Resumo: Para atender a necessidade de garantias creditícias no cumprimento das obrigações, o desenvolvimento da teoria da responsabilidade social passa a representar uma ferramenta mais eficaz na operação jurídica da reparação de danos, provocados por inadimplemento voluntário, especialmente em razão da despatrimonialização fraudulenta por parte do devedor. O afastamento da ideia clássica de obrigação como vínculo jurídico entre credor e devedor, substituída pela noção de obrigação como processo, que subordina os sujeitos da obrigação ao dever mútuo de cooperação, na busca do fim comum, que é o adimplemento da prestação, permite, ainda mais facilmente, a efetivação dessa teoria, sobretudo diante dos novos princípios contratuais que decorrem da ideologia jusfilosófica do Estado social: boa-fé objetiva, equivalência material e, especialmente, função social dos pactos.
Palavras-chave: Obrigação. Inadimplência. Responsabilidade social.
Abstract: Not obligation as a legal relationship between creditor and debtor. Notion of obligation as a process. Volunteer default. Social responsability. Contractual principles from the legal philosophy of the welfare state ideology: objective good-faith, material equivalence, and social function of the covenants.
Keywords: Obligation. Default. Social responsibility.
Sumário: Introdução – 1 A evolução do direito obrigacional em três fases históricas 2 O vínculo jurídico obrigacional e o dever de prestação – 2.1 Responsabilidade patrimonial do devedor – 2.2 Mecanismos de prevenção e repressão ao inadimplemento voluntário – 2.2.1 A responsabilidade solidária e sua efetivação mediante os contratos de seguro – 3 Conclusões – Referências.
INTRODUÇÃO
O tema que ora se propõe como objeto deste estudo visa trazer uma reflexão pragmática do direito das obrigações, sob o ponto de vista das garantias que o Direito pode oferecer ao credor da adimplência que se espera do devedor, diante de um débito voluntariamente constituído entre ambos, também, e, sobretudo, em face do arcabouço doutrinário construído pelas diversas legislações ocidentais ao longo dos vários séculos que separam as primeiras lições sobre o direito das obrigações, legadas pelos romanos, até a moderna civilística-constitucional.
A abrangência do tema é inerente à própria ideia de obrigação, tendo em vista que as relações jurídicas advindas das obrigações têm fontes diversas: dos fatos jurídicos lícitos e dos atos jurídicos ilícitos, envolvendo então situações que podem criar obrigações tributárias, familiares, contratuais (estas subdvididas em civis, empresariais, de consumo e trabalhistas), como também obrigações que decorrem do dever geral de conduta de não lesar outrem – princípio do neminem leadere, que fundamenta a teoria da responsabilidade civil, seja ela contratual ou extracontratual. Estudado o fenômeno sob o aspecto dual de sua constituição, a responsabilidade ganha destaque neste breve estudo das obrigações.
Enfim, as obrigações, sistematizadas desde o direito romano há milênios, encontram-se presentes em todos os diversos ramos do Direito moderno, justificando a escolha deste breve estudo, como um tema sempre atual e inquietante, sobretudo e, mais ainda, em razão da inadimplência voluntária do devedor que frustra a expectativa do credor em ver cumprida a prestação por aquele assumida. A frustração da execução do pagamento forçado pelos inúmeros artifícios utilizados pelo devedor/executado no intuito claro de desvencilhar-se de sua dívida, é, sem sombra de dúvida, um dos maiores problemas do sistema jurídico obrigacional.
Em dados divulgados no mês de setembro de 2010, o índice de inadimplência do consumidor cresceu 11,5% em agosto do mesmo ano, em comparação com o mesmo mês do ano anterior, tendo sido apontado como causas deste crescimento as compras realizadas pelos consumidores nos meses de junho e julho de 2010, em produtos de valor elevado, para acompanharem a Copa do Mundo de Futebol, evento esportivo ocorrido em julho de 2010, principalmente tvs e telões de última geração[1].
Assim, o desafio de coibir a inadimplência e prevenir danos patrimoniais ao credor através do desenvolvimento de mecanismos e institutos jurídicos continua sendo o aspecto mais difícil do direito das obrigações. A reflexão aqui proposta é uma tímida contribuição ao reconhecimento das dificuldades práticas de cumprimento da promessa do Direito em bem proteger o credor, especialmente aquele de boa-fé.
1 A EVOLUÇÃO DO DIREITO OBRIGACIONAL EM TRÊS FASES HISTÓRICAS
Não se há de olvidar que a civilização romana foi grande responsável pela organização do moderno mundo ocidental, como hoje se conhece. O povo romano desenvolveu uma sociedade extremamente organizada, orientada por normas e regras que serviram de fonte para diversos países europeus, ainda muitos séculos após a queda do império romano, graças à codificação realizada sob o Império de Justiniano, no século VI a. C. O próprio sistema civilístico brasileiro é oriundo do direito romano-germânico, o que explica o retorno, sempre salutar, ao estudo do direito romano para compreensão de institutos hoje desenvolvidos pelo legado daquele povo. É o que se pode afirmar do estudo das obrigações.
A referência de que no direito romano não havia o uso da expressão obrigação como se conhece hoje é usual:
“o equivalente histórico teria sido a figura do nexum (espécie de empréstimo), que conferia ao credor o poder de exigir do devedor o cumprimento de determinada prestação, sob pena de responder com seu próprio corpo, podendo ser reduzido, inclusive, à condição de escravo” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 40).
Nas Institutas de Justiniano, a obrigação é um vínculo jurídico pelo qual o devedor fica compelido pela necessidade de pagar ao credor qualquer coisa, segundo os direitos da cidade romana (DINIZ, 2007, p. 27). Neste sentido, a interpretação que dada originou a reparação de danos pelo sistema da reponsabilização pessoal do devedor, podendo o credor ter direito sobre aquele, sobre seu corpo ou até dispor de sua vida. A correção dessas ideias se deu com Paulo, quando defendeu que “a substância da obrigação não consiste em fazer nosso um corpo qualquer, ou nossa uma servidão, mas em levar em relação a nós a dar, fazer ou prestar qualquer coisa” (DINIZ, 2007, p. 27-28).
Considerando a obrigação como um dever jurídico primário e a responsabilidade como um dever jurídico secundário, embora acidental, o aspecto dual do instituto leva ao corolário lógico do seu estudo combinado:
“Traçada, em síntese, é esta, pois, a evolução da responsabilidade civil no direito romano: da vingança privada ao princípio de que a ninguém é lícito fazer justiça pelas próprias mãos, à medida que se afirma a autoridade do Estado; da primitiva assimilação da pena com a reparação, para a distinção entre responsabilidade civil e responsabilidade penal, por insinuação do elemento subjetivo da culpa, quando se entremostra o princípio nulla poena sine lege. Sem dúvida, fora dos casos expressos, subsistia na indenização o caráter de pena. Mas os textos autorizadores das ações de responsabilidade se multiplicaram, a tal ponto que, no último estágio do direito romano, contemplavam, não só os danos materiais, como também os próprios danos morais”. (DIAS, 2006, p. 29-30).
O modelo estabelecido pelos romanos atravessou séculos, tendo sido aprimorado com o passar do tempo. O deslocamento da noção de responsabilidade pessoal para o patrimônio foi uma consequência econômica de reparação, desenvolvida sobretudo no direito moderno. Na vigência do Estado Moderno, sobretudo com as grandes codificações, como a monumental obra francesa, conhecida como o Código de Napoleão, datado de 1804, a reparação por danos recaía sobre o patrimônio do devedor: “os bens do devedor são a garantia comum de seus credores” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 41). Além disso, os danos que, muito embora não gerassem um prejuízo material, visível e palpável, deveriam ser coibidos pela lei; assim, “a actio doli exigia a culpa caracterizada. No direito francês evoluído, a reparação independe da gravidade da culpa do responsável” (DIAS, 2006, p. 30).
No Brasil, como em outros países do mundo ocidental, por volta do último quartel do século XX, houve uma verdadeira revolução no pensamento jurídico-ideológico, que impulsionou intensa transformação na criação e aplicação de institutos jurídicos, especialmente no direito das obrigações, com o estabelecimento dos paradigmas da solidariedade social e da dignidade da pessoa humana (FACCHIN, apud LOBO, 2005, p. 3), o que levou Paulo Lobo a afirmar: “a ideologia do social, traduzida em valores de justiça social ou de solidariedade, passou a dominar o cenário constitucional do século XX” (LOBO, 2005, p. 5). Esse fenômeno atingiu ainda mais profundamente a figura do contrato, apontado como a maior fonte do direito obrigacional do mundo moderno, senão em importância, certamente em números, haja vista o capitalismo reinante na sociedade de consumo, que se realiza no ter, através das mais variadas formas de contratação.
Essa constatação foi também percebida pelo jurista alemão Franz Wieacker, que apontou três características básicas da mudança do individualismo liberal para o Estado social, estabelecida nos moldes da relativização dos direitos privados pela função social; da vinculação ético-social de tais direitos; e do recuo do formalismo do sistema do direito privado clássico do século XIX (apud LOBO, 2005, p. 6).
Assim, deu-se a regulamentação do contrato como meio de circulação de bens e serviços, constituição, manutenção ou extinção de direitos, nos limites de suas respectivas funções sociais. Sobre o tema, afirmam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho: “Para nós, a função social do contrato é, antes de tudo, um princípio jurídico de conteúdo indeterminado, que se compreende na medida em que lhe reconhecemos o precípuo efeito de impor limites à liberdade de contratar, em prol do bem comum.” (2008, p. 49).
Neste mesmo sentido, já havia Orlando Gomes se pronunciado na década de oitenta do século anterior:
“O fenômeno da contratação passa por uma crise que causou a modificação da função do contrato: deixou de ser mero instrumento do poder de autodeterminação privada, para se tornar um instrumento que deve realizar também interesses da coletividade. Numa palavra: o contrato passa a ter função social.” (apud GOMES, 2008, p. 49).
Vê-se que a preocupação do Direito atual com relação ao direito contratual diz respeito aos limites de seu conteúdo, quanto ao cumprimento da sua função social, em um primeiro momento, aliado ainda à existência e manutenção da equivalência material e a presença da boa-fé objetiva. Estes os pilares da moderna doutrina contratual.
Entende-se equivalência material como o princípio que se desenvolve em dois aspectos distintos: o subjetivo e o objetivo.
O aspecto subjetivo leva em conta a identificação do poder contratual dominante das partes e a presunção legal de vulnerabilidade. A lei presume juridicamente vulneráveis o trabalhador, o inquilino, o consumidor, o aderente de contrato de adesão. Essa presunção é absoluta, pois não pode ser afastada pela apreciação do caso concreto. O aspecto objetivo considera o real desequilíbrio de direitos e deveres contratuais que pode estar presente na celebração do contrato ou na eventual mudança do equilíbrio em virtude das circunstâncias supervenientes que levem à onerosidade excessiva para uma das partes. (LOBO, 2007, p. 94).
Trata-se, portanto, a equivalência material, de evitar a excessiva onerosidade que fundamentaria enriquecimento sem causa, no mais das vezes dano origem à resolução do contrato por inadimplência voluntária, por absoluta impossibilidade real de prestação. Já o princípio da boa-fé objetiva tem fundamento ligeiramente diverso:
“O princípio da boa-fé objetiva exige que as partes se comportem de forma correta não só durante as tratativas, como também durante a formação e o cumprimento do contrato. Guarda relação com o princípio de direito segundo o qual ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. Recomenda ao juiz que presuma a boa-fé, devendo a má-fé, ao contrário, ser provada por quem a alega. Deve este, ao julgar demanda na qual se discuta a relação contratual, dar por pressuposta a boa-fé objetiva, que impõe ao contratante um padrão de conduta, de agir com retidão, ou seja, com probidade, honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum, atendidas as peculiaridades dos usos e costumes do lugar”. (GONÇALVES, 2010, p. 54).
Esta tríade principiológica esteia a moderna estruturação do direito contratual, todavia é paradoxal que, apesar de todo o complexo mecanismo desenvolvido, os prejuízos que emanam da inadimplência cresçam junto com o desenvolvimento desses institutos. Isso porque a satisfação do crédito depende, no mais das vezes, da vontade do devedor em adimplir a obrigação.
2 O VÍNCULO JURÍDICO OBRIGACIONAL E O DEVER DE PRESTAÇÃO
Classicamente, o vínculo jurídico é tido como “o dever primário do sujeito passivo de satisfazer a prestação e o correlato direito do credor de exigir judicialmente o seu cumprimento, investindo contra o patrimônio do devedor, visto que o mesmo fato gerador do débito produz a responsabilidade” (DINIZ, 2007, p. 38). É o conceito dual de vínculo jurídico como debitum e obligatio.
Diante disto,
“o poder atribuído ao credor de exigir judicialmente o cumprimento da prestação confere ao vínculo obrigacional o atributo da coercibilidade, distinguindo-se dos vínculos puramente morais, isto é, dos meros deveres de consciência, cujo inadimplemento é incapaz de gerar qualquer coação jurídica” (BARROS, 2007, p. 28).
Não obstante a ideia jurídica de coerção, antes de tudo a vinculação que surge entre credor e devedor é também ética e moral, no sentido subjetivo e íntimo de cada cidadão de fazer o que é correto; de cumprir os ditames da retidão pela satisfação de fazer o bem. O cumprimento dos deveres obrigacionais deve ser, precipuamente, um dever moral de conduta. Esta conduta, valorada juridicamente, se traduz hodiernamente pelo dever de lealdade no direito contratual, conclamado pelo princípio da boa-fé objetiva, como já visto, mas também traduzido pelos deveres de prestar informações corretas, com a garantia de compreensão dos efeitos das obrigações; de manter o sigilo sobre dados da obrigação contraída, quando o for de sua natureza; de não agir contra os atos próprios (LOBO, 2007, p. 81-100).
Rechaçando o conceito clássico de vínculo jurídico obrigacional, Paulo Lobo defende a relação jurídica como processo, movimentada “na direção indicada por seu fim, que é a satisfação do crédito, pelo adimplemento ou outros modos de sua extinção. É ele que dá coerência e sentido ao conjunto de elementos que constituem a obrigação” (LOBO, 2007, p. 64-65). E completa, ainda, o mesmo autor: “O inadimplemento frustra o seu fim, redirecionando o curso processual para obtê-lo de outro modo, ou compensar a demora, incorporando-lhe acessórios, como juros moratórios e cláusula penal” (LOBO, 2007, p. 64-65). Ao concordar com a ideia de obrigação como processo, na esteira de juristas como Karl Larenz e Clóvis do Couto e Silva, aponta o rompimento da ideia tradicional de vínculo, legada pelos romanos, em razão desta expressar uma situação estática incompatível com o dinamismo atual do fenômeno obrigacional (COUTO E SILVA, apud LOBO, 2007, p. 63). Assim, neste sentido, Paulo Lobo sistematiza a obrigação como processo em cinco fases: a pré-negocial, a formação da obrigação, o desenvolvimento da obrigação, o adimplemento ou equivalente e a pós-negocial (2007, p. 64). Presentes em todas elas devem estar os deveres de probidade e lealdade, reveladores da boa-fé objetiva, como preconiza o Código Civil de 2002, em seu art. 422.
De outra parte, o conceito romano de sujeição do devedor ao credor, por ocasião da constituição da obrigação, está estreitamente ligado à sua responsabilização pelo inadimplemento voluntário, permitindo a execução forçada por meio da ideia coercitiva do vínculo jurídico. Sob o viés da obrigação como processo, essa noção de sujeição dá lugar ao dever de cooperação, referido por Paulo Lobo como um dever geral de conduta, não apenas como efeito secundário de deveres acessórios decorrentes da obrigação: “dever geral de conduta que transcende a prestação devida para determinar a obrigação como um todo” (LOBO, 2007, p. 103). Assim, no entendimento do mesmo autor:
“O dever de cooperação resulta em questionamento da estrutura da obrigação, uma vez que, sem alterar a relação de crédito e débito, impõe prestações ao credor enquanto tal. Assim, há dever de cooperação tanto do credor quanto do devedor, para o fim comum. Há prestações positivas, no sentido de agirem os participantes de modo solidário para a consecução do fim obrigacional, e há prestações negativas, de abstenção de atos que dificultem ou impeçam esse fim.” (LOBO, 2007, p. 103).
Esse é um pensamento que inspira profundo respeito e, em que pese a denominação de dever, revelando como tal uma imposição, não afasta, todavia, a ideia de cooperação como colaboração de todos em busca de um fim comum. Parece mesmo que o problema da prestação não está apenas no modelo de sujeição do devedor, mas no fato desse mesmo sujeito obrigado adimplir voluntariamente a sua prestação ou não. Isso fica ainda mais claro diante do sistema patrimonial de responsabilização, que prevê a perda de bens do inadimplente como consequência fatal de sua impontualidade.
Deve-se notar que quanto mais afastada a ideia de dever que une devedor a credor, diante do vínculo teleológico constituído pela obrigação assumida, mais próxima ela está de uma aparente relativização de deveres, na medida em que insere desde já a obrigação como um processo que depende da cooperação dos sujeitos. Nessa esteira de pensamento, poder-se-ia chegar a uma falsa ideia de fragmentação do dever de prestação, como se houvesse uma escolha por parte do devedor em cumprir ou não a sua conduta, sem que isso resultasse em qualquer consequência. Não sem razão os bons doutrinadores apontam as diferenças entre dever, obrigação e estado de sujeição, como indicado a seguir:
“Em sentido mais estrito, situar-se-á a ideia de obrigação, referindo-se apenas ao dever oriundo à relação jurídica creditória (pessoal, obrigacional). Mas não apenas isto. Na obrigação, em correspondência a este dever jurídico de prestar (do devedor), estará o direito subjetivo à prestação (do credor), direito este que, se violado – se ocorrer a inadimplência por parte do devedor – , admitirá, ao seu titular (o credor), buscar no patrimônio do responsável pela inexecução (o devedor) o necessário à satisfação compulsória do seu crédito, ou à reparação do dano causado, se este for o caso.” (HIRONAKA, apud TARTUCE, 2007, p. 36).
Para Francisco Amaral, tal direito do credor é um direito potestativo, “poder que a pessoa tem de influir na esfera jurídica de outrem, sem que este possa fazer algo que não se sujeitar” (apud TARTUCE, 2007, p. 38). Assim,
“o estado de sujeição constitui um poder jurídico do titular do direito (por isso é denominado potestativo), não havendo correspondência a qualquer outro dever. Há apenas uma sujeição inasfatável, não havendo a possibilidade de o direito potestativo ser violado. Pode-se ainda afirmar que o estado de sujeição traz sem eu conteúdo uma subordinação, contra a qual não se pode insurgir ou manifestar discordância, tendo em vista um pré-estabelecimento anterior, não havendo qualquer sanção.” (TARTUCE, 2007, p. 39).
É verdade que existem obrigações inexigíveis absolutamente, como as obrigações morais (dívidas prescritas, obrigações constituídas com objetos ilícitos, por exemplo) e há outras que na pragmática jurídica também a estas se assemelham, como as obrigações de fazer, pois se o sujeito obrigado se recusar à prática do ato que assumira como prestação, em muitos casos não poderá jamais o julgador obrigar a tal cumprimento, resultando ao final na extinção da obrigação mediante o pagamento das perdas e danos. Cite-se como exemplo o contrato em que “A” se obriga perante “B” a pintar uma parede; se “A” se recusa ao cumprimento, “B” poderá mover contra aquele ação de obrigação de fazer com pedido de astreintes, uma multa diária até o efetivo cumprimento da tarefa. Ao fim, insistindo “A” em não realizar o feito, converter-se-á a prestação em pecúnia, uma indenização pelos prejuízos experimentados por “B”. Diante disto, embora possa o credor pleitear indenização, nada se pode fazer para exigir o cumprimento efetivo da prestação. E o mais grave nisso é quando o devedor, na hipótese, “A”, sabendo ser despido de patrimônio, recusa-se ao cumprimento da prestação, levando o credor ao processo indenizatório, no qual ficará o mesmo sem ressarcimento, diante da ausência de bens para satisfação do débito.
O elemento acidental da responsabilização se dá apenas diante do inadimplemento voluntário do devedor, porém nem mesmo isto é uma garantia efetiva para o credor. Mais do que nunca, é preciso contar com a boa-fé dos sujeitos contraentes.
2.1 RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL DO DEVEDOR
A noção de responsabilidade advém da própria ideia de obrigação, contendo a palavra “a raiz latina spondeo, fórmula conhecida, pela qual se ligava solenemente o devedor, nos contratos verbais do direito romano” (DIAS, 2006, p.4). (grifos do autor). Neste sentido, “a violação de um dever jurídico configura o ilícito, que, quase sempre, acarreta dano para outrem, gerando um novo dever jurídico, qual seja, o de reparar o dano” (CAVALIERI FIHO, 2010, p. 2). Assim, para ambos os autores a responsabilidade nada mais seria do que o dever secundário de reparação que decorre da não observância do dever primário de cumprir a prestação da obrigação.
Entretanto, a fórmula da responsabilização jurídica não nasceu assim; seu fundamento é moral, porque era moral a própria responsabilidade nos primórdios da civilização. Que o diga José de Aguiar Dias:
“Como a princípio fizemos notar, os diferentes planos em que se desenvolve a atividade do homem, inclusive a simples atividade da consciência, é que caracterizam os apectos da responsabilidade. Todavia, uma visão de conjunto reduz a dois esses aspectos: o jurídico e o moral.
Assinalar essa distinção não quer dizer que a inclusão de um fato em um dois dois títulos o exclua do âmbito do outro. Longe disso, a responsabilidade pode resultar da violação, a um tempo, das normas, tanto morais, como jurídicas, isto é, o fato em que se concretiza a infração participa de caráter múltiplo, podendo ser, por exemplo, proibido pela lei moral, religiosa, de costumes ou pelo direito. Isto põe de manifesto que não há separação estanque entre as duas disciplinas. Seria infundado sustentar uma teoria do direito estranha à moral. Entretanto, é evidente que o domínio da moral é muito mais amplo que o do direito, a este escapando muitos problemas subordinados àquele, porque a finalidade da regra jurídica se esgota com manter a paz social, e esta só é atingida quando a violação se traduz em prejuízo”. (DIAS, 2010, p. 7-8).
Em que pese o descrédito atual na responsabilização moral, pelo enfraquecimento de seu conteúdo, suplantado pela responsabilização jurídica, que cuida da reparação como corolário da imputação, não há como se negar que a sociedade contemporânea carece de valores morais como paradigmas de comportamento, no intuito de resgatar esse fundamento mesmo do direito. Agir com retidão, fazer o que é correto, estabelecer códigos de conduta decorrentes do neminem laedere mais por convicção do que por imposição.
Embora romântica a ideia, ela não deve ser abandonada em meio às complexas operações jurídicas do direito pós-positivista; muito pelo contrário, o peso das normas principiológicas dentro de um sistema jurídico como o que se apresenta no país o confirma. É paradoxal, portanto, esse abandono da moral em relação ao direito.
Preocupados, então, com os prejuízos causados por condutas danosas, os estudiosos do direito privilegiaram a noção mais restrita da responsabilidade, desenvolvendo mecanismos de reparação, através de sistemas de punição ou de pedagogia, conforme os estágios de civilização das várias sociedades que atravessaram os séculos, desde o direito romano.
Como visto, tendo sido ultrapassada a fase em que o devedor respondia pessoalmente (no sentido estrito da palavra “pessoa”), quando poderia vir a ser retalhado, morto, vendido como escravo ou preso, insere-se como garantia do cumprimento efetivo da obrigação a responsabilização patrimonial do inadimplente, na medida em que seus bens poderiam ser confiscados pelo credor para venda em hasta pública, no intuito de quitar o débito pendente. Tal sistema de responsabilização persiste nos dias atuais, como modelo civilizado de compensação creditícia.
No direito brasileiro, tal está regulamentado no art. 391 do Código Civil de 2002, que prevê respondam todos os bens do devedor, no caso de inadimplemento voluntário da obrigação. Além das excludentes, que decorrem do inadimplemento involuntário, como caso fortuito, força maior, que excluem a responsabilidade do impontual, também alguns inadimplementos voluntários a estes se assemelham, como a teoria da imprevisão, a exceção do contrato não cumprido, a exceção do contrato parcialmente não cumprido, em que tal descumprimento obrigacional é voluntário, porém justificado em lei, pela conduta do outro contratante.
Situação complicada ainda a que decorre de devedores cujo patrimônio se resumem a bens impenhoráveis, como aqueles relacionados no art. 649 do Código de Processo Civil brasileiro, ou o bem de família, nos termos da Lei nº 8.009/90 e do arts. 1711 e seguintes do Código Civil de 2002. Nestes casos, ficam os credores frustrados em suas buscas pela satisfação do crédito, irremediavelmente.
Além disso, não se pode esquecer das fraudes cometidas pelos devedores, no intuito de frustarem a execução por parte de seus credores. Gladston Mamede, analisando o fato sob a ótica das fraudes cometidas na partilha de bens por ocasião da ruptura do casamento mediante o uso de empresas fantasmas, apresenta uma situação muito grave que vem ocorrendo nos últimos tempos:
“Em sentido próprio, a expressão offshore company, ou simplesmente offshore, traduz uma sociedade que seja constituída no exterior. O mercado, contudo, utiliza a expressão para referir-se especificamente às sociedades que são constituídas em determinados locais no exterior, com regime fiscal benéfico (ditos paraísos fiscais), com o objetivo de controlar ou participar das atividades negociais no país. Para além dos aspectos fiscais de tais operações, impertinentes a este estudo, esses ambientes com regime fiscal mais benéfico são utilizados para fraudes societárias, certo que garantem liberdade para o trânsito de capitais, incluindo o câmbio entre moedas, além de mecanismos de proteção à identidade de investidores, incluindo titulares de contas bancárias, quotas em fundos de investimento e, até, sócios e administradores de sociedades negociais”. (MAMEDE; MAMEDE, 2010, p. 54).
Percebe-se aí a fragilidade com que se coloca o credor diante do devedor, quando espera cooperação deste no adimplmento de obrigações assumidas, diante do sistema de responsabilidade pessoal e patrimonial adotados pelos sistemas jurídicos modernos.
Ao atribuir responsabilidade patrimonial ao devedor pela quitação de seus débitos, deve a lei, consequentemente, garantir o credor deste patrimônio, punindo com rigor atos do devedor que venham a colocar em risco esta segurança creditícia, bem como desenvolvendo mecanismos de prevenção aos danos, como sugerido a seguir.
2.2 MECANISMOS DE PREVENÇÃO E REPRESSÃO AO INADIMPLEMENTO VOLUNTÁRIO
Historicamente, o homem sempre necessitou relacionar-se, conviver em sociedade, é, por natureza, um ser social. Dessas várias relações estabelecidas no cotidiano, um sem-número delas está estruturada nos moldes regrados pelo Direito ao longo dos milênios, configurando as obrigações. Assim, é possível afirmar que sempre houve uma preocupação com o cumprimento dessas relações, com aplicação de instrumentos normativos que pretendiam organizar a constituição, o desenvolvimento e a extinção de obrigações, ao lado de mecanismo garantidores do cumprimento efetivo das prestações.
Não é novidade, portanto, o problema da inadimplência. Todavia, novos são os institutos criados pela ciência jurídica para prevenir e reprimir esta inadimplência, conforme foram se desenvolvendo mais largamente os estudos da responsabilidade civil e os meios de efetivação de seus dispositivos.
Foi assim com a teoria da responsabilidade civil subjetiva (que obrigava a compensação e a reparação do dano causado por alguém em razão de condutas culposas), evoluída para os casos de inversão do ônus da prova (em sentido geral, o ônus da prova é daquele que o alega), seguida pela teoria da responsabilidade civil objetiva, cujo fundamento é o risco de eventualmente determinada atividade causar um dano, mesmo diante do cumprimento das regras de seurança. Essa evolução demonstra o grau de maturidade dos jus civilistas em tentar proteger a vítima, mas não parou por aí tal evolução. Mais recentemente, vem sendo desenvolvida a teoria da responsabilidade solidária, como bem a sistematizou no Brasil Anderson Schreiber:
“A solidariedade social consubstancia-se, sem dúvida alguma, em um dos principais vetores do direito contemporâneo. A influência dos ideais solidários e do reconhecimento do caráter normativo do princípio da solidariedade social, por toda parte difundido, provocou efeitos revolucionários em diversos setores do direito privado, temperando sua histórica orientação liberal e individualista. Também na responsabilidade civil, esta influência se fez sentir intensamente. Muito além da costumeira alusão às hipóteses legais de responsabilidade objetiva, a solidariedade social promoveu radical transformação na própria função atribuída a este ramo jurídico, especialmente por meio de uma gradativa conscientização de que o escopo fundamental da responsabilidade civil não deve ser a repressão a condutas negligentes, mas a reparação dos danos”. (2007, p. 212).
Vê-se que a preocupação da doutrina se desloca da culpa para o risco e deste para os danos, valorizando muito mais os prejuízos efetivamente sofridos pela vítima do que como eles foram causados, se por culpa de um agente ou se simplesmente decorreu de uma atividade potencialmente perigosa. Isso, de fato, altera o sistema de responsabilização, na medida em que outros sujeitos estarão relacionados como possíveis responsáveis pela reparação do dano. A respeito de quem deve responder pelos danos, responde o mesmo autor:
“Em outros termos: na esteira das correntes mais difusas do pensamento atual, as decisões judiciais têm sido cada vez mais influenciadas pela ideia de que todos somos culpados e de que todos causadores de todos os danos sofridos em sociedade – ideia de que, em última análise, caracteriza a própria filosofia social do século XX, e que se tem infiltrado na aplicação da responsabilidade civil, mas sem que o instituto tenha sido adaptado para perseguir o novo resultado”. (SCHREIBER, 2007, p. 223). (grifos do autor)
Certamente, muitos que ainda não ouviram falar de tal viés da teoria da responsabilidade civil, podem se surpreender com os resultados que podem vir a ser alcançados em razão da aplicação desta orientação, porém uma coisa é, sem sombra de dúvidas, correta: coaduna-se perfeitamente com o estado atual do direito privado, quanto à defesa de institutos de cunho social, que privilegiam o coletivo em detrimento do individual. É este o espírito da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002, as duas maiores leis que regulam todo o direito privado, sobretudo diante da interpretação civil-constitucional que se faz hoje de seus institutos jurídicos.
De toda sorte, não se pode dizer que a ideia é totalmente estranha ao sistema jurídico brasileiro, haja vista as disposições do Código Civil de 2002, que, ao tratar das obrigações do direito de família, notadamente as alimentares, institui responsabilidade solidária entre os vários parentes, indicados conforme suas classes na ordem sucessória. Assim, estabelece que na impossibilidade dos pais de prestarem alimentos a seus filhos, os avós são chamados a pagar, numa responsabilidade denominada no art. 1.696 de “extensiva”. Diria-se, então, subsidiária, com fundamento no princípio da solidariedade. Neste mesmo sentido, o art. 1.697 que atribui aos irmãos, bilaterais ou unilaterais, o dever de prestar de alimentos, na falta de ascendentes, podendo-se constituir então uma responsabilização até solidária, como extrai-se do art. 1.698, parte final: “sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide”.
Ainda, no caso do direito do consumidor. Os fornecedores são responsáveis por defeitos ou vícios de produtos ou serviços postos em circulação no mercado, seja por ocasião da fabricação ou da venda; quando chamados à responsabilidade, os ônus decorrentes desse encargo já terão sido repassados aos consumidores em geral, através dos preços praticados nos serviços ou produtos. A diluição de custos pela manutenção da atividade fornecedora é dividida entre todos.
Neste sentido, segue ainda mais profundamente Anderson Schreiber:
“O que se pretende ressaltar aqui é, na verdade, o crescente reconhecimento pela ordem jurídica de outros instrumentos, diversos da responsabilidade civil, que podem ser opostos aos danos injustos. Neste sentido, fala-se hoje, sobretudo, em prevenção e precaução de danos. Por prevenção entende a doutrina toda e qualquer medida destinada a evitar ou reduzir os prejuízos causados por uma atividade reconhecidamente perigosa, produtora de risco atual, enquanto o conceito de precaução estaria ligado à incerteza sobre a periculosidade mesma da coisa ou atividade, ou seja, ao evitar ou controlar um risco meramente potencial. Na mesma direção, fala-se, ainda mais recentemente, em risk management como técnica que, somada à responsabilidade civil, buscaria identificar os pontos de risco em cada estrutura organizacional e eliminá-los antes da produção de danos”. (2007, p. 216). (grifos do autor)
O uso de tais mecanismos se faz presente no país, embora ainda de forma tímida, como ocorre também com os seguros obrigatórios, que pretendem garantir o ressarcimento dos prejuízos sofridos pela vítima, na hipótese do próprio ofensor não o realizar. Também o uso voluntário de seguros de responsabilidade civil vem crescendo no mundo inteiro, diante das inúmeros hipóteses e situações que podem resultar em danos, que independem de culpa do sujeito, pela modernidade e complexidade dos aparatos tecnológicos que buscam atender os interesses da contemporaneidade, tanto nas relações jurídicas contratuais como nas extracontratuais.
A solidariedade social pode se efetivar através desses seguros, que dividem o peso da responsabilidade entre mais de um sujeito, não utilizando como base a restrição do vínculo devedor-credor, nos moldes tradicionais, ou da relação ofensor-ofendido, para facilitar e garantir o ressarcimento do dano. Interessa, pois, a reparação dos prejuízos: este é o foco a que se prende tal teoria.
2.2.1 A responsabilidade solidária e sua efetivação mediante os contratos de seguro
Cada vez mais, nas relações jurídicas contratuais e extracontratuais têm se recorrido ao contrato de seguro como garantidor do ressarcimento de danos. Não se pode pensar, nos dias atuais, de um indivíduo que adquira um automóvel e não proceda de pronto à contratação de seu seguro de danos, antes mesmo que o veículo seja retirado da concessionária. É um risco contratar um empréstimo elevado sem agregá-lo a um seguro de danos que possa cobrir as prestações, na hipótese do consumidor sofrer um acidente ou vir a falecer sem tê-lo ainda quitado. Não se pode mais exercer determinadas profissões liberais sem o risco de um processo por danos morais ou materiais por erro no exercício de uma tarefa, especialmente os engenheiros civis, os médicos, os advogados. No caso desses últimos, teme-se o famoso dano moral em razão da perda de uma chance de poder efetivar o direito do cliente pela perda de um prazo, por exemplo.
Neste cenário, o recurso dos seguros afigura-se imensamente atrativa. Contrata-se o seguro para se sentir seguro, mesmo que não se vise de imediato ao recebimento da indenização, que só ocorrerá por ocasião do sinistro. Assim, na teoria clássica civilista, o contrato de seguro é aleatório. Para os empresarialistas, o contrato de seguro é comutativo: a prestação se dá com o pagamento do prêmio e a contraprestação se dá pela tranquilidade experimentada pelo segurado de que, se algo ocorrer, a seguradora irá ressarcir seus prejuízos; assim, é a sensação de estar seguro que é o serviço prestado pela seguradora. A indenização é elemento acidental do contrato.
Seja o contrato aleatório ou comutativo, o que importa é que, uma vez segurado, a tranquilidade é certa. Assim, é uma garantia patrimonial a reparação de eventuais danos. Diante disto, os seguros de danos e de responsabilidade civil passam a ocupar posição de relevo no sistema de responsabilização social, como visto no item anterior.
Sabe-se que as fraudes não deixarão de ser cometidas por aqueles que fazem da inadimplência voluntária uma fonte de renda indireta, porém é certo que pela aplicação dos mecanismos apropriados, os prejuízos experimentados por suas vitimas poderão vir a ser minimizados ou até mesmo totalmente reparados.
3 Conclusões
A obrigação, tomada em seu conceito clássico, de conformidade com os elementos subjetivos, objetivos e teleológico (vínculo, elo de ligação), parece não ser, hoje, a melhor configuração de relação jurídica obrigacional, especialmente quando confrontada com o sistema de responsabilização civil. Em sua estrutura tradicional, a obrigação vincula credor a devedor, estabelecendo uma estreita ligação entre os sujeitos, que se obrigam a prestar o que foi pactuado ou determinado legalmente, um perante o outro. Todavia, diante da possibilidade do inadimplemento voluntário, o corolário da responsabilidade foi desenvolvido para assegurar a compensação dos danos experimentados pela vítima da inexecução, sem, contudo, garantir tal resultado.
Esse estado de coisas levou a doutrina juscivilista, desde a sistematização do direito obrigacional, no direito romano, a pensar e implantar mecanismos de prevenção e repressão de danos, sejam de ordem material ou moral. Assim, o sistema da responsabilidade pessoal deu lugar à responsabilização patrimonial, inicialmente baseada no estrito sentido da culpa, minimizada posteriormente pela inversão do ônus da prova. Tendo sido verificada a insuficiência dessa teoria nos casos em que a vítima não podia provar a culpa do ofensor, desenvolveu-se a teoria do risco, resultando numa responsabilização objetiva, independentemente da verificação de culpa.
Entretanto, ainda, os credores das compensações de danos restavam insatisfeitos, ora em razão da despatrimonialização involuntária, ora em razão da despatrimonialização voluntária, de seus devedores. Nesses casos, o crédito não era mesmo satisfeito. Diante disso, novamente a doutrina juscivilista foi conclamada a uma solução: a defesa da responsabilização social, dividindo o devedor a responsabilidade pelo pagamento do débito com outros sujeitos. Para compreender os novos contornos dessa responsabilidade, lançou-se mão do conceito de obrigação como processo, nos moldes do pensamento de Cláudio do Couto e Silva e Paulo Luiz Netto Lobo, rompendo a ideia romana clássica de obrigação como vínculo de ligação entre credor e devedor. Segundo este ponto de vista, a obrigação é uma reunião de atos concatenados, voltados para uma finalidade em comum: o cumprimento da prestação. Para tanto, credor e devedor estão sujeitos ao dever de cooperação mútua. O descumprimento de tal dever resulta em reparação, se houver danos.
É, pois, nesse esteio que se insere a responsabilidade social no âmbito das obrigações, sejam estas contratuais ou extracontratuais. Anderson Schreiber, em obra notável, já havia estabelecido a possibilidade de tal aplicação. Embora pareça novidade, já o sistema jurídico brasileiro vinha autorizando este mecanismo de compensação, inclusive por dispositivos legais, como a solidariedade social no direito de família, em especial, na questão alimentar; na seguridade social; nos seguros obrigatórios; na distribuição de riscos entre os sócios em razão das diversas formas de organização societária, só para citar alguns.
Não se há de olvidar que a responsabilidade jurídica é, antes de tudo, uma responsabilidade moral. Considerando o enfraquecimento gradativo de um sistema de valores morais pela suplantação de regras pré-estabelecidas que pretendem determinar condutas e comportamentos, a sociedade contemporânea vem permitindo relegar ao passado condutas espontâneas de cumprimento de obrigações, com fundamento tão-somente na retidão de tal conduta. Do que não se pode exigir, não se revela também o interesse de cumprir. As fraudes, verificadas em todas as camadas sociais, de menor ou maior grau, revelam índices alarmantes de inadimplência e impunidade, expostos, inclusive, em reportagens de jornal ou de televisão. A mídia nunca teve tantos dados para apontar, em assuntos geralmente tratados nos ambientes destinados ao estudo dos fatos econômicos. O mercado de consumo passou a ocupar lugar de destaque, nesse sistema capitalista atual. E o Estado necessitou intervir mais diretamente nas relações privadas, no intuito de coibir abusos e evitar crises econômicas que pudessem ameaçar a segurança de um estado democrático de direitos.
A ideia de um Estado social, vivido no Brasil especialmente a partir do final do século XX, embora ainda não de todo suficiente na efetividade das garantias oferecidas pela Constituição Federal de 1988, demonstra a vontade de defender a paz social, fim último do Direito. O Código Civil de 2002, ao inserir os princípios contratuais da função social, da boa fé objetiva e da equivalência material dos contratos, reforçou a ideologia jusfilosófica do Estado social, sobrepondo o interesse coletivo em detrimento dos interesses privados e justificando, com razão, a consolidação da responsabilização social como mecanismo de prevenção e reparação de danos.
Advogada. Professora Universitária das Faculdades Damas e Maurício de Nassau/PE. Especialista e Mestre em Direito Civil/UFPE
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