ilícitas, baseado na questão da legitimidade:
“A deslegitimação do poder punitivo do Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil retira a possibilidade de, invocando-se uma ponderação de interesses, com base no princípio da proporcionalidade, produzir-se prova com violação aos direitos e garantias fundamentais ou admitir-se a sua introdução no processo penal, quando produzida ilicitamente, com finalidade exclusiva repressiva, podendo ser assim entendida toda prova que objetive afastar a presunção constitucional de inocência do acusado. Isso porque, nessa hipótese, não está caracterizada uma colisão real entre direitos ou bens constitucionalmente protegidos […][28]“
O referido posicionamento, como dito, não parece ser mesmo o mais correto, por vários motivos. A questão da legitimidade já foi dissecada linhas acima, assim como se demonstrou que de fato existe um conflito entre interesses preponderantes na esfera punitiva. É inelutável que há interesse eminentemente social na atuação repressiva do Estado. Do contrário, qual seria o interesse em monopolizar conflitos privados e assim regulá-los senão para a manutenção da “paz social”? É contraditório, ao ver deste autor, suscitar a ilegitimidade no interesse estatal coletivo em punir determinado transgressor sem apontar qual seria o verdadeiro interesse por trás de tal atuação. Nessa linha, não seria mais fácil para o ente estatal a completa descriminalização das condutas, com o consequente e absoluto retorno do controle das relações privadas aos particulares? Pouparia o ente público de um enorme trabalho. Outra contradição é justamente afirmar o Estado ilegítimo para punir, mas legítimo para garantir direitos fundamentais.
Noutro giro, existem posicionamentos – minoritários – que defendem a completa e irrestrita relativização dessa inadmissibilidade, negando-a por inteiro. Nesse sentido, alguns afirmam que se deve admitir a utilização das provas ilícitas em todo e qualquer caso sem objeções, visto que o interesse punitivo social estará sempre presente quando do cometimento de determinado crime, e, dessa forma, será sempre maior que qualquer garantia individual que porventura venha o acusado a possuir. É o que afirma Pedroso:
“Se o fim precípuo do processo penal é a descoberta da verdade real (na qual há que se fulcrar a própria realização do direito penal substantivo, pela aplicação ou não da pena), crível é que, se a prova ilegalmente obtida ostentar essa verdade, há de ser aceita. Não há asseverar, nesse passo, que a prova oriunda de um ato ilícito não pode ser admitida em juízo, sob pena de emprestar-se eficácia jurídica a um comportamento ilegal.[29]“
Não há concordância deste autor quanto a esta posição. Dessa forma, diante de tudo o quanto fora exposto neste trabalho, a vedação à admissibilidade das provas obtidas por meios ilegais constitui também um exercício de Democracia e respeito aos direitos fundamentais. Devemos recordar a recente mancha de autoritarismo que assolou o Brasil poucas décadas atrás, onde tivemos uma atividade estatal suprema e incrivelmente invasiva, que permitia o completo desrespeito às liberdades individuais e a consecução de outros fins que não os sociais ou coletivos. A noção de ordem pública foi elevada a patamares absurdamente inaceitáveis.
Daí surge a importância de um dos próprios Poderes que compõem a República (Judiciário) exercerem de maneira direta e incisiva o controle sobre os atos investigatórios estatais, para que se evite um retorno às antigas máculas repressivas. A necessidade de se vedar o excesso na produção de provas é imperiosa, na medida em que este impede o exercício de direitos individuais e produz uma espécie de desequilibro processual. Nesse sentido, não se pode admitir que a busca pela chamada “verdade real” constitua ferramenta de opressão nem se dê de forma completamente descontrolada, permitindo ao Estado que atue ao seu alvitre.
Portanto, aqui se esgrima que apenas nas situações em que seja flagrantemente preponderante o interesse social, quais sejam as situações em que o crime cometido possui um grau de torpeza e de dano social muito acima do “normal”, deve-se valer o próprio órgão julgador dos critérios da proporcionalidade e da razoabilidade, ponderando os interesses conflitantes através da grandeza do bem jurídico ofendido pela conduta delituosa, para assim relativizar (e não elidir) a garantia constitucional de inadmissibilidade das provas ilícitas, que por óbvio não constituem direito absolutamente inatacável.
Outro ponto que merece destaque diz respeito à forma em que a prova ilícita foi produzida, onde o critério de ponderação também deve incidir. Com efeito, aqui se defende que deverá ficar a critério do julgador o juízo de proporcionalidade exposto para sopesar os bens jurídicos em xeque. Nesse sentido, deve observar também o intérprete que, numa situação em que a violação de direito do acusado para a produção de prova tenha sido praticada pelo agente estatal com torpeza igual ou maior que o próprio crime investigado, obviamente esta prova não deverá ser admitida.
É o que ocorre, à guisa de ilustração, quando agentes policiais se utilizam de técnicas de tortura para obter uma confissão de qualquer crime que seja. Nesse exemplo, a prática de um crime hediondo pelo próprio Estado não pode configurar meio idôneo para que se admita qualquer sorte de prova ilícita, visto que a tortura suprime própria a manifestação de vontade daquele que a sofre.
Dessa forma, temos que não é razoável permitir ao Estado que busque coibir uma prática delituosa extremamente danosa através de outra ação igualmente reprovável, cabendo ao Magistrado realizar tal juízo e vedar a incidência da prova no processo, por mais sórdido que tenha sido o crime. Por outro lado, não há falar, na tese aqui defendida por este autor, em desequilíbrio ou mesmo abuso de autoridade quando há gravação de conversas telefônicas por parte de agentes policiais para comprovar um crime de genocídio.
Por fim, uma das situações interessantes que podem advir da produção de provas é quando determinada pessoa (A), agindo amparada por uma das causas de exclusão de ilicitude quanto a outra pessoa (B), produz prova ilícita com relação a terceiro não integrante da relação direta (C). Nesse caso, é de se observar que o critério aqui discutido é perfeitamente aplicável, tendo em vista que, na relação travada entre A e B a produção da prova pode perfeitamente gerar seus efeitos para a defesa de direito, enquanto a princípio não poderá ser arguida contra C. Contudo, tal prova se gerada numa situação em que cabível a proporcionalidade pelo interesse social (supondo que C cometeu um crime hediondo), deverá ser admitida.
De todo modo, caberá ao Juiz, intérprete e aplicador da norma da seara penal analisar o caso concreto e realizar a hermenêutica do equilíbrio entre os bens jurídicos conflitantes. A questão, como visto, ainda não tem sido enfrentada de maneira incisiva pelos Tribunais pátrios no sentido de se tomar uma posição sólida, embora as teses e a argumentação estejam em discussão, principalmente em sede doutrinária.
É de suma importância, para a compreensão do tema aqui exposto, que se analise a questão das provas ilícitas também sob a perspectiva de limitação à atuação do Poder Público (o cerne deste trabalho), com os enfoques abarcados pelo Direito Constitucional e pelo Direito Administrativo, considerando a natureza eminentemente multidisciplinar do Direito.
Tendo isso em mira, primeiramente deve ser trazida à tona a noção administrativista de “Supremacia do Interesse Público”. Este princípio possui elevado caráter de abstração, na medida em que pode ser invocado em inúmeras situações distintas. É dito como um princípio implícito, por não constar expressamente na ordem jurídica.
Por “supremacia”, entende-se que o interesse público, geral, coletivo, está hierarquicamente acima dos interesses privados de determinados indivíduos, numa relação verticalizada. Assim, toda a função administrativa está voltada à consecução da chamada “vontade geral”, que deve ser sobreposta a qualquer outra, quando entre elas houver contraste. São as nobres palavras de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo:
“O princípio da supremacia do interesse público é característico do regime de direito público e, como visto anteriormente, é um dos dois pilares do denominado regime jurídico-administrativo, fundamentando todas as prerrogativas especiais que dispõe como instrumentos para a consecução dos fins que a Constituição e as leis impõem. Decorre dele que, existindo conflito entre o interesse público e o interesse particular, deverá prevalecer o primeiro, tutelado pelo Estado (…)[30]“
Por outro lado, se sabe que, quando um determinado indivíduo comete uma transgressão penal (delito), nasce para o Estado o que se chama de pretensão punitiva (jus puniendi). Esta “prerrogativa” nada mais é do que um poder-dever do ente público em dispor de seus mecanismos estatais, sua máquina administrativa e judiciária para punir o transgressor. Lembre-se que o jus puniendi não configura uma mera faculdade, ou apenas o direito que tem o Estado em punir. Pelo contrário, o poder público possui a obrigação de agir para compelir a prática criminosa, lhe sendo defesa a dispensa de tal ação.
Lado outro, pode-se dizer que o crime não lesa interesses somente individuais, mas também sociais, daí chegarmos à conclusão de que: se é interesse/necessidade do Estado punir buscando a promoção de uma sociedade estável e harmoniosa, é também interesse comum à própria sociedade em si a punição do transgressor, visto que o Estado representa a “vontade geral”, o “bem comum” social.
Nessa linha, em sendo interesse/dever do Estado a punição do indivíduo criminoso, e agindo esse poder público no exercício da supremacia do interesse geral associado ao jus puniendi, seria razoável afirmar que o Estado está legitimado a suprimir ilimitadamente garantias individuais fundamentais para satisfazer a aplicação da Lei Penal e o interesse coletivo? Decerto que não. Se assim o fosse, estaríamos frente a um Estado totalitário e absurdamente forte.
Quanto a essa questão, asseveram Alexandrino e Paulo que
“O Estado, portanto, embora tenha assegurada pela ordem constitucional a prevalência dos interesses em nome dos quais atua, está adstrito aos princípios constitucionais que determinam a forma e os limites de sua atuação, como o princípio do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, da proporcionalidade, dentre outros. Conforme se constata, assim como ocorre com todos os princípios jurídicos, o postulado da supremacia do interesse público não tem caráter absoluto. [31]“
Por esta mesma vertente Constitucional, Rangel afirma que “a vedação da prova ilícita é inerente ao Estado Democrático de Direito que não admite a prova do fato e, consequentemente, punição do indivíduo a qualquer preço, custe o que custar” [32]. Assim, quando ao legislador constituinte coube estabelecer como garantia fundamental a inadmissibilidade das provas ilícitas no processo, buscou criar uma barreira ao princípio de livre apreciação das provas, de modo que o julgador, no exercício dessa liberdade (e na busca pela verdade dos fatos) encontrasse limites éticos, movidos por premissas políticas e sociais que visassem à manutenção do Estado democrático, impedindo assim as abusividades decorrentes do exercício do chamado “poder de império”.
Indo além destas afirmações, acentua Pacelli que
“Mais que uma afirmação de propósitos éticos no trato das questões do Direito, as aludidas normas, constitucional e legal, cumprem uma função ainda mais relevante, particularmente no que diz respeito ao processo penal, a saber: a vedação das provas ilícitas atua no controle da regularidade da atividade estatal persecutória, inibindo e desestimulando a adoção de práticas probatórias ilegais por parte de quem é o grande responsável pela sua produção. [33]“
Doutra banda, outros pressupostos Constitucionais elencados como garantias individuais (v. g. a proteção ao domicílio, à privacidade, à intimidade, dentre outros.) servem de princípios norteadores da atuação do Poder Público no respeito à integridade do indivíduo, inclusive em cumprimento à própria liberdade assegurada no Texto Maior. Nessa linha, é de toda prudência a compreensão da natureza e amplitude das chamadas “garantias individuais”, assim entendidas como
“direitos fundamentais do homem-indivíduo, que são aqueles que reconhecem autonomia aos particulares, garantindo a iniciativa e independência aos indivíduos diante dos demais membros da sociedade política e do próprio Estado. [34]“
Da mesma forma, a noção constitucionalizada de Democracia prevê a adoção de medidas estatais que respeitem o exercício de tais direitos individualmente, e em sentido contraposto, assegura também à coletividade a execução daquelas. No que tange ao tema aqui exposto, como já estudado linhas acima, sabemos que o combate à macrocriminalidade, bem como aos crimes de maior potencial ofensivo à sociedade, constitui medida de governo necessária à proteção de direitos fundamentais. Sobre esse tema, Adriana Gomes asseverou que
“Cabe avaliar “se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à carga coativa da mesma”. O juízo de ponderação entre os pesos dos direitos e bens contrapostos deve ter uma medida que permita alcançar a melhor proporção entre os meios e os fins. Em outras palavras, “os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa justa medida, impedindo-se a adoção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos” […][35]“
No capítulo anterior discutimos com certa profundidade sobre essa relativização. De todo modo, percebe-se que a função de se negar eficácia processual a determinada fonte probatória obtida por meios escusos é eminentemente pedagógica contra a própria atividade estatal. De tal maneira, procura-se resguardar também a própria legitimidade do material colhido a título de evidência que será incorporado e apreciado no processo.
Nesse contexto, afiguram-se também diversos outros desdobramentos que não só os processuais na questão da ilicitude das provas. Exemplo disso é a própria interpretação que pode ser dada pelo juiz no sentido de avaliar se a prova é ilícita ou não. Em outro sentido, como já posto em comento acima, a ordem jurídica deve ser sempre multidisciplinar, considerando o caráter de “unicidade” do Direito. Não há como se falar em pressupostos de aplicação de normas processuais penais sem perquirir o viés Constitucional trazido pela relação íntima entre ambos.
Para concluir este raciocínio, insta registrar que as questões expostas neste capítulo são produto de uma longa evolução histórica no que concerne à proteção de direitos fundamentais, em muito se confundindo com o desenvolvimento da própria Democracia no cenário político. Com efeito, notadamente após o período ditatorial pelo qual passou o Brasil, a valoração dos preceitos de liberdade, respeito à dignidade, privacidade, manifestações políticas, dentre outros, passou a ter uma relevância ímpar frente inclusive a outras garantias. Diferentemente não havia de ser, visto que as violações de direitos individuais e coletivos eram constantes durante o militarismo que imperou nas décadas de 60 e 70.
Nessa linha, tínhamos um Estado forte e intolerante quanto às oposições ao regime, que dispunha de toda a máquina pública ao favor dos interesses de seus governantes. Após a queda do militarismo no governo, foi editada a Constituição de 1988, que buscou como um dos seus mais importantes pilares a proteção à Democracia, à Dignidade da Pessoa Humana, e ao respeito às instituições políticas, religiosas, ideológicas, dentre outras. Daí podemos absorver a essência das limitações que impuseram os legisladores (em especial os constituintes) à atuação do Estado na defesa dos seus interesses enquanto instituição, frente às garantias individuais e coletivas dos cidadãos, visando romper com a perspectiva do totalitarismo.
Excedendo um pouco os estreitos limites deste trabalho, e buscando democratizar e oportunizar outras vertentes teóricas conflitantes com as deste autor, cabe a referência da completa oposição à noção de “legitimidade” estatal no exercício da atividade punitiva, o que certamente irá contribuir para o enriquecimento da discussão que aqui se propõe. Nessa linha, Fabiana Lemes Zamalloa do Prado nos presenteia com uma interessante visão crítica, na qual afirma que a atuação penal se pauta num processo de evolução das noções falaciosas de “defesa social” e insegurança pública, que estariam a criar um suposto interesse social inexistente. Nas palavras da autora,
“Os discursos elaborados a partir da assunção, pelo poder político, do poder de punir, excluindo a vítima da relação conflituosa, notadamente após a Revolução Industrial, tiveram por objetivo legitimar essa exclusão e, em conseqüência, legitimar o poder de punir estatal. A defesa social constituiu, assim, a base ideológica dos discursos legitimantes e, como já enfatizado, fulcrava-se na idéia de proteção de valores ético-fundamentais da sociedade. A partir dessa ideologia, o discurso jurídico penal voltou-se à justificação do poder punitivo estatal como um poder tutelar dos bens jurídicos lesionados pelo crime.[36]“
Assevera a autora ainda que, os discursos utilizados para legitimar a atuação do Estado no sentido punitivo são frutos da consunção de interesses políticos, econômicos e inclusive até criminosos, coincidentes com a consolidação de modelos geopolíticos liberais e globais. Daí surgiria a noção de defesa social, exponencialmente acrescida pelo medo da violência difundido através dos meios de comunicação.
Continua dizendo que, a “falsa noção” de proteção a bens jurídicos é o alicerce que fundamenta a atuação jurídico-penal, e que
“O discurso tutelar, manifestação da ideologia da defesa social, encontra-se, assim, na base de todos os discursos legitimantes que predominam no cenário jurídico brasileiro, aos quais as agências de reprodução ideológica ainda não ousaram renunciar. Atualmente, com a intensificação dos conflitos sociais e da violência urbana, esse discurso tutelar assume a perspectiva de proteção à segurança individual e coletiva. Sem dúvida, a idéia de proteção aos bens jurídicos das vítimas, como forma de justificação do poder punitivo estatal, constitui a maior falácia dos discursos legitimantes elaborados desde que o Estado confiscou da vítima a sua posição na relação conflituosa.[37]“
Em que pese a completa pertinência teórica das teses apresentadas pela autora, peço a devida vênia para a discordância em alguns pontos, senão vejamos.
Primeiramente, não há como contrariar a noção de que existem inúmeros interesses externos atuando na “vontade” do Estado punitivo – sejam eles políticos ou econômicos – numa relação de poder constante. Também é irrefutável o fato de que os meios de comunicação incutem um pânico social de proporções estratosféricas que não coincidem com o medo real que se deveria ter da violência urbana.
Entretanto, no que concerne à noção de “defesa social” advinda somente de interesses liberais e de poder, não há concordância por este autor. Isso porque, as relações de poder são infinitas e invariavelmente presentes em nosso cotidiano, desde a menor até as maiores esferas de relações interpessoais. A interferência do “poder” encontra-se encravada instintivamente em nosso discurso, até mesmo naquele mais despretensioso. Assim, tem-se que o exercício do poder é condição inerente às relações sociais, em que pese o surgimento dos institutos democráticos.
Dessa forma, penso que a ideia de defesa social não deve ser considerada como discurso ilegítimo apenas por manifestar interesses externos à sua definição, visto que tais interesses subsistem insofismavelmente em qualquer relação. Explico.
O interesse social na punição do transgressor de determinada regra não é um privilégio da sociedade moderna, liberal e capitalista. Desde os primórdios do convívio social, a humanidade criou normas de observância geral para a proteção dos seus institutos e das próprias comunidades em si, atribuindo espécies de sanções (que variaram conforme as condições culturais, religiosas, econômicas, políticas, dentre outras.) àqueles que violarem tais regras. Assim, mesmo que não positivado ou considerado rudimentar, existia um direito sancionador (ubi societas ibi jus), de tal maneira que sempre existiram bens jurídicos a serem protegidos por toda sociedade, os quais, se ofendidos, gerariam um sentimento coletivo de revolta e desejo de punição (talvez não tão elevado quanto os atuais pela atuação midiática, mas sempre existentes).
Sobre esse aspecto, acentua Zaffaroni et al que
“A ideia de bem jurídico tutelado digere e neutraliza o efeito limitador da idéia de bem jurídico lesionado ou exposto a perigo; devido a essa alquimia, o princípio de que todo delito pressupõe lesão ou perigo de lesão de um bem jurídico deságua no princípio de que todo bem jurídico demanda uma tutela, o que instiga à criminalização sem lacunas.[38]“
Com efeito, devo também discordar do referido posicionamento. De fato, é necessário que todo bem jurídico seja tutelado pelo Direito. Desse modo, a própria noção de “bem” jurídico (até mesmo pela acepção patrimonial de “bem”) demonstra a importância social do instituto, que não poderia ser considerado vital à estrutura coletiva se não pudesse ser protegido de alguma forma. Quanto à criminalização desenfreada, cediço que para a tutela de bens jurídicos não existem somente as ferramentas penais, mas sim todo um aparato jurídico multidisciplinar que oferece inúmeras soluções para conflitos sociais, que não somente as criminais.
Por outro lado, a legitimidade do Estado reside na evolução histórica do monopólio dos conflitos privados, nos quais antes imperava a completa liberdade das relações e pactos, dando azo a desproporcionais violações de Direitos. O que a citada autora acima chamou de “exclusão” da vítima da relação conflituosa foi, a bem da verdade, uma ingerência estatal que possibilitou a tomada de soluções democráticas e imparciais em todo e qualquer conflito social. Nesse passo, não se pretende adentrar a discussão contratualista hobbesiana, mas tão somente reconhecer a existência de um fato histórico.
Deste modo, o nascimento das instituições estatais não se deu simplesmente pela manifestação do poder político visando à saciedade de interesses pessoais, mas também pela necessidade emergente de regulamentação e de um poder uniforme que provesse uma maior segurança nas relações sociais e econômicas. Monopolizando a solução de litígios, a figura do Estado passou a ser reconhecida como fundamental numa estrutura social organizada, atuando na defesa de direitos individuais e coletivos.
Por fim, ainda sobre a questão que cinge as noções de defesa social e proteção a bens jurídicos como discursos de legitimação da atuação punitiva do Estado, conclui Fabiana Zamalloa que
“Esse discurso, diante da evidência da falácia que encerra, atualmente, tem sido reelaborado. A verificação, diante do aumento da violência urbana, de que o exercício do poder punitivo não efetiva a proteção proclamada aos bens jurídicos já afetados[39] e aos que possam vir a ser, por sua incapacidade reparatória ou preventiva, tem conferido uma outra perspectiva ao discurso de proteção: o bem jurídico protegido é, agora, a segurança “pública”, “cidadã” ou “urbana”. Quando se invoca a necessidade da preservação da segurança, com quaisquer adjetivos apontados ou outros que se lhe venham acrescer, está-se mais uma vez, legitimando o exercício do poder punitivo, agora a partir de um perigoso conceito de segurança, que não condiz com o seu significado humanista, extraído da Constituição Federal de 1988, mas que expressa a idéia de “ordem” própria dos Estados autoritários.[40]“
Nessa linha, a autora argui a ilegitimidade em punir pela suposta criação de um novo discurso que sustenta a atuação estatal, com base nesse interesse social de segurança “urbana”. Com efeito, o critério objetivo de aumento dos índices de violência urbana não demonstra, pelo menos na ótica deste autor, a falácia no discurso de proteção.
Isso porque, no que tange à realidade brasileira, o fenômeno da criminalidade pode ser considerado bem peculiar pelas características que apresenta. Uma dessas características é a famigerada ausência de atuação material expressiva do Estado brasileiro na consecução dos fins sociais (tais questões são amplamente discutidas e reconhecidas na seara política do Brasil). Dessarte, cediço que historicamente as práticas governamentais brasileiras deixaram muito a desejar em vários aspectos sociais, o que sempre contribuiu diretamente para uma maior discrepância social, um alto índice de concentração de renda e consequentemente o aumento das taxas relativas aos crimes (especialmente os de ordem patrimonial).
Assim, as desigualdades de natureza social configuram um descumprimento reiterado de normas já existentes em nosso ordenamento, normas estas que se implementadas renderiam ensejo a uma outra realidade no âmbito penal. Nessa linha, ao passo em que a própria Constituição da República prevê diversos dispositivos direcionados à mitigação das discrepâncias econômicas, bem como à consecução dos fins democráticos, a não implementação material dessas normas influencia diretamente no campo delitivo social (v.g. as políticas públicas de educação, saúde, previdência social, dentre outras).
Por outro lado, na análise do fenômeno da reincidência criminal e do papel ressocializador da pena, sabido que a Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84) possui inúmeros dispositivos voltados a tais finalidades, que talvez pudessem ser atingidas se no campo prático houvesse uma efetiva aplicação dos mesmos. Portanto, no parecer deste autor, independentemente do discurso que se adote para “legitimar” a atuação do Estado no sentido de punir, parecerá vazio e desacreditado se não houver de fato a implementação fática das normas atinentes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho apresentado se propôs à realização de um breve estudo doutrinário e jurisprudencial de revisão acerca das questões que hoje circundam o debate sobre as provas no processo penal, em especial as provas de natureza ilícita. É de se dizer, nessa linha, que a conclusão alçada ao final deste artigo diferiu das perspectivas iniciais deste autor antes de iniciar as pesquisas, principalmente no que concerne à questão sobre a relativização e a flexibilização na admissibilidade das provas ilícitas.
Inicialmente, os debates se propuseram a salientar a importância histórica, social e de respeito às garantias fundamentais contidas no comando normativo do art. 5º, LVI, da Constituição da República que decreta serem inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. Como cediço, tal vedação decorreu após um período histórico repressivo em que se passou a valorizar os preceitos democráticos com maior rigor positivo. Também foram analisados os efeitos atinentes e oriundos dessa inadmissão constitucionalizada.
Após, foi realizado um estudo conceitual dos aspectos que tangenciam a matéria das provas na processualística penal, com a diferenciação entre objeto, forma e meio de prova – o que possui importância didática na compreensão dos demais quesitos e teses sobre o assunto – bem como as noções de provas ilícitas, ilegítimas, derivadas, emprestadas, dentre outros.
Posteriormente, foi apresentado um escorço principiológico das provas processuais penais, onde se buscou discutir com relevante densidade a aplicação prática de alguns dos princípios específicos que balizam tal estudo. A essa guisa, vimos a importância da liberdade conferida ao intérprete/julgador para apreciar motivadamente as provas penais e se valer da vedação ao excesso (proporcionalidade) para analisar o conteúdo probatório na perspectiva da razoabilidade. Igualmente foi ressaltada a questão da máxima efetividade dos direitos fundamentais representados constitucionalmente, e o dever de garantir o respeito a esses direitos pela ordem jurídica atual.
No capítulo seguinte, buscou-se perfazer um detalhamento das vertentes constitucionais e administrativas que se aplicam ao cerne deste debate, pautadas nas questões do interesse do Estado em punir sob o fundamento do interesse social (ou coletivo) preponderante e sobreposto ao interesse individual. Foi objeto dessa discussão a importância da vedação na atuação do Estado punitivo na lógica da produção/aceitação das provas processuais, bem como a ilegitimidade dessa atividade em toda e qualquer situação em que o interesse social estiver presente (já que toda situação delitiva possui inexoravelmente um interesse da coletividade em punir). Discutiram-se ainda as noções relacionadas à proteção de bens jurídicos, ao conflito de garantias e o jus puniendi enquanto prerrogativa irrenunciável pelo Poder Público.
Ademais, nos capítulos subsequentes foram apresentadas as principais teorias com aplicação prática na seara das provas penais ilícitas, quais sejam: Frutos da Árvore Envenenada, Encontro Fortuito de Provas, Descoberta Inevitável e Fonte Independente. Para que se permita uma visão real de tais teorias, houve a proposição do debate sobre tais teorias na ótica dos Tribunais, para a percepção da atual posição dos mesmos.
Posteriormente, adentrou-se à discussão acerca das excludentes de ilicitude das provas consideradas inicialmente como ilegais (Flagrante Delito e as excludentes propriamente ditas), para então cingir a parte principal deste trabalho, que é justamente a questão que circunda a relativização na utilização das provas ilícitas sob a égide do princípio da proporcionalidade na valoração do interesse público em certos casos práticos.
Nesse passo, vimos que a atual posição tanto do STJ como do STF é de se admitir as provas ilícitas de maneira muito restrita – apenas nos casos de defesa de direitos próprios por aquele que produz a prova e na instrução de inquérito por parte da vítima – embora as discussões doutrinárias e até mesmo jurisprudenciais tenham avançado de forma significativa. Assim, defende este autor a ampliação do rol de hipóteses em que a relativização da ilicitude pode ocorrer, como nos citados exemplos de crimes hediondos e da macrocriminalidade econômica.
A relativização nestes casos seria pautada em um plenamente justificado e legitimado interesse social preponderante, já que estas modalidades delitivas possuem um grau de reprovabilidade muito superior aos crimes considerados comuns. Além do grau de reprovação baseado no clamor público, alguns desses crimes ainda lesam diretamente a esfera econômica da coletividade, como o Tráfico de Entorpecentes e a macrocriminalidade econômica, que desregulam o mercado e geram efeitos sociais negativos de grande monta. No caso do tráfico de drogas, como visto, a “máquina” de violência que o circunda, bem como a captação de jovens para o trabalho ainda são mais agravantes. Demais disso, ainda existem os gastos públicos no combate, conscientização e tratamento de pessoas dependentes de drogas, o que poderia ser canalizado a outros setores sociais se os índices deste crime fossem minorados (acreditando, assim, que a flexibilização proposta contribuiria para tanto). Pela macrocriminalidade, temos que os crimes associados lesam o erário de forma substancial, e a sofisticação aplicada para a consecução daqueles não permite que os meios de prova convencionais alcancem um resultado punitivo satisfatório.
Por fim, é de se dizer que ainda não há na jurisprudência um posicionamento ideal pacificado no que tange à admissibilidade das provas ilícitas, embora as discussões sejam largas e diversas. A tendência seguida pelos Tribunais é a de uma maior flexibilidade na admissão daquelas provas no futuro, o que ainda não se pode considerar como uma realidade palpável, mas sim tangível. Isso, como se pode imaginar, produz alguns transtornos de ordem prática para efeitos de unificação de entendimento.
REFERÊNCIAS
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ZAFFARONI, Eugênio Raul; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro. I. RJ: Revan. 2ª ed. 2003.
[1] (HC 82788, CELSO DE MELLO, STF.)
[2] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 17ª Edição. 2013. P. 338
[3] SPENGLER, Adriana Maria Gomes de Souza. Dimensão do Princípio da Proporcionalidade na Repressão à Macrocriminalidade Econômica. P.17.
[4] STF, Habeas Corpus 90.376/RJ
[5] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 17ª Edição. 2013. P. 362.
[6] STF, 2ª Turma, HC 74116/SP, Rel. para o acórdão Min. Maurício Corrêa, DJU de 14.03.1997, pág. 06903
[7] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 17ª Edição. 2013. P. 368.
[8] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 17ª Edição. 2013. P. 368.
[9] HC 78749/MS, 1ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em25/05/1999, DJU de 25/06/1999
[10] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 17ª Edição. 2013. P. 366.
[11] STF, Habeas Corpus nº 83.515/RS
[12] SANTOS, Lara Cíntia de Oliveira. A evolução do Processo Penal e os meios de Prova. Disponível em: <https://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9773> . Acessado em: 08/10/2013.
[13] RHC 90.376/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO.
[14] STJ, Recurso Especial 204080/CE – 6ª Turma
[15] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 17ª Edição. 2013. P. 372.
[16] ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 20ª Edição. 2012. P. 205
[17] CAPPI, 2002, P.61-62.
[18] PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa Do. A Ponderação de Interesses em matéria de Prova no Processo Penal. 2006. P.145
[19] PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa Do. A Ponderação de Interesses em matéria de Prova no Processo Penal. 2006. P.150
[20] PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa Do. A Ponderação de Interesses em matéria de Prova no Processo Penal. 2006. P.151
[21] LIMA, André Canuto de F. A teoria dos princípios de Robert Alexy. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/31472/a-teoria-dos-principios-de-robert-alexy#ixzz3IlJdqnMw> Acessado em: 05/11/2014.
[22] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 17ª Edição. 2013. P. 373.
[23] IDECRIM. Direito – Lei de Crimes Hediondos. Disponível em: <http://www.idecrim.com.br/index.php/direito/29-lei-de-crimes-hediondos> . Acessado em: 12/10/2013.
[24] CASTRO, Marinella; FURBINO, Zulmira. 2010. Disponível em: < http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2010/06/06/interna_brasil,196279/index.shtml> . Acessado em: 12/10/2013.
[25] SPENGLER, Adriana Maria Gomes de Souza. Dimensão do Princípio da Proporcionalidade na Repressão à Macrocriminalidade Econômica. P.23.
[26] SPENGLER, Adriana Maria Gomes de Souza. Dimensão do Princípio da Proporcionalidade na Repressão à Macrocriminalidade Econômica. P.21.
[27] STF, RE 402717/PR, de relatoria do Ministro Cezar Peluso
[28] PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa Do. A Ponderação de Interesses em matéria de Prova no Processo Penal. 2006. P. 207.
[29] PEDROSO, Fernando de Almeida. O Direito de Defesa: Repercussão, amplitude e Limites. 3ª Edição. 2001. P. 409.
[30] ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 20ª Edição. 2012. P. 186
[31] ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 20ª Edição. 2012. P. 186
[32] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 18ª Edição. 2010. P. 462
[33] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 17ª Edição. 2013. P. 343
[34] SILVA, José Afonso Da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª Edição. 2012. P. 191
[35] SPENGLER, Adriana Maria Gomes de Souza. Dimensão do Princípio da Proporcionalidade na Repressão à Macrocriminalidade Econômica. P.21.
[36] PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa Do. A Ponderação de Interesses em matéria de Prova no Processo Penal. 2006. P.74/75
[37] PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa Do. A Ponderação de Interesses em matéria de Prova no Processo Penal. 2006. P.76.
[38] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; et al. 2003. V.1, P.227.
[39] Essa tese foi defendida inicialmente por Günther Jakobs, jurista alemão que defendeu a noção de Funcionalismo Sistêmico, na qual se afirma que o Direito Penal não se presta à defesa de bens jurídicos propriamente ditos, mas tão somente à proteção da norma penal. Assim se diz pela decorrência lógica de que: quando determinado delito é cometido, o bem jurídico que a mesma tutelou já foi violado, tornando impossível o retorno do seu status quo ante. Dessa forma, a função primordial da pena seria a de chancelar a própria norma em si.
[40] PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa Do. A Ponderação de Interesses em matéria de Prova no Processo Penal. 2006. P.78.
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