Reflexões sobre a novel figura do assédio processual

Resumo: Recentemente a comunidade jurídica foi surpreendida com a novel figura do “assédio processual”, inserido pela jurisprudência no intuito de fazer valer a efetividade da prestação jurisdicional, reprimindo condutas processuais que considerou inadequadas ao fim almejado pelo direito. A novidade, por certo, desafia diversas reflexões, em especial, em relação ao amparo legal que justifique condenações ao pagamento de indenizações por tais condutas e o exercício regular de um direito. Assim, se apresenta pertinente fazer uma breve digressão no tocante a princípios constitucionais pertinentes e previsões infraconstitucionais pré-existentes e aplicáveis a tais hipóteses.[1]


1. INTRODUÇÃO:


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Trata-se o assédio processual de figura absolutamente recente na seara jurídica, e assim como o assédio moral não possui previsão legal específica.


Certamente trará conseqüências em toda a esfera processual, abrangendo – por óbvio – a justiça do trabalho. Assim, mais uma vez seria possível perceber uma forma de assédio à qual o trabalhador  estará sujeito. Contudo, pelo que se poderá inferir do conceito a ser explanado, poderá também haver uma inversão nesta posição, já que o assediador será aquele que lançar mão dos meios processuais “reprováveis” na visão da jurisprudência, conforme se verá.


Feita tal observação, temos que, ante a inovação inserida pela jurisprudência, imperioso trazemos a lume decisões pioneiras neste sentido, a fim de que possamos extrair a definição necessária ao estudo.


Destacamos inicialmente a decisão proferida por juiz auxiliar da 2ª Vara do Trabalho de Itabuna (BA) o qual condenou a Bombril S.A. a pagar indenização de R$ 15 mil por danos morais em decorrência de assédio processual.


Conforme noticia[2] divulgada, tem-se que o referido magistrado definiu na própria sentença o assédio processual como sendo o conjunto de atos processuais temerários, infundados ou despropositados com o intuito de retardar ou procrastinar o andamento do feito, evitar o pronunciamento judicial, enganar o Juízo ou impedir o cumprimento ou a satisfação do direito reconhecido judicialmente, violando assim os direitos fundamentais da Constituição Federal (artigo 5º, XXXV, LIV e LXXVIII).


De outra decisão que tem sido destacada também como pioneira em relação ao tema, depreende-se o seguinte teor:


“Praticou a ré ‘assédio processual‘, uma das muitas classes em que se pode dividir o assédio moral. Denomino assédio processual a procrastinação por uma das partes no andamento de processo, em qualquer uma de suas fases, negando-se a cumprir decisões judiciais, amparando-se ou não em norma processual, para interpor recursos, agravos, embargos, requerimentos de provas, petições despropositadas, procedendo de modo temerário e provocando incidentes manifestamente infundados, tudo objetivando obstaculizar a entrega da prestação jurisdicional à parte contrária.” (Mylene Pereira Ramos, Juíza Federal, da 63ª Vara do Trabalho, da Seção Judiciária da Comarca de São Paulo, in processo nº 02784200406302004)” (destaque e grifos nossos)


Dos poucos artigos publicados sobre o assunto, destacamos opinião[3] no sentido de tratar-se, o assédio processual, de modalidade de assédio moral, porém no âmbito processual e não material como aquele.


Diz-se que o objetivo seria a protelação da prestação jurisdicional ou do cumprimento das obrigações  judicialmente exigiveis, impondo a outra parte a morosidade e retardo processual de forma prejudicial.


Assim, a considerar o teor das decisões expostas, teríamos como principais elementos do assédio processual a utilização de métodos processuais reiterados no intuito de procrastinar o cumprimento de dever legal, em detrimento da parte adversa e benefício próprio.


Levando-se em conta tratar-se de tema absolutamente recente, nos limitamos às definições já expostas, passando a lançar apenas um olhar crítico sobre o quadro atual.


2. ANÁLISE CRÍTICA:


É fato que a lei coíbe do abuso de direito, conforme disposto no art 160, I  e 187 do Código Civil. Assim, situações em que o exercício de um direito se dá de forma desmedida, desvirtuando-o de sua finalidade em prejuízo de outrem poderão, realmente, caracterizar o ato ilícito passível de reparação. (Não obstante, convém lembrar desde já que o uso do processo para conseguir objetivo ilegal, ou seja, ato ilícito, já se encontra amparado no art. 17, inciso III do CPC conforme se explanará mais adiante, configurando-se, pois, litigância de má-fé.)


Por esta ótica a inovação jurisprudencial se apresentaria pertinente, vindo mesmo ao encontro do clamor por parte de jurisdicionados que vêm sendo sistematicamente vilipendiados no seu direito à efetiva entrega da prestação jurisdicional, há de se reconhecer.


A garantia do acesso à justiça certamente tem relação com o princípio da duração razoável do processo, este previsto no art. 5ª, inciso LXXVIII da Constituição Federal. De nada vale garantir ao jurisdicionado mecanismos de acesso, tais como gratuidade de justiça, jus postulandi (no caso da justiça trabalhista), patrocínio gratuito, dentre outros, se não houver razoável expectativa de efetiva resposta por parte do judiciário, seja esta positiva ou negativa.


Por certo senão em razão do ônus financeiro (quando isento), certamente em razão do desgaste psicológico e tempo despendido chegaríamos à conclusão de que tais desestímulos acabam por fazer com que a garantia de acesso à justiça, que não passe de uma utopia constitucional ante a ausência de efetividade.


A conivência com manejos processuais infundados, que tem por nítido intuito postergar o cumprimento de obrigações já devidamente definidas na seara judicial não deve mesmo ser ignorada. Vale aqui o adágio popular: “quem cala, consente”.


Neste ponto, digno de encômios a iniciativa jurisprudencial em se mostrar contrária de forma tão contundente a tais práticas.


Não obstante, parece-nos deveras preocupante a aplicação ao campo processual nos moldes que se pretende. Será que os fins justificam os meios?


Primeiramente é de bom alvitre lembrar que a lei processual já possui previsão legal  para as hipóteses de litigância de má-fé, em especial em seu art. 17 e suas alíneas III, IV, V, VI e VI e ainda 18, todos do CPC, cuja transcrição segue-se:


“Art. 17.  Reputa-se litigante de má-fé aquele que: (…)


III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal;


IV – opuser resistência injustificada ao andamento do processo;


V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;


Vl – provocar incidentes manifestamente infundados.


VII – interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.


Art. 18. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou.


§ 1o  Quando forem dois ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção do seu respectivo interesse na causa, ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária.


§ 2o  O valor da indenização será desde logo fixado pelo juiz, em quantia não superior a 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa, ou liquidado por arbitramento.” (grifamos)


Veja-se que a mesma lei processual prevê ainda outras hipóteses em que o não cumprimento dos provimentos mandamentais e embaraços à efetivação dos provimentos judiciais também são reprovados e penalizados, a teor do art. 14 e seu parágrafo único do CPC, que trata do “ato atentatório ao exercício da jurisdição.” Na mesma linha tem-se ainda o art. 600 do mesmo diploma, aplicável à fase de execução.


Note-se que em todas as hipóteses destacadas a lei prevê um percentual mínimo para a condenação daquele que faltar com o legalmente exigido no campo processual.


Com efeito, a menos que o “assédio processual” seja considerado como uma mera nomenclatura para as hipóteses legais elencadas e seja observado o limite referente patamar condenatório que impõe, tem-se como preocupante a propagação indiscriminada da novel figura de assédio.  


Isto porque a linha que separa a conduta no campo processual que pode ser tida como protelatória, daquela que consiste em garantia ao litigante em função da aplicação de princípios constitucionalmente consagrados, tais como o devido processo legal e do princípio da legalidade, se apresenta deveras tênue.


Se ninguém é obrigado  a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei e se a lei processual assegura ao litigante uma série de recursos a fim de que este mantenha sua posição de não sujeitar-se ao interesse da parte adversa, como puní-lo quando ampara sua resistência em práticas previstas em  normas processuais?


Como ficaria impedido de exaurir as faculdades processuais disponíveis para sua defesa, em razão do entendimento de que já teria extrapolado, digamos, os limites da razoabilidade do exercício daquele direito? 


Colocar em prática sanções por tais condutas, cujo parâmetro para fins de aferição parece mesmo deveras subjetivo – registre-se -, poderá fazer com que,  valendo-nos do jargão popular, “o tiro saia pela culatra”, ante o potencial risco de lesão aos princípios constitucionais já citados e ainda à ampla defesa e segurança jurídica.


É bem verdade que o processo não é um fim em si mesmo (princípio da instrumentalidade), mas não se pode prescindir da boa técnica processual, recusando ao “litigante em processo judicial os meios e recursos inerentes ao contraditório e ampla defesa”. (conforme dicção expressa do art. 5 LV da Constituição Federal)


Parece-nos ainda que a imposição de sanções ao litigante com fundamento da ocorrência de “dano moral” em razão de um suposto “assédio processual” devido ao manejo de recursos que a própria lei dispõe é, no mínimo, lançar mão de um julgamento por equidade não autorizado por lei. 


Ademais, pelo que se sabe, nos julgamentos até então proferidos, ante a novidade do tema, provavelmente não deve ter havido pedido no sentido de condenação ao litigante a título de “assédio processual” ou danos morais deste advindo, parecendo curioso que um dos litigantes tenha sido beneficiado com o pagamento de indenização sequer pleiteada, em verdade[4] em verdadeira afronta ao instituído no art. 460 do CPC que faz com que, em regra, o juiz esteja adstrito aos pedidos formulados pelo autor.


Porventura estaríamos falando de matéria de ordem pública, onde se seria dado ao magistrado manifestar-se  ex-oficio? Qual seria o direito indisponível tutelado a justificar tal iniciativa?  Ora, a responsabilidade das partes por dano processual já encontra previsão legal, conforme já exposto. O que teria então remanescido a justificar a pro atividade jurisprudencial?


Note-se que mesmo nos casos de litigância de má-fé e os atos atentatórios à dignidade da justiça se faz necessário o enquadramento legal, não admitindo interpretação extensiva, como criar-se um novo instituto que, ao final, não passa da mesma litigância de má-fé, mas com fulcro na incidência de dano moral caracterizador de um pseudo “assédio processual”. 


Aliás, considerando os argumentos supra, vale indagar se não haveria um  potencial “bis in idem”, caso se perceba que ao litigante seja atribuída condenação com fulcro nos dispositivos constantes no CPC pertinentes (arts. 17, 18 e 600), e ainda, posteriormente, por “assédio processual”.


 Vamos ainda além: Se a norma que impõe sanção deve ser interpretada de forma restritiva, como se pode então punir quando sequer há norma expressa neste sentido? Será mesmo suficiente a norma civil referente ao abuso de direito neste campo processual específico?


A nosso ver, como todas as venias daqueles que se encontram empolgados com a nova temática, pensamos que esta se apresenta bastante frágil, mormente pela insegurança jurídica na seara  processual que deverá causar.


Note-se que aqueles que advogam para empresas se verão “entre a cruz e a espada”: Se deixam de utilizar-se de métodos legais para obstar a cumprimento da obrigação poderão passar por negligentes, atécnicos.  De outro lado, se esgotam todos os meios e recursos inerentes à defesa correm o risco de incidir em “assédio processual” gerando também ônus à empresa.  E nem se diga que isto não se dará, face à necessidade de apuração deveras criteriosa da aplicabilidade de tal sanção, já que não há segurança nesta afirmação.


Não obstante, parece-nos que o intuito do julgador é louvável, mas como no Estado de Direito, como é o caso, não basta que “os fins justifiquem os meios” sendo imperiosa a observância da lei, forçoso que esta seja observada ou inovada, caso não se apresente a contento.


Melhor seria, ao que nos parece, que se colocassem em prática a aplicação dos art. 17, 18 e 600 do CPC, já que o judiciário, encontra-se assoberbado de demandas que certamente seriam  melhor resolvidas, facilitando-se, inclusive a entrega efetiva e menos morosa da prestação jurisdicional, se o rigor da lei fosse observado.


E neste ponto, é de bom alvitre lembrar, em especial à Justiça Trabalhista, que nem sempre os atos processualmente reprováveis se dão por parte da defesa.  É fato notório a quantidade de demandas aventureiras e de petições ineptas que somente se prestam a mover a máquina judiciária em vão, onerando não somente o Estado, como também aqueles que são obrigados a custear a defesa de tais demandas inócuas. 


Tudo isto incentivado pela remota possibilidade de ônus financeiro, já que em geral o Reclamante se esquiva acobertado pela “gratuidade de justiça” e mero arquivamento da Reclamação quando se quer se dá ao trabalho de comparecer à audiência (E neste ponto, para não nos distanciarmos do tema em análise, deixamos de entrar no mérito da justificativa baseada no jus postulandi, limitando-nos a dizer que a prática demonstra tratar-se já de figura meramente lendária).


3. CONCLUSÃO:


Destarte, face aos limites propostos pelo presente estudo e considerando-se ainda a indefinição do tema, deixamos de tecer maiores considerações, registrando apenas, por oportuno, que as críticas ora consignadas se tratam de reflexões iniciais, as quais compartilhamos com o leitor, sem qualquer pretensão de que tais premissas sejam tidas como absolutas, mesmo porque as decisões questionadas certamente possuem respeitável fundamentação, as quais  –por certo – merecem ser sopesadas.


Fica, entretanto, a percepção referente à necessidade de ater-se aos dispositivos legais, em especial, para fins de condenações por condutas que já se encontram previstas na lei processual.  Se o efeito decorrente de tal aplicação apresenta-se inócuo, ao que parece, melhor seria que a legislação fosse adequada, a fim de evitar que a pretensa tutela de um direito venha a ferir outro.


Observemos, portanto, o desenrolar da questão, que – ao que tudo indica – deverá gerar grandes controvérsias na comunidade jurídica.


 


Notas:

[1] As opiniões expressadas neste estudo, salvo as referências expostas,  são de cunho pessoal da autora.


[3] PAROSKI , Mauro Vasni. Reflexões sobre a morosidade e o assédio processual na Justiça do Trabalho Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12003 > Acesso em 11/09/09

[4] Registre-se que ante a ausência de acesso ao conteúdo integral dos autos referente aos processos em que a decisão sob comento se deu, tal comentário se baseia em presunção ante o que ordinariamente é esperado nos processos atuais e tendo em vista as decisões pioneiras.

Informações Sobre o Autor

Patricia Oliveira Lima Pessanha

Advogada concursada da Administração Pública Indireta; Pós Graduada em Direito Material e Processual de Trabalho


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Equipe Âmbito Jurídico

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