Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar um estudo dos casos da Favela Pullman e do Pinheirinho, ambos submetidos ao Poder Judiciário, mas que tiveram resultados diversos. A favela Pullman desenvolveu-se a partir de uma ocupação nos anos 70, enquanto a ocupação Pinheirinho é bem mais recente, ocorrida a partir de 2003. A partir desses dois casos, é possível fazer uma reflexão do modo insuficiente que o Judiciário trata de conflitos coletivos e, no contexto do direito civil, discutir a função social da propriedade, a problemática de sua concretização em cada caso e especialmente a aplicabilidade do novo instituto “desapropriação judicial privada por posse-trabalho”. Enquanto na favela Pullman, a Justiça entendeu pelo reconhecimento do direito daqueles que ocuparam o local e ali fixaram residência, no caso Pinheirinho, houve um longo processo judicial, permeado por incidentes processuais, mas que acabou por reintegrar na posse os antigos proprietários, em prejuízo de todas as centenas de famílias que ali moravam, o que nos faz concluir que a função social da propriedade é sempre um processo em construção.
Palavras-chave: Pullman; Pinheirinho; função; social; propriedade.
Abstract: This article aims to present a study of the cases of Favela Pullman and Pinheirinho, both submitted to the Judiciary, but they had different results. The Pullman was developed from an occupation in the 1970s, while the Pinheirinho occupation is more recent, occurring since 2003. From these two cases, it is possible to make a reflection of insufficient way that the Judiciary deals with collective conflicts and, in the context of civil law, to discuss the social function of the property, the problems of its implementation in each case and especially the applicability of the new institute "private judicial expropriation for possession-labor". While in the favela Pullman, the Court understood the right of those who occupied the place and settled there, in Pinheirinho, there was a long judicial process, permeated by procedural incidents, but which reinstated the former owners, to the detriment of all the hundreds of families who lived there, which leads us to conclude that the social function of property is always a process under construction.
Keywords: Pullman; Pinheirinho; function; social; property.
Sumário: Introdução. 1 O caso da Favela Pullman. 2 O caso Pinheirinho. 3 Algumas reflexões a respeito dos casos Pullman e Pinheirinho e a função social da propriedade. 4 Aproximações: Pullman e Pinheiro e o instituto da desapropriação judicial privada por posse-trabalho. Considerações finais.
Introdução
O presente artigo visa apresentar um estudo dos casos da Favela Pullman e do Pinheirinho e, a partir daí, expor algumas reflexões a respeito da função social da propriedade e, em especial, o instituto disciplinado nos §§ 4º e 5º do artigo 1228 do Código Civil de 2002, a desapropriação judicial privada por posse-trabalho.
Para Flávio Tartuce (2017, p. 142), “as palavras de Reale justificam a terminologia desapropriação judicial privada por posse-trabalho, que deve ser considerada a melhor a ser empregada. Essa expressão é utilizada, com pequenas alterações, por Maria Helena Diniz, Lucas Abreu Barroso, Nelson Nery Jr. E Rosa Maria DE Andrade Nery, nos seus trabalhos aqui citados”.
O caso da Favela Pullman, como ficou conhecido, teve repercussão em razão do emblemático acórdão proferido pelo Desembargador José Osorio, da 8ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, mantido pelo Superior Tribunal de Justiça, que pode ser considerado como essencial para a compreensão do sentido da função social da propriedade, nas palavras de Flávio Tartuce (2017, p. 151).
Na zona sul da cidade de São Paulo, em um loteamento abandonado, denominado “Vila Andrade”, iniciou-se uma ocupação a partir de meados dos anos 70, ocupação essa que se expandiu de forma irregular até formar a Favela Pullman. Tempos depois, em dezembro de 1984, alguns proprietários desses lotes ajuizaram ação reivindicatória com fundamento no direito de propriedade, pedido que foi julgado procedente em primeira instância, mas que, em segunda instância, foi modificado, dando-se provimento à apelação dos réus para julgar improcedente a demanda e reconhecer a neutralização do jus reivindicandi no caso concreto, por conta da conduta antissocial dos autores.
Já o caso Pinheirinho ganhou destaque, sobretudo, pela repercussão da reintegração de posse, ocorrida em 22 de janeiro de 2012, que se deu de forma extremamente conflituosa e violenta.
A ocupação do Pinheirinho deu-se em 25 de fevereiro de 2004, por cerca de 240 famílias, de forma muito organizada pelas lideranças locais, em uma área abandonada que era de propriedade da empresa falida SELECTA, tendo como principal acionista Naji Robert Nahas.
Até 22 de janeiro de 2012, data da reintegração de posse, viviam cerca de duas mil famílias, aproximadamente nove mil pessoas na ocupação, em um núcleo consolidado com casas de alvenaria, ruas traçadas, avenidas, praças, local para equipamentos públicos e áreas de preservação mantida.
A partir do estudo desses dois casos emblemáticos, cujas respostas do Poder Judiciário foram em sentido diametralmente opostos, pretende-se traçar algumas reflexões a respeito da função social da propriedade e em especial da desapropriação judicial privada por posse-trabalho.
2 O caso da Favela Pullman[1].
Em 28 de dezembro de 1984, é proposta ação reivindicatória, com fundamento no artigo 524 do Código Civil de 1916, combinado com o artigo 274 do Código de Processo Civil de 1973, alegando a propriedade de nove lotes de terreno da quadra 12 do loteamento denominado "Vila Andrade", pois “os referidos lotes foram invadidos pelos Suplicados, que deles se apossaram ilegitimamente, ali construindo benfeitorias clandestinas, consistentes em barracos, transformando o loteamento em verdadeira favela, sem que os legítimos titulares do domínio possam exercer sua posse sôbre os bens imóveis aludidos”. Na defesa, os réus alegaram basicamente a consumação de usucapião e a realização de benfeitorias no local.
Durante a instrução probatória, houve a produção de prova pericial, apontando a perita que o local de fato tinha sido abandonado pelos proprietários e posteriormente ocupado, de maneira irregular, por diversas famílias, com a construção de barracos primordialmente nas áreas dos terrenos dos lotes em questão, mas abrangeu parte das áreas destinadas às vias públicas.
Realizada audiência de instrução de julgamento, em maio de 1992, com a oitiva de três testemunhas dos autores e de três testemunhas dos réus. Em ressudo, todas confirmaram a existência da “favela”, mas divergiram quanto ao início da ocupação, ressaltando-se o testemunho do padre Mauro Baptista, decisivo para o deslinde da causa, que afirmou: “foi pároco no local até 1.973 quando já havia o inicio da favela do ‘Pulman’. Ausentou-se do local até 1.979 quando para lá retornou encontrou a favela consolidada. Os réus aqui presentes moram na favela.”.
Em sentença prolatada em 06 de outubro de 1992, o juiz Plínio Tadeu do Amaral Malheiros julgou procedente o pedido para determinar a desocupação dos lotes, devendo ainda os réus pagarem aluguel mensal, desde o ajuizamento da ação até a efetiva desocupação. Como fundamento, argumentou que os autores lograram demonstrar o domínio dos lotes reivindicados, enquanto os réus “nada trouxeram aos autos, a não ser a dura e amarga realidade”. Afastou, ainda, a alegação de usucapião, sob o argumento, em linhas gerais, de que as testemunhas não indicaram com precisão o direito aquisitivo dos réus da presente ação, destacando que “a Dra. Perita estimou a ocupação em dez anos, o que guardar maior correspondência com a prova oral, inclusive com o depoimento do Padre Mauro que disse que em 1.979 a favela estava consolidada”. Rechaçou, por fim, a tese da posse de boa-fé, aduzindo que “não é crível que se espere encontrar em São Paulo, uma das mais caras metrópoles do mundo, um palmo de chão que não seja de ninguém e assim considerado res nullius."
Não se conformando, os réus apelaram, pleiteando o reconhecimento da usucapião, nos termos do artigo 183 da Constituição da República, por se tratar de direito superveniente. Subsidiariamente, reiteraram a presença de boa-fé, pois adquiriram suas posses de terceiros, acreditando não haver qualquer impedimento, assim como o direito de indenização pelas benfeitorias e acessões.
No dia 16 de dezembro de 1994, a 8ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo proferiu acórdão, dando provimento ao recurso dos réus, prejudicado o recurso adesivo, por votação unânime.
O desembargador José Osório, em seu voto, não acolheu a alegação da defesa de “usucapião social urbano”, criado pelo artigo 183 da Constituição da República de 1988, “porquanto, quando se instaurou a nova ordem constitucional, a ação estava proposta havia três anos”. Não obstante o afastamento dessa tese, mesmo assim, deu provimento à apelação dos réus, utilizando como fundamento, basicamente, a função social da propriedade, em voto emblemático.
De fato, reconheceu que os autores haviam adquirido os nove lotes de terreno no loteamento “Vila Andrade”, inscrito em 1955; reconheceu também a existência de uma favela consolidada, com ocupação iniciada há cerca de vinte anos, dotada de equipamentos urbanos (água, iluminação pública e luz domiciliar). No entanto, destacou que “Os lotes de terreno reivindicados e o próprio loteamento não passam, há muito tempo, de mera abstração jurídica. A realidade urbana é outra. A favela já tem vida própria, está, repita-se, dotada de equipamentos urbanos. Lá vivem muitas centenas, ou milhares, de pessoas. Só nos locais onde existiam os 9 (nove) lotes reivindicados residem 30 (trinta) famílias. Lá existe uma outra realidade urbana, cm vida própria, com os direitos civis sendo exercitados com naturalidade. O comércio está presente, serviços são prestados, barracos são vendidos, comprados, alugados, tudo a mostrar que o primitivo loteamento hoje só tem vida no papel”.
Além disso, entendeu comprovado que o loteamento não chegou a ser efetivamente implantado e ocupado. “Ele data de 1955. Onze anos depois, a planta aerofotogramétrica da EMPLASA mostra que os nove lotes estavam cobertos de ‘vegetação arbustiva’, a qual também obstruía a rua Alexandre Archipenko (fls. 220). Inexistia qualquer equipamento urbano”. Fato esse que foi corroborado pelo depoimento do padre Mauro Baptista. Acrescenta, ainda, que “loteamento e lotes urbanos são fatos e realidades urbanísticas. Só existem, efetivamente, dentro do contexto urbanístico”.
Para concluir que “a realidade concreta prepondera sobre a ‘pseudo realidade jurídico-cartorária’. Esta não pode subsistir, em razão da perda do objeto do direito de propriedade”. Faz uma analogia, ainda, com uma cataclisma, uma erosão física, que leva ao perecimento do imóvel e perda do direito de propriedade, nos termos artigo 589, combinado com os artigos 77 e 78 todos do Código Civil.
De forma lapidar, afirma que “para o direito, contudo, a existência física da coisa não é o fator decisivo, consoante se verifica dos mencionados incisos I e III do art. 78 do CC. O fundamental é que a coisa seja funcionalmente dirigida a uma finalidade viável, jurídica e economicamente”. Além do enfoque jurídico, reconhece a questão social do caso: “O desalojamento forçado de trinta famílias, cerca de cem pessoas, todas inseridas na comunidade urbana muito maior da extensa favela, já consolidada, implica uma operação cirúrgica de natureza ético-social, sem anestesia, inteiramente incompatível com a vida e a natureza do Direito. É uma operação socialmente impossível. E o que é socialmente impossível é juridicamente impossível.”
No voto, também, indica a necessidade de uma interpretação constitucional dos institutos de direito privado. In verbis: “A leitura de todos os textos do CC só pode ser fazer à luz dos preceitos constitucionais vigentes. Não se concebe um direito de propriedade que tenha vida em confronto com a Constituição Federal, ou que se desenvolva paralelamente a ela. As regras legais, como se sabe, se arrumam de forma piramidal. Ao mesmo tempo em que manteve a propriedade privada, a CF a submeteu ao princípio da função social (art. 5º, XXII e XXIII; 170, II e III; 182, 2º; 184; 186; etc.)”.
E destaca que o princípio não significa apenas uma limitação a mais ao direito de propriedade, que atuaria de forma externa ao direito. “O princípio da função social atua no conteúdo do direito”, concluindo que o jus reivindicandi fica neutralizado pelo princípio constitucional da função social da propriedade, mas permanece eventual pretensão indenizatória em favor dos proprietários, contra quem de direito. Assim, deu provimento à apelação dos réus, o que foi acompanhado, por unanimidade, pelos demais julgadores.
Os autores opuseram embargos declaratórios. Rejeitados, interpuseram recurso extraordinário (fls. 536/545), por violação aos artigos 2º, 3º III, 4º VII, 5º caput, XXII, LIV, da Constituição da República e em razão da inconstitucionalidade do artigo 5º §5º da Lei nº 1060/1950, bem como recurso especial (fls. 569/564), por violação ao artigo 2º, ofendendo o princípio da inércia da jurisdição, uma vez que o acórdão deu provimento à apelação, por fundamento diverso, questão essa não debatida nos autos até aquele momento; ao artigo 460, diante do julgamento extra petita; e ao artigo 515, por ofensa ao efeito devolutivo do recurso, todos do Código de Processo Civil de 1973 e também ao artigo 524 do Código Civil de 1916.
Somente o recurso especial foi admitido e em parte, apenas no que toca à violação ao artigo 524 do Código Civil. No Superior Tribunal de Justiça, a quarta turma, por unanimidade, não conheceu do recurso especial (fls. 616/628), assim ementado:
“CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. TERRENOS DE LOTEAMENTO SITUADOS EM ÁREA FAVELIZADA. PERECIMENTO DO DIREITO DE PROPRIEDADE. ABANDONO. CC, ARTS. 524, 589, 77 E 78. MATÉRIA DE FATO. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 7-STJ.
I. O direito de propriedade assegurado no art. 524 do Código Civil anterior não é absoluto, ocorrendo a sua perda em face do abandono de terrenos de loteamento que não chegou a ser concretamente implantado, e que foi paulatinamente favelizado ao longo do tempo, com a desfiguração das frações e arruamento originariamente previstos, consolidada, no local, uma nova realidade social e urbanística, consubstanciando a hipótese prevista nos arts. 589 c/c 77 e 78, da mesma lei substantiva.
II. “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” – Súmula n. 7-STJ.
III. Recurso especial não conhecido.
(REsp 75.659/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 21/06/2005, DJ 29/08/2005, p. 344)”
No voto, o ministro Aldir Passarinho Junior adotou a tese do abandono dos lotes, asseverando que na prática esses pereceram. Merece destaque o seguinte trecho do aresto: “De efeito, consta que o loteamento, de 1955, jamais chegou a ser efetivado. Dez anos depois era um completo matagal, sem qualquer equipamento urbano, portanto inteiramente indefinidos no plano concreto, os lotes dos autores. Iniciou-se, pouco tempo após, a ocupação e favelização do local, solidificada ao longo do tempo, montada uma outra estrutura urbana indiferente ao plano original, como sói acontecer com a ocupação indisciplinada do solo por invasões, obtendo, inclusive, a chancela do Poder Público, que lá instalou luz, água, calçamento e demais infra-estrutura. Aliás, chama a atenção a circunstância de que até uma das ruas também fora desfigurada, jamais teve papel de via pública (cf. fl. 503). Assim, quando do ajuizamento da ação reivindicatória, impossível reconhecer, realmente, que os lotes ainda existiam em sua configuração original, resultado do abandono, aliás desde a criação do loteamento. Nesse prisma, perdida a identidade do bem, o seu valor econômico, a sua confusão com outro fracionamento imposto pela favelização, a impossibilidade de sua reinstalação como bem jurídico no contexto atual, tem-se, indubitavelmente, que o caso é, mesmo, de perecimento do direito de propriedade”.
Foram ainda apresentados embargos de declaração e embargos infringentes, mas foram rejeitados, transitando em julgado a decisão.
3 O caso Pinheirinho[2].
A dinâmica do processo judicial no caso Pinheirinho deu-se de forma completamente diversa.
O início do Pinheirinho remonta a 2003, com a ocupação de algumas casas abandonadas do CDHU, no Campo dos alemães, na zona sul da cidade de São José dos Campos. Mas, logo na sequência, essas famílias tiveram que desocupar essa propriedade, por conta de uma ordem judicial obtida pela Prefeitura; o que levou – depois de forma mais organizada pelas lideranças locais – a ocupação de outro terreno abandonado no dia 25 de fevereiro de 2004, por cerca de 240 famílias. Essa área abandonada era de propriedade da empresa falida SELECTA, tendo como principal acionista era Naji Robert Nahas. Segundo Milena Ginjo (2016, p. 39), “adquiriu o imóvel no ano de 1981 pelo valor de 130 milhões de cruzeiros. O imóvel foi utilizado como garantia de dois empréstimos: O primeiro, em 1982, no valor de um bilhão de cruzeiros, o equivalente a R$ 20 milhões em 2012, contraído com o banco BCN, com sede no Brasil. O segundo, em 1986, no valor de 10 mil dólares, contraído com o banco Bamef Lanque de La Mediterranée, com sede na França. Em 1989, Naji Nahas foi acusado de ser responsável pela quebra da bolsa do Rio de Janeiro. Na época, o empresário enfrentou inúmeros problemas decorrentes de supostas manipulações no mercado acionário para inflar o preço de suas ações da Vale do Rio Doce e da Petrobras, o que levou várias de suas empresas à falência, incluindo a Selecta”.
Até 22 de janeiro de 2012, data da reintegração de posse, viviam cerca de duas mil famílias, aproximadamente nove mil pessoas na ocupação, em um núcleo consolidado com casas de alvenaria, ruas traçadas, avenidas, praças, local para equipamentos públicos e áreas de preservação mantida.
Ocorre que no mesmo ano de2004 foi proposta ação de reintegração de posse, em nome da massa falida na 18ª Vara Cível de SP, com o argumento de esbulho possessório; cuja liminar foi deferida, sendo expedida carta precatória para a Comarca de São José dos Campos. No entanto, um dos moradores do Pinheirinho pede a suspensão do cumprimento da ordem judicial, que é deferida pelo juiz titular da 6º Vara dessa mesma Comarca. Dessa decisão a massa falida impetra mandado de segurança na Comarca de São Paulo, uma vez que haveria “verdadeiro atentado aos regramentos legais vigentes e ao equilíbrio e estabilidade da jurisdição”, segundo os advogados da massa falida. Concedeu-se nova liminar para reintegração de posse. Inconformado o advogado do Pinheirinho interpõe-se agravo de instrumento ao Tribunal de Justiça de São Paulo, que foi provido, reconhecendo-se a incompetência do Juízo de São Paulo.
Assim, os autos são encaminhados para São José, sendo inicialmente mantida a suspensão da liminar. Não obstante, a massa falida interpôs agravo de instrumento ao Tribunal, ao argumento de que a última liminar concedida pelo juízo de São Paulo seria válida, pois não tinham sido declarados nulos os atos anteriores daquele juízo, sendo certo que o Relator decidiu favoravelmente e concedeu efeito ativo ao recurso para imediato cumprimento da reintegração, decisão essa ratificada pelo órgão colegiado. Foram interpostos recurso especial e recurso extraordinário, sendo que somente o primeiro foi admitido.
Quase cinco anos depois, ou seja, em 22 de fevereiro de 2011, o Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso para reconhecer a inadmissibilidade do agravo da SELECTA. Assim, passou-se a valer novamente a decisão do juiz da 6ª Vara Cível de São José dos Campos, que negou cumprir a reintegração de posse.
Retomado o curso normal da ação de reintegração de posse, uma nova juíza profere decisão em sentido diametralmente oposto, determinando o cumprimento da precatória no sentido da reintegração de posse. Na sequência, designa uma reunião para delimitar como se dará a execução da ordem; o que gerou a apresentação de novo agravo de instrumento ao Tribunal de Justiça.
Nesse interim, acontecem protestos dos moradores do Pinheirinho, o que ocasionou até mesmo a manifestação do Secretário Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades Norman Oliveira, que encaminhou ofício à juíza, na tentativa de se buscar uma solução mediada. É firmado um protocolo de intenções junto à Prefeitura pelos diversos atores envolvidos.
A partir dessa intervenção do Ministério das Cidades, é proposta nova ação na Justiça Federal, sob alegação de que havia interesse da União em regularizar o Pinheirinho, conforme protocolo de intenções, cuja liminar foi deferida, em regime de plantão, para que as forças policiais se abstivessem de efetivar a reintegração do Pinheirinho. Entendeu-se que havia “indícios de interesse da União Federal na solução da questão posta em lide, de modo a atrair a competência deste Juízo para analisar o caso”.
O juiz titular, no entanto, afasta o interesse da União, entendendo que não haveria interesse jurídico (ilegitimidade ad causam da União), mas somente político no caso. Assim, é interposto agravo de instrumento ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que mantém a União no polo passivo.
Até esse momento, havia o seguinte quadro: uma decisão do Desembargador Antonio Cedenho que impedia a efetivação da reintegração de posse e, de outro lado, uma decisão da juíza Márcia Loureiro (justiça estadual), autorizando a reintegração.
Dessa feita, a juíza da Vara de São José dos Campos, ao tomar conhecimento da decisão do Tribunal Regional Federal, encaminhou uma consulta ao Presidente do Tribunal de Justiça Ivan Ricardo Garisio Sartori, que, em resposta, determina a manutenção do cumprimento da ordem judicial de reintegração de posse, proferida no juízo estadual.
No dia 22 de janeiro de 2012, por volta das 5 horas da manhã, a polícia ingressa no Pinheirinho, com cerca de 2 mil policiais e guardas civis, para cumprimento da decisão judicial, inclusive com a utilização de helicópteros, que lançavam sobre as casas bombas de gás lacrimogêneo.
Buscou-se ainda suscitar conflito de competência no Superior Tribunal de Justiça, mas foi mantida a ordem judicial de reintegração de posse, tudo no mesmo dia; o que ocorreu de forma bastante conflituosa e violenta, como relataram diversos jornais à época[3].
Como constatou Jorge Luiz Souto Maior (2012), “o que aconteceu na localidade conhecida por Pinheirinho, em São José dos Campos, município que possui um dos maiores orçamentos per capita do Brasil, pode ser considerado uma das maiores agressões aos Direitos Humanos da história recente em nosso país”. No dia seguinte, emblemáticas foram as palavras do governador do Estado de São Paulo Geraldo Alkmim, “decisão judicial se cumpre e ponto”.
4 Algumas reflexões a respeito dos casos Pullman e Pinheirinho e a função social da propriedade.
Apresentados os casos Pullman e Pinheiro e seus desdobramentos completamente diversos, algumas observações merecem ser feitas.
Como dito, o lugar do presente estudo é a perspectiva do direito civil, especialmente a função social da propriedade. No entanto, para ser bem compreendida a questão, não se pode perder de vista o contexto social mais amplo, envolvendo o direito à moradia e os conflitos sociais daí emergentes.
Apesar das limitações do Judiciário como espaço de transformação social, o que se percebeu a partir do caso Pullman foi a possibilidade de uma análise do caso concreto que leve em consideração todos os fatores envolvidos, ou seja, o reconhecimento de que não se trata simplesmente de uma questão individual, mas sim uma questão coletiva que tem importantes repercussões sociais. A bem da verdade, há um conflito social, que não se esgota no âmbito do processo judicial, por certo e não pode ser desprezado pelo juiz no momento de proferir sua decisão.
Essa diferença de postura é perfeitamente identificada em ambos os casos. No processo judicial da favela Pullman, inicialmente, nota-se um posicionamento extremamente formalista do magistrado que proferiu a sentença ao julgar procedente o pedido de reintegração de posse, ressaltando que, de um lado, os autores comprovaram o domínio dos lotes, mas, de outro lado, os réus não se desincumbiram do ônus de provar fato impeditivo do direito, porque nada trouxeram aos autos a fim de comprovar a posse de boa-fé. Aduziu não ser crível que em uma cidade como São Paulo houvesse “um palmo de chão que não seja de ninguém”.
Por meio desse tipo de argumentação, é possível perceber que houve uma redução da complexidade do conflito submetido ao Poder Judiciário. A questão não poderia ser colocada apenas como um conflito bilateral, apta a ser solucionada tão-somente por meio da técnica regulamentar, verificando-se apenas a subsunção estrita dos fatos ao direito de usucapião previsto no Código Civil de 1916, de maneira formalista, ou mesmo os estritos requisitos da reintegração de posse, previstos na legislação processual.
Da mesma forma, ao descrever a dinâmica do caso Pinheirinho, tal postura é também visível, até mesmo pelos inúmeros incidentes processuais provocados. O conflito foi reduzido ao enquadramento dos requisitos legais para deferimento da liminar em uma ação possessória. Enquanto isso, o processo se prolongou por anos, e a ocupação Pinheirinho foi se sedimentando e crescendo. A esse respeito, valem destacar as palavras de Milena Ginjo (2016, p. 92):“O estudo do caso Pinheirinho permite-nos observar uma forma de juridificação de demandas sociais, na qual o conflito apresenta outra configuração. É o particular, o agente privado (polo ativo), que provoca a jurisdição para demandar contra a sociedade civil organizada (polo passivo). Nesse momento, não já demanda social, não se fala em direito à moradia. Isso ocorre num segundo momento, quando o movimento social ‘fala’ no processo. Os advogados apresentam o direito à moradia como tese de defesa, como tentativa de requalificação do conflito: ‘Não se trata de conflito Caio x Ticio’.”
Essa postura formalista não deixa de ser resultado de uma influência direta do Código Civil de 1916. Sob o enfoque do direito material, em uma perspectiva histórica, o Código Civil de 1916 é resultante das doutrinas individualista e voluntarista, consagradas pelo Código de Napoleão, que trouxe o mito de que o direito codificado esgotava o fenômeno jurídico, em todas as suas manifestações, tendo como aspecto fundamental a exasperação da técnica legislativa regulamentar (TEPEDINO, 2006, p. 21-46). Não se olvide que “a redação da legislação civil brasileira repercute ainda, em sua literalidade, a concepção individualista da propriedade” (LÔBO, 2017, p. 127).
No caso da favela Pullman, é bem verdade que inicialmente a ocupação deu-se de forma desorganizada e irregular. No entanto, a ocupação se consolidou, demandando benefícios sociais ou mesmo individuais coletivamente fruíveis, implicando também em uma coletivização dos conflitos (LOPES, 1994). No caso Pinheirinho, não resta dúvida quanto à sua organização desde o primeiro momento. Foi um movimento articulado por lideranças locais, com o fito de garantir moradia digna a centenas de famílias.
A respeito do Pinheirinho, Jorge Luiz Souto Maior (2012) ressaltou que a ocupação, para fins de moradia, de uma terra improdutiva, abandonada, sobre a qual o proprietário não exerce o direito de posse, que não serve sequer ao lazer e que pela sua localidade e tamanho precisa, necessariamente, atender a uma finalidade social, não é mera invasão, tratando-se, em verdade, de uma ação política que visa pôr à prova a eficácia dos preceitos constitucionais.
Enquanto no caso Pinheirinho ficou evidente que não se enfrentou, de forma adequada, a ponderação sobre a função social da propriedade, na situação da favela Pullman todos esses aspectos não foram desprezados na solução do litígio, na acurada e sensível análise do desembargador José Osório. Ressalte-se que o Desembargador não desprezou o aspecto social da questão ao destacar a impossibilidade de um desalojamento forçado de trinta famílias, cerca de cem pessoas, todas inseridas na comunidade urbana muito maior da extensa favela, já consolidada.
Assim, evidente que essa leitura serviu de substrato para a concretização da cláusula geral da função social da propriedade, a partir de uma perspectiva constitucional, no sentido de se buscar uma “remoção dos obstáculos à emancipação das pessoas não proprietárias ou possuidoras, notadamente com a redução das desigualdades sociais, cumprindo-se o mandamento constitucional de justiça social” (LÔBO, 2017, p. 122). Para esse autor, essa constitui uma das finalidades da função social da propriedade, ao lada da “harmonização dos interesses individuais do titular da posse ou da propriedade com os interesses sociais e supraindividuais (como a preservação do meio ambiente)”.
Não obstante, como bem destacou Milena Ginjo (2016, p. 96), no caso Pinheirinho, “a falta de ponderação sobre a função social se deve ao caráter abstrato da norma, ou à sua abertura. Essa é uma discussão importante no direito urbanístico”.
Da mesma forma, Orlando Gomes (2008, p. 128) já alertava para a dificuldade do intérprete diante da vagueza da noção da função social da propriedade, ao afirmar que “A função social da propriedade é antes uma concepção com eficácia autônoma e incidência direta no próprio direito consente elevá-la à dignidade de um princípio que deve ser observado pelo intérprete, tal como sucede em outros campos do direito civil, como o princípio da boa-fé nos contratos. É verdade que assim considerada se torna uma noção vaga, que todavia não é inútil na medida em que inspira a interpretação da atividade do proprietário”.
Na mesma linha, José de Oliveira Ascensão (1971, p. 143-144) distingue entre “os autores que não atribuem mais nenhum sentido específico à norma constitucional, enquanto ela não for prolongada na legislação ordinária” e aqueles “autores que pretendem, pelo contrário, que tal norma é de direito actual, é conteúdo necessário de toda a propriedade.”
Em uma concepção clássica, a propriedade era vista sob o ponto de vista exclusivamente estrutural, limitando-se o Código Civil de 1916 a descrever e assegurar os poderes do proprietário, sendo que a propriedade submetia-se apenas a limites externos a seu exercício (TEPEDINO, 2009, p. 175-199), exatamente como se pode perceber na sentença da Favela Pullman, ao acolher o pedido dos autores, diante da comprovação do domínio e da ausência de fatos impeditivos esses direito.
No entanto, como bem ressaltado no voto do desembargador Osório, não se pode desprezar a perspectiva constitucional na análise do conceito de propriedade. Ao mesmo tempo em que é garantido o direito de propriedade (artigo 5º, inciso XXII), como direito fundamental, a Constituição deixa claro que a propriedade atenderá a sua função social, no inciso seguinte (XXIII). Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2011, p. 241) ressaltam que “Esta ordem de inserção de princípios não é acidental, e sim intencional. Inexiste incompatibilidade entre a propriedade e a função social, mas uma obrigatória relação de complementariedade, como princípios de mesma hierarquia. Não se pode mais conceder proteção à propriedade pelo mero aspecto formal da titularidade em razão do registro. A visão romanística, egoística e individualizada sucumbiu em face da evolução da humanidade. A Lei Maior tutela a propriedade formalmente individual a partir do instante em que se exiba materialmente social, demonstrando merecimento e garantindo a sua perpetuidade e exclusividade. A propriedade que não for legitimidade pela função social será sancionada pelo sistema por diversas formas e intensidades.”
Nessa perspectiva, a função social da propriedade, sob o manto dos valores constitucionais da solidariedade, igualdade e dignidade da pessoa humana, torna-se elemento interno do domínio, de tal maneira que as liberdades individuais devem ter por função também o alcance de interesses socialmente relevantes atingidos por seu exercício, ao lado dos legítimos interesses de seu titular (TEPEDINO, 2009, p. 175-199).
Função social essa que deve ser compreendida sob uma dupla intervenção: limitadora e impulsionadora, consoante relata José de Oliveira Ascensão (1971, p. 140), explicando que “no primeiro caso a lei pretenderia apenas manter cada titular dentro dos limites que se não revelassem prejudiciais à comunidade, enquanto que no segundo interviria activamente, fomentaria, impulsionaria, de maneira a que de uma situação de direito real derivasse um resultado socialmente mais valioso.”
No voto, o desembargador José Osório deixou evidente essa segunda perspectiva, ao afirmar que “o princípio da função social atua no conteúdo do direito”, impondo condutas aos proprietários, no sentido de dar alguma destinação útil aos lotes adquiridos. Isso porque, segundo Paulo Lôbo (2017, 118), “a ideia de função social da propriedade – e, por correlação, da posse – deriva da integração de deveres à propriedade”.
Em relação ao acórdão do Superior Tribunal de Justiça, percebe-se que, basicamente, foram mantidos os mesmos fundamentos da decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, apenas acrescentando a tese do abandono dos lotes. Para Tartuce (2017, p. 157), “não há dúvidas de que o Ministro relator reconheceu a função social da posse como fundamento para o preenchimento do conceito de função social da propriedade.”
Note-se que, efetivamente, houve o pagamento dos impostos dos lotes, o que, todavia, não tem o condão de afastar a conduta antissocial dos autores. A função social da propriedade não é atendida tão-somente pelo cumprimento de obrigações tributárias da propriedade, mas sim com a efetiva destinação adequada da coisa.
Não se pode esquecer que o Código Civil de 2002 previu expressamente a função social da propriedade nos parágrafos 2º e 3º do artigo 1228. “Agora está na lei: o novo Código Civil contempla a função social e chancela, em seu descumprimento, uma intervenção expropriatória. É o que prevê o §4º do art. 1.228 do CCB de 2002” (GOMES, p. 128).
5 Aproximações: Pullman e Pinheiro e o instituto da desapropriação judicial privada por posse-trabalho.
Diante dessas duas narrativas que seguiram destinos completamente diversos, é possível ainda tecer algumas reflexões a respeito do instituto da desapropriação judicial privada por posse-trabalho, previsto de forma inovadora no artigo 1228 §§ 4º e 5º do Código Civil de 2002, assim delineado: “§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. § 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores”.
Trata-se de criação brasileira, representando uma das principais restrições ao direito de propriedade (TARTUCE, p. 2017, p. 142), cuja constitucionalidade foi reconhecida pela maioria da doutrina, conforme se pode constatar do enunciado 82 da I Jornada do CNJ: “É constitucional a modalidade aquisitiva de propriedade imóvel prevista nos §§ 4º e 5º do art. 1.228 do novo Código Civil”.
Para Orlando Gomes (2008, p. 117), “a mais enérgica das limitações ao direito de propriedade alarga-se nos seus fundamentos, tendendo-se para admitir seu emprego por desamparo do imóvel, desvio de sua destinação, venda para loteamento popular e manutenção de posseiros no solo que ocuparam”.
Maria Helena Diniz (2012, p. 884) aponta que “tal inovação tem por base a humanização da propriedade, a socialização da posse, a função social da posse e da propriedade e a justiça social (CF, art. 5º, XXIII, e 170, III)”, protegendo de forma específica essa posse qualificada.
Ressalte-se que “não só a função social da propriedade terá um papel fundamental no Direito Civil, mas também, em razão da socialidade no nosso ordenamento, a posse, que deverá cumprir uma função social” (CASSETTARI, 2008, p. 107). Aliás, a posse-trabalho, no instituto ora estudado se sobrepõe ao conceito de propriedade, já que dará uma contribuição para que a propriedade alcance a sua função social.
A respeito da natureza jurídica desse instituto, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2017, p. 1031) entendem que se trata de “usucapião rural coletiva”, uma vez que “a perda da propriedade se dá pela posse exercida por uma coletividade de pessoas, dentro de um lapso de tempo previsto em lei (5 anos), não há, em nosso sentir, como negar a nota característica da prescrição aquisitiva, razão por que a tese do usucapião nos pareceria mais atrativa”. Maria Helena Diniz (2012, p. 884) sublinha que “Há quem ache que pelos seus requisitos (posse ininterrupta e de boa-fé por mais de cinco anos) seria uma ‘usucapião onerosa’, visto que os ‘possuidores-usucapientes’ sujeitar-se-iam ao pagamento de um quantum indenizatório ou uma conversão da prestação de restituir a coisa, não de indenizar em dinheiro, similar à hipótese prevista no parágrafo único do art. 1255 do novo Código Civil”.
Todavia, a maioria da doutrina entende que se aproxima muito mais da ideia de desapropriação, principalmente por conta do pagamento de justa indenização (TARTUCE, p. 2017, 142), em que pese não se identificar, perfeitamente, com a desapropriação clássica por ser promovida por particulares e não pelo Poder Público.
Adverte Cassettari (2008, p. 109) que se deve refutar a denominação de “usucapião indenizável”, “haja vista que desde o tempo de Labão, um dos maiores doutrinadores no assunto do Direito Romano, até os dias de hoje, em nenhum momento se viu uma modalidade de usucapião indenizável”.
Registre-se, por fim, uma terceira posição de Paulo Lôbo (2017, p. 122), entendendo que se trata de uma “aquisição por acessão invertida de áreas ocupadas”, como modalidade de acessão proveniente de ato humano, nos termos do artigo 1248, V, do Código Civil, porque – para ele – a desapropriação é instituto de direito público que pressupõe ato da administração de declaração da utilidade ou necessidade públicas, mas “em nosso sistema de divisão de poderes, não pode o Judiciário, em sua atividade jurisdicional, substituir-se à administração pública (esta é exercida pelos tribunais, apenas em âmbito interno e no interesse destes)”. De outro lado, na acessão invertida de terras ocupadas, a perda da propriedade não decorre de qualquer iniciativa do Poder Público, mas da própria comunidade e do reconhecimento judicial, que determina o registro, após o pagamento da indenização correspondente.
De qualquer forma, a previsão legal dos parágrafos 4º e 5º do artigo 1228 traz diversos conceitos indeterminados, tais como “extensão área”, “boa-fé”, “considerável número de pessoas”, “obras e serviços de interesse social e econômico relevante”, os quais vão exigir do intérprete o seu preenchimento caso a caso.
Especificamente quanto à boa-fé, Tepedino (2006, p. 160) adverte que “a interpretação literal ao dispositivo levaria à sua inaplicabilidade prática, sendo difícil caracterizar nestes casos a boa-fé subjetiva, ou seja, o desconhecimento do vício possessório nas situações ali descritas. A interpretação há de ser, aqui, evolutiva, expandindo-se a noção de boa-fé e ampliando-se a legitimidade dos títulos para este efeito”.
Preocupação essa corrente na doutrina que levou a edição do enunciado 309 da IV Jornada do CNJ: “O conceito de posse de boa-fé de que trata o art. 1.201 do Código Civil não se aplica ao instituto previsto no § 4º do art. 1.228”. Também Tartuce (2017, p. 149) afirma que se refere à boa-fé objetiva, pois relacionada à conduta dos envolvidos, de modo que devem ser confrontadas as posses dos envolvidos, prevalecendo a melhor posse, por atender à função social.
Nessa perspectiva, Renan Lotufo (2008, p. 337) afirma haver uma aproximação do caso da Favela Pullman com o referido dispositivo do Código Civil: “Já no que tocante ao art. 1.228, §4º, traz figura nova, que tem precedente jurisprudencial paradigmático, anterior à vigência do código”, referindo-se exatamente ao julgado do Desembargador José Osório. Flávio Tartuce (2017, p. 157) tem a mesma opinião.
Tendo em vista os requisitos acima indicados, parece razoável concluir – a partir da análise do processo judicial – que a favela Pullman estaria localizada em uma extensa área e ocupada por um número considerável de pessoas. Isso porque os nove lotes em questão eram ocupados por cerca de 30 famílias. Também o requisito temporal de cinco anos, bem como o da posse ininterrupta restaram adequadamente preenchidos, conforme se constata do conjunto probatório dos autos, uma vez que ocupavam a área desde meados dos anos 70.
O requisito de maior dificuldade de comprovação seria a presença de boa-fé, como aliás ficou claro na argumentação da sentença. No entanto, partindo-se da ideia de boa-fé objetiva, é perfeitamente razoável inferir o seu preenchimento, porquanto os ocupantes deram uma finalidade social aos lotes, o que não ocorreu anteriormente com a posse dos autores. Nesse sentido: “A conclusão é que a ideia de função social serve para preencher o conceito de boa-fé. Confrontando-se a posse dos proprietários, que nunca deram qualquer destinação aos imóveis (posse antissocial, diante da inércia, do ato negativo), com a posse dos ocupantes, percebe-se que os últimos dotaram o bem de uma finalidade social (posse social, diante da atuação coletiva, do ato positivo). Por isso é que a sua posse é melhor e pode ser tida como posse de boa-fé, se confrontada com a dos autores da ação reivindicatória. Deve-se entender que a boa conduta desses ocupantes serve para convalidar uma posse inicialmente injusta e de má-fé, pelo ato de invasão” (TARTUCE, p. 158).
Como o caso em discussão deu-se anteriormente à edição do Código Civil de 2002, evidentemente que no acórdão do desembargador José Osório não tratou de justa indenização, consoante previsto no parágrafo 5º. No entanto, caso se entenda pela possibilidade de desapropriação judicial privada, deveria ser aplicado o enunciado 308 da IV Jornada do CNJ, com o pagamento da indenização pela Administração Pública. Eis o teor do enunciado: “A justa indenização devida ao proprietário em caso de desapropriação judicial (art. 1.228, § 5º) somente deverá ser suportada pela Administração Pública no contexto das políticas públicas de reforma urbana ou agrária, em se tratando de possuidores de baixa renda e desde que tenha havido intervenção daquela nos termos da lei processual. Não sendo os possuidores de baixa renda, aplica-se a orientação do Enunciado 84 da I Jornada de Direito Civil”. Nesse sentido, “entende-se que não há outra solução senão o Estado realizar o pagamento, já que ele é quem, também, deve garantir o direito à moradia, conforme o art. 6º da Constituição Federal” (CASSETTARI, 2008, p. 115).
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça entendeu pela fixação de indenização a ser paga pelo ente público, afirmando que “O Município de Rio Branco, juntamente com o Estado do Acre, constituem sujeitos passivos legítimos da indenização prevista no art. 1.228, § 5º, do CC/2002, visto que os possuidores, por serem hipossuficientes, não podem arcar com o ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo proprietário do imóvel (ex vi do Enunciado 308 Conselho da Justiça Federal)”.
Sobre ainda a questão em concreto, destacou que “A solução da controvérsia exige que sejam levados em consideração os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da segurança jurídica, em face das situações jurídicas já consolidadas no tempo, de modo a não piorar uma situação em relação à qual se busca a pacificação social, visto que "é fato público e notório que a área sob julgamento, atualmente, corresponde a pelo menos quatro bairros dessa cidade (Rio Branco), onde vivem milhares de famílias, as quais concedem função social às terras em litígio, exercendo seu direito fundamental social à moradia" (REsp 1442440/AC, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07/12/2017, DJe 15/02/2018)
No caso da favela Pullman, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu por negar o direito à ação petitória, pela aplicação do princípio constitucional da função social da propriedade, permanecendo, no entanto, a eventual pretensão indenizatória em favor dos proprietários, contra quem de direito. Percebe-se, assim, que os julgadores foram além, pois não fixaram indenização. “A conclusão é de que a desapropriação judicial privada por posse-trabalho, em relação ao famoso julgado, constitui até um retrocesso. Bom seria se a maioria da comunidade jurídica pensasse assim…” (TARTUCE, p. 2017, p. 160)
Já, no caso Pinheirinho, não parece ser possível se pensar em desapropriação judicial privada por posse-trabalho, porquanto estar ausente o requisito temporal de 5 anos de posse-trabalho. A ocupação iniciou-se em 2004, sendo que a ação de reintegração de posse foi proposta já no mesmo ano.
De fato, a questão é que a maioria dos casos envolvendo ocupação de grandes áreas urbanas por diversas famílias não irá passar desapercebido pelos proprietários, mesmo que não deem uma destinação adequada, que cumpra a função social da propriedade. Daí que a aplicação do novo instituto provavelmente será ínfima, não atendendo talvez à expectativa gerada pela doutrina à época de promulgação do Código.
Nessa perceptiva, além da justa indenização e da presença de um interesse social, configurado pela posse-trabalho, expressa no conceito indeterminado de “obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante”, o que justifica a aproximação com o conceito de desapropriação judicial, pode-se questionar a manutenção do requisito temporal de cinco anos previsto no dispositivo da lei.
Ora, a partir do momento em que os ocupantes realizem obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante, já estaria configurada a posse-trabalho, cuja ideia é a razão de ser da criação do instituto, exatamente como se extraí das palavras de Miguel Reale, sendo despiciendo o requisito temporal de cinco anos, mesmo porque – em tais situações – também deve ficar evidente a inércia do antigo proprietário em dar a adequada destinação social ao imóvel.
É claro que tal sugestão implicaria em uma maior indeterminação do conceito da desapropriação judicial, exigindo do juiz, com maior rigor, uma análise caso a caso do preenchimento também do conteúdo da cláusula geral da posse-trabalho; o que, nada obstante, poderia abarcar de uma maneira mais adequada a complexidade desse tipo de conflito social.
Vale a advertência de Jose de Oliveira Ascensão (2011, p. 327-337): “o trabalho sobre cláusulas gerais é mais difícil: mas é o único que pode levar a soluções corretas, que afastem simultaneamente, quer o mecanicismo, quer a pseudoequidade que esconde o arbítrio de quem é preguiçoso”.
Assim, de lege ferenda, o instituto poderia abarcar outras situações nas quais haveria uma ocupação já estabelecida e consolidada, ou seja, presentes as obras e serviços de interesse social relevante, assim como a boa-fé objetiva, no sentido da ideia de melhor posse, mas sem o decurso do prazo de cinco anos, exatamente como se pode extrair do caso Pinheirinho, o que certamente contribuiria para uma maior efetivação da função social da propriedade.
Considerações finais
A partir da reconstrução dos casos da Favela Pullman e do Pinheirinho, tornou-se possível refletir sobre as soluções diversas dadas pelo Poder Judiciário.
O estudo do processo judicial da Favela Pullman permitiu trazer à lume alguns detalhes importantes do caso, os quais demonstraram o acerto do voto do desembargador José Osório, ao aplicar a função social da propriedade e, por consequência, afastar o jus reivindicandi dos autores. O laudo pericial deixou bem claro que a área estava abandonada e que foi progressivamente sendo ocupada, de maneira bem irregular, mas que acabou por se consolidar na Favela Pullman, versão essa que é corroborada, de maneira geral, pela prova testemunhal produzida.
A função social da propriedade deve ser entendida a partir da perspectiva constitucional, sendo inerente ao próprio conceito de propriedade. Não se trata de mero limite externo à propriedade. O entendimento de que “o princípio da função social atua no conteúdo do direito”, como constou, de forma lapidar, no voto do Desembargador José Osorio, permitiu concluir que a conduta antissocial dos autores, quando abandonaram aqueles lotes, implicou na própria perda do jus reivindicandi.
De outro lado, o estudo do caso Pinheirinho nos indicou algumas limitações do Poder Judiciário, diante dos conflitos urbanos. Não obstante a gravidade da situação ali posta, com milhares de famílias na ocupação, verificou uma postura mais formalista ao reintegrar a posse do imóvel, em sede de liminar, desprezando toda complexidade do conflito coletivo ali colocado. O que permite também visualizar a dificuldade de se concretizar a cláusula geral da função social da propriedade, em cada caso concreto. Se na situação do Pullman, houve sensibilidade de se reconhecer a gravidade da questão em termos coletivos, o mesmo não se fez presente no Pinheirinho.
O novo instituto da desapropriação judicial privada por posse-trabalho, previsto no artigo 1228 §§ 4º e 5º do Código Civil apresenta-se com uma especificação, uma densificação da função social da propriedade. Analisando os seus requisitos, observa-se a presença de conceitos indeterminados. Debruçando-se sobre o caso da Favela Pullman, é possível concluir que atende a esses requisitos, de modo que, hipoteticamente, seria possível a aplicação da desapropriação judicial na hipótese, desde que a justa indenização ficasse a cargo do Poder Público, por se tratar de famílias de baixa renda. Pelos requisitos da lei, não seria possível o enquadramento do caso Pinheirinho.
A previsão de conceitos indeterminados foi acertada porque permite ao intérprete uma maior discricionariedade. Apesar disso, pensando em uma maior efetividade do instituto, o requisito temporal de cinco anos parece ser incompatível com o conceito de posse-trabalho, pois se já estão estabelecidas as obras e os serviços de interesse social e econômico relevantes, o prazo seria irrelevante para a concretização da função social da propriedade, o que poderia adequado ao caso Pinheirinho.
O fato é que “a construção da ideia de função social da propriedade e da posse é um processo inconclusivo. Permanentemente inconclusivo. Em cada tempo e lugar ela se revela e adquire dimensões de acordo com os valores sociais que as afirmam” (2017, p. 119), como se pôde perceber da análise dos casos da Favela Pullman e do Pinheirinho.
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