Resumo: Levando em consideração os argumentos formulados por Daniel Innerarity de que vivemos em um “mundo dessincronizado” (i.e., marcado pela ausência de sincronia entre os ritmos de diferentes sistemas sociais), este breve artigo visa analisar criticamente alguns aspectos do ensino jurídico no Brasil. Apontam-se as deficiências do atual sistema de ensino, fundamentado em uma concepção formal e legalista do Direito, e são sugeridas novas concepções e modelos que podem ser adotados. Ao final, apresentam-se algumas reflexões sobre questões que modelos contemporâneos de ensino do Direito devem levar em consideração.
Palavras-chave: Direito; ensino; modelos de ensino jurídico; formalismo; tempo.
Abstract: Considering Daniel Innerarity’s argument that we live in a “desynchronized world” (i.e., without synchronization between rhythms of different social systems), this essay aims to critically analyze certain aspects of Brazilian legal education. The author addresses some problems in the current educational system, based on a formal and legalistic conception of law, and suggests new models that can be adopted. Finally, some reflections on issues that contemporary models of legal education must consider are presented.
Keywords: Law; education; models of legal education; formalism; time.
Sumário: Introdução. 1. O modelo de ensino jurídico brasileiro. 2. O ensino do Direito em um mundo dessincronizado. Conclusão.
Introdução
Sabe-se que a inovação científica e tecnológica tem operado em velocidades cada vez mais rápidas. Esta realidade é impactante em áreas como informática, engenharia e medicina: não é difícil notar, por exemplo, que um médico deve se atualizar constantemente sobre os novos remédios lançados no mercado a fim de receitá-los adequadamente aos seus pacientes. Algo semelhante ocorre no campo jurídico, ainda que de forma não tão explícita – pensemos no que foi a avalanche de “manuais” e cursos de especialização gerada pelo Código de Defesa do Consumidor, visando atualizar profissionais sobre deste novo “ramo jurídico”.
No caso do Direito, contudo, devemos nos atentar para algumas de suas especificidades. À parte das diferentes concepções que podemos sustentar a seu respeito, parece inegável que o Direito corresponde a um fenômeno de natureza normativa e, notadamente, dirigido à solução de conflitos que permeiam diferentes sistemas sociais. Tais conflitos surgem e se modificam na mesma medida em que passamos por novas ondas de inovação tecnológica – assim, por exemplo, as inovações no campo da medicina implicam em novas preocupações de ordem ética, moral e jurídica (e.g., inseminações artificiais, estudos com células tronco etc.). Logo, se tais inovações têm ocorrido velozmente, com maior razão se exercem pressões para que o sistema jurídico solucione de forma célere os conflitos daí decorrentes.
Estas relações entre tempo, inovações tecnológicas e diferentes sistemas foram analisadas por Daniel Innerarity, para quem vivemos em um mundo dessincronizado. A ideia geral é de que os sistemas se comunicam, mas operam em ritmos diferentes. Não é difícil imaginar os problemas que esta ausência de sincronia acarreta: em um mundo dominado por um capitalismo acelerado e globalizado, as decisões de ordem econômica são tomadas em tempo real (e, com a Internet, de forma online), e não podem esperar pelos sistemas político e jurídico – os quais, inclusive por razões de legitimidade, operam em um ritmo consideravelmente mais lento (INNERARITY, 2008, p. 17). Não é à toa que grandes empresas têm recorrido a métodos alternativos para a solução de seus conflitos, notadamente a arbitragem, que são muito mais céleres do que os morosos processos judiciais.
Estes fatos devem ser levados em consideração no ensino do Direito, já que sua compreensão é fundamental para a solução satisfatória de conflitos. Meu objetivo com o presente texto é analisar o atual modelo brasileiro de ensino jurídico, apontando algumas de suas deficiências e sugerindo elementos que possam ser levados em consideração por novos modelos que, eventualmente, sejam propostos e pretendam levar em consideração esta noção de mundo dessincronizado. Esta é uma tarefa relevante na medida em que, como se verá adiante, o estilo essencialmente dogmático e doutrinário do ensino jurídico no Brasil é incapaz de lidar satisfatoriamente com a velocidade com que os conflitos se desenvolvem.
Divido o texto em três partes. A primeira parte tem por objeto o “estado da arte” do ensino jurídico brasileiro. Analiso o método adotado e as competências que se pretende ensinar pelos futuros bacharéis. Na segunda parte do texto exponho o que entendo serem as deficiências deste modelo, considerando o contexto global de sistemas sociais dessincronizados e algumas possíveis soluções. Nesta parte elaboro uma crítica à ideia comum de que se deve aumentar o número de disciplinas lecionadas, considerando o surgimento de novos diplomas legais. Na terceira parte, representada pela conclusão, apresento algumas questões e reflexões que devem ser levadas em consideração por aqueles que se preocupam em elaborar novos modelos de ensino.
1. O modelo de ensino jurídico brasileiro
O modelo de ensino do Direito adotado no Brasil é reflexo direto da concepção dominante que se tem sobre o fenômeno jurídico. Esta concepção é bem conhecida pelos estudantes: trata-se do positivismo jurídico, que tem como expoentes autores como Hans Kelsen e remonta à escola alemã da jurisprudência dos conceitos, do início do século XIX – e, de forma mais ampla, mas não menos relevante, ao modelo de Estado liberal clássico que prossegue influenciando de forma direta nossas reflexões sobre o Direito.
A forma com que o positivismo jurídico foi apropriado pelo pensamento nacional sugere uma percepção formalista do Direito. Enquanto instrumento que visa à proteção de princípios básicos do liberalismo, o futuro profissional jurídico é ensinado a pensar o Direito enquanto mero conjunto de regras, cuja aplicação deve respeitar ritos e procedimentos previamente previstos em lei (o que corresponde, em termos weberianos, à racionalidade meramente formal). Esta forma de pensar o Direito tem por base o raciocínio liberal de mínima intervenção do Estado na esfera individual – notadamente o que se compreende como liberdade contratual. Assim, dá-se preferência às disciplinas de Direito Privado, focadas em um modelo de conflito bilateral. Os alunos são expostos, primordialmente, aos conflitos de interesses entre dois indivíduos, como os que versam sobre negócios jurídicos e responsabilidade civil[1].
A estrutura dos cursos jurídicos brasileiros é muito semelhante àquela que Gerhard Casper, na década de 70, apresentava como sendo o modelo da Europa continental[2]. A grade curricular deve respeitar diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Educação e o sistema de instrução é majoritariamente expositivo. Muitas vezes são abordados casos práticos – mas sempre tendo em vista a aplicação do Direito Positivo, suas regras e princípios abstratos.
Estes fatos demonstram o caráter essencialmente doutrinário do ensino jurídico. Circunscritos à legislação nacional, os alunos de Direito são ensinados a fazer o que um advogado ou juiz fariam em um caso concreto. Há uma preocupação prática, mas esta preocupação é desvinculada dos fundamentos da norma jurídica e da sua relação com a sociedade. A regra de Direito é vista como entidade autônoma e abstrata, cuja razão de ser não é explorada. Trata-se do modelo de ensino jurídico do “Direito como doutrina”, assim concebido e denominado por Jan M. Smits em seu artigo Three Models of Legal Education and a Plea for Differentiation (SMITS, 2013)[3].
Esta é a forma com que o Direito é lecionado na maior parte das faculdades brasileiras[4], e são poucas as instituições que fogem deste padrão[5]. De qualquer modo, as complexidades do mundo contemporâneo não são satisfatoriamente tratadas por este modelo. Esta é a realidade que passo a explorar no próximo tópico.
2. O ensino do direito em um mundo dessincronizado
Muito se fala na “crise no ensino jurídico”, e não é sem razão. O modelo típico de ensino do Direito, essencialmente doutrinário, não responde às questões levantadas por uma sociedade que se estrutura e se desenvolve de formas cada vez mais complexas. Assim, por exemplo, o modelo privatístico de solução de conflitos (formulado nos moldes de processos judiciais bilaterais) não dá conta de questões envolvendo coletividades ou interesses difusos – sendo que as tentativas de harmonizar estas controvérsias com os paradigmas processuais clássicos resultaram em malfadadas idealizações (FARIA, 1999, p. 28).
Meu interesse está, entretanto, nas questões que versam especificamente sobre a relação entre o tempo e o ensino jurídico. Como mencionei na introdução deste texto, vivemos em um “mundo dessincronizado”. Os diferentes sistemas sociais operam em tempos diferentes, cada qual ao seu ritmo. Se não bastasse, as relações de poder no mundo contemporâneo passaram a se dar através do controle do tempo: a “cronopolítica” se tornou mais importante do que a geoestratégia (INNERARITY, 2008, p. 3). E neste contexto, em geral, sai-se melhor o sistema mais veloz – de onde se destaca o sistema econômico aliado à temporalidade dos meios de comunicação, graças à inovação tecnológica (INNERATIRY, 2008, p. 6). Esta reflexão, elaborada por Daniel Innerarity em seu texto Un mundo desincronizado (2008), relaciona-se diretamente com o sistema jurídico. Há uma ausência de sincronia entre, por exemplo, os tempos processuais e a temporalidade econômica. A lentidão dos processos judiciais faz com que muitas empresas recorram a métodos alternativos para a solução de controvérsias, e os Tribunais buscam na informatização de processos uma forma de reduzir gastos e acelerar o trâmite das demandas.
Certamente, a falta de sincronia não tem relação apenas com a agilidade do sistema econômico, mas com a velocidade do sistema social como um todo. Não é difícil imaginar os danos causados pela morosidade de processos que versam sobre Direito de Família, como alimentos e guarda de menores. Logo, ainda que as maiores pressões para agilizar o sistema jurídico sejam frutos das necessidades do capitalismo acelerado, outros sistemas mais céleres que o Direito buscam soluções rápidas para seus respectivos conflitos. Pode-se citar, por exemplo, a expansão da mediação como forma de resolver litígios familiares.
Esta nova realidade demonstra de forma clara a insuficiência do ensino jurídico de matriz doutrinária e formalista, como tipicamente ocorre nas faculdades brasileiras. Em uma época onde o que se busca é a tomada de decisões de forma rápida (e, em muitas ocasiões, em tempo real), insistir no ensino do padrão legalista baseado apenas em ritos processuais é um contrassenso. Se não bastasse, a complexidade cada vez maior das interações humanas impulsiona o Estado a legislar sobre novas relações sociais e econômicas, criando novos institutos e normas jurídicas – ocasionando o fenômeno comumente conhecido como “inflação legislativa”.
Uma sugestão muito comum, e em meu entender equivocada, está em aumentar o número de disciplinas obrigatórias nos cursos de Direito de modo a abranger os novos diplomas legais. Isso significa, em última análise, que os alunos deverão frequentar a faculdade por mais tempo. O problema desta proposta é que ela encerra em si um paradoxo: se o mundo está cada vez mais acelerado, a última coisa que se busca é uma graduação mais extensa e, consequentemente, lenta.
Além disso, esta sugestão perpetua a concepção formalista de Direito, pois sugere uma relação de dependência entre o ensino jurídico e a legislação nacional. Afinal, é justamente para se ensinar a aplicar a nova lei ou instituto que se se propõe a criação de nova disciplina. Se esta é a única forma de se conceber o ensino jurídico, então somos, de fato, eternos prisioneiros da célebre afirmação de Julius von Kirchmann, para quem bastava o legislador mudar três palavras para que bibliotecas inteiras se convertessem em papéis inúteis (CASPER, 1973, p. 13). O que podemos fazer?
O primeiro passo é mudar nossa concepção de Direito. Ao invés de tratá-lo como ciência autônoma e desvinculada de elementos morais e políticos, devemos vê-lo enquanto uma realidade histórica, que interage diretamente com outros sistemas sociais. Isso significa, como afirma José Eduardo Faria (1999, p. 22) que devemos tratar o Direito “antes como um método para a correção de desigualdades e consecução de padrões mínimos de equilíbrio sócio-econômico do que como uma técnica para a consecução de certeza e segurança”. Esta nova concepção de Direito pressupõe uma formação diferenciada do profissional jurídico, tomando por base uma perspectiva multidisciplinar – o profissional deve estar atento às necessidades de seu tempo, o que envolve compreender adequadamente os demais sistemas sociais e econômicos.
Se não bastasse, considerando a elevada complexidade das relações no mundo contemporâneo, certo grau de especialização se faz necessário. É por esta razão que uma das possíveis saídas para o ensino jurídico esteja nos cursos de especialização e mestrados profissionalizantes com fins de capacitação e atualização. Afinal, da mesma maneira com que novas tecnologias e avanços científicos implicam na atualização por parte de um engenheiro ou um médico, os novos conflitos que surgem na sociedade demandam profissionais com diferentes capacidades para solucioná-los – o que se aproxima do atual modelo americano de ensino jurídico.
Acredito, entretanto, que a melhor saída esteja na formação teórica sólida, garantindo ao futuro profissional ampla flexibilidade e poder de adaptação – aproximando-se, portanto, do modelo europeu de ensino do Direito. Esta formação teórica não deve consistir no domínio da legislação existente, mas sim na compreensão do sistema jurídico enquanto um método para a solução de conflitos e de direção social – o que vai além das normas jurídicas e envolve estudo de áreas como sociologia, filosofia e psicologia. O profissional deve sair da universidade compreendendo não apenas o funcionamento e razão de ser de um processo judicial, mas também de métodos como a conciliação, a mediação, a negociação e a arbitragem. Talvez saia da faculdade sem saber, por exemplo, as especificidades da legislação previdenciária, mas na medida em que compreende o que é e como funciona uma norma jurídica e o Direito como um todo, poderá fácil e rapidamente adaptar-se aos diferentes tipos de conflito que virá a enfrentar. A partir daí, ele é livre para aperfeiçoar suas habilidades e especializar-se em uma área – pode preferir dedicar-se à mediação familiar, por exemplo, o que envolve algumas aptidões e conhecimentos distintos da negociação contratual ou de questões sobre Direito Tributário.
Conclusão
Seja qual for o modelo de ensino jurídico que viermos a propor, devemos estar atentos à realidade social em que estamos inseridos – o que envolve a compreensão de que outros sistemas (notadamente o econômico) pressionam o Direito a adequar-se aos seus diferentes ritmos. Isso significa que precisamos, primeiramente, superar a concepção de Direito dominante em nossas faculdades, caracterizada pelo legalismo e formalismo. Devemos privilegiar uma formação teórica forte, que garanta ampla capacidade de adaptação para os futuros profissionais. Esta é uma qualidade fundamental em um mundo que avança a passos rápidos.
Esta capacidade de adaptação deve levar em conta, também, as mudanças de ordem tecnológica. Neste sentido, Richard Susskind, em extrato da sua obra Tomorrow’s Lawyers: access to justice in the online future (2013) para o jornal The Guardian, sustenta que o futuro da advocacia está em serviços online de orientação jurídica – além da necessidade cada vez mais rápida de se tomar decisões, os indivíduos contemporâneos estão preocupados não apenas com a resolução de conflitos, mas também em saber como evitá-los e em como criar um ambiente juridicamente saudável para suas diferentes relações.
Considerando este aumento na complexidade das relações sociais, bem como a maior agilidade com que estas relações são travadas, acredito que uma das maneiras de adequar o Direito e seu ensino à realidade contemporânea esteja, justamente, em sua contínua “desprofissionalização”. Em outras palavras, talvez o melhor caminho esteja em diluir boa parte do ensino jurídico ao longo dos graus mais básicos de educação e de outros cursos de graduação. Isso não é muito diferente do que já vem ocorrendo em cursos de capacitação em conciliação e mediação, que atraem não apenas profissionais da área jurídica, mas de todas as áreas possíveis. Afinal, uma mediação escolar feita por alguém com formação em pedagogia não seria, muito provavelmente, melhor do que a de um advogado que se limitou a um curso básico em métodos alternativos para resolução de conflitos? E por que não considerar esta mediação como o exercício de uma atividade jurídica, ainda que exercida por profissional de outra área?
Obviamente, isso não significa dizer que o Direito deixará de existir, ou que seus profissionais não serão mais necessários. Afinal, parece difícil imaginar um mundo onde não mais existam normas de conduta – mas as instituições e indivíduos que as criam e aplicam sofrem mudanças ao longo do tempo. Formar profissionais com alta capacidade de adaptação e conscientes da relevância de um Direito fluido, em um mundo cada vez mais dessincronizado, são preocupações a serem levadas em consideração por qualquer modelo contemporâneo de ensino jurídico.
Doutorando e Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP. Bacharel em Direito pela Escola de Direito da PUCPR – Curitiba. Advogado, especializado nas áreas de Direito de Família e Sucessões
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