Resumo: Neste trabalho apreciaremos o conceito de cidadania, considerando a concepção consagrada na obra de T.H.Marshall “Cidadania, Classe Social e Status”[1] em cotejo com abordagens mais recentes, fundadas no refluxo teórico do republicanismo – que tem ganho terreno sobretudo na ciência política norte-americana – e sondaremos a pertinência dessa perspectiva para a compreensão da participação dos cidadãos na esfera política.
Palavras-chave: republicanismo, cidadania, democracia, participação, cultura política.
Abstract: In the present work we will appraise the concept of citizenship, considering the conception established and recognized in T. H. Marshall´s “Citizenship, Social Class and Status” in comparison with more recent approaches, based on the theoretical reflux of the Republicanism – which has been gaining ground, mostly in the North American Political Science – and will also ascertain the relevance of such perspective in the understanding of the participation of citizens in the political realm.
Key-words: republicanism; citizenship; democracy; participation; politic culture.
Sumário: I. Introdução; II. A Cidadania em Marshall; III. Cidadania além dos direitos, a ética republicana; IV. Participação-cidadã; V. Conclusão.
I. Introdução
Cidadania é um conceito volátil, cujo conteúdo se confunde amiúde com o da democracia. Os dois conceitos se interpenetram e dependem de tal maneira que podemos dizer que cidadania é índice da democracia e que não há democracia sem cidadãos. Por isso mesmo é correto afirmar que as reflexões sobre a cidadania, assim como sobre democracia podem ser – e geralmente são – feitas sem transbordar dos cânones hegemônicos de democracia e cidadania que são aqueles do estado liberal.
Como alternativa, gostaríamos de abandonar brevemente a cidadania como status em favor de uma visão vetorial – em construção, porém substancial – e em conseqüência de uma democracia igualmente dinâmica, baseada na maior participação popular possível que transcenda o modelo formal estritamente representativo. Não temos em mente advogar a caducidade do conceito de Marshall sobre a cidadania, pois em realidade sua análise é seminal, não tinha pretensão de universalidade e ainda é um paradigma indispensável para essa discussão.
O trabalho de Marshall veio a lume no contexto do Estado de Bem-estar Social, como distinção e afirmação dos elementos constitutivos da cidadania ou como salvaguarda de direitos civis, políticos e econômicos do cidadão em face do Estado e da liberdade do Mercado. Pode-se imputar erroneamente ao seu legado teórico, ao mesmo tempo, o mérito e a culpa por erigir os direitos a conteúdo único da cidadania por excelência, diminuindo a ênfase sobre o papel do cidadão enquanto membro de uma coletividade e com responsabilidades ou obrigações – inclusive a obrigação de participação ativa – para com a sociedade.
“Cidadania tornou-se a categoria de escolha normativa, invocada por críticos do status quo—tanto da esquerda quanto da direita—como um meio de exigir mais do Estado, ou menos, para promover igualdade, justiça e participação na sociedade civil, na economia ou na política”[2].
Mas essa é, na realidade, não uma conseqüência de sua teoria[3] e sim um dos efeitos colaterais de um fenômeno muito anterior, a opção da modernidade pelo indivíduo – ou mais especificamente pelo individualismo – aspecto que se torna mais visível em confronto com o marxismo num primeiro momento e mais tarde com outras vertentes da teoria política como o comunitarismo, o republicanismo revisitado, as teses comunicacionais e radicais da democracia[4].
Embora os conceitos de Marshall estejam a serviço de uma interpretação científica da sociedade e para a elucidação dos entraves de seu tempo – o que ele anuncia textualmente[5] – é preciso, hoje, reconhecer a dificuldade da conceituação rígida de cidadania em conciliar satisfatoriamente os dois elementos – geralmente vistos como conflituosos – que são os princípios basilares do Estado democrático: igualdade e liberdade.
“Estes são, portanto, os princípios fundamentais da teoria liberal clássica: O primado da liberdade individual entendida principalmente como a liberdade contra a interferência do Estado nos projetos e no desenvolvimento pessoal; uma ampla proteção da liberdade de inquérito, discurso, e de culto; uma profunda desconfiança do poder estatal sobre os indivíduos; a restrição da coerção estatal nas áreas de atividades onde a conduta de um indivíduo afeta outros; e ainda uma forte (até que se prove o contrário) presunção em favor da vida privada, dos mercados e outras formas de disposições privadas. Nos últimos 150 anos uma infinidade de teóricos políticos, sociais e econômicos têm construído sobre os alicerces estabelecidos por Locke e Mill e, ao mesmo tempo em que os trataram superficialmente, desafiaram ou virtualmente refinaram todas as suas reivindicações”[6].
Assim, veremos que, não obstante a relevância do trabalho de Marshall, as gerações ou dimensões de direitos que se tornaram a cidadania por antonomásia, podem ser enriquecidas ou temperadas com outros conteúdos.
II. A cidadania em Marshall
Marshall dividiu a cidadania em três elementos: o civil, o político e o social. É desta divisão básica que surge o tratamento da cidadania ao longo da segunda metade do século XX, segundo as gerações ou dimensões de direitos da cidadania.
Marshall, que não raro é mencionado como o estudioso que pôs a cidadania “no mapa” das ciências sociais, em seus primeiros seminários e palestras sobre “Cidadania e Classe Social” em 1949 formulou a tese dos três elementos principais para a cidadania – direitos civis, políticos e sociais. Tal distinção envolve, além de direitos, três conjuntos de instituições nas sociedades modernas (sistema jurídico, sistema democrático de governo e sistema de seguridade social) desenvolvidas a serviço da cidadania que assim foi ampliada e intensificada, cumulando a dimensão civil, posteriormente a dimensão política e, finalmente, a dimensão social, sempre lembrando que tal percurso corresponde ao desenvolvimento histórico britânico.
Partindo da concepção de Marshalliana, a cidadania é constituída por um feixe de direitos conquistados em uma dada ordem cronológica e de desenvolvimento histórico que se passou a reconhecer como as gerações de direitos.[7] O primeiro desses elementos constitutivos – ou primeira geração – é aquele cuja conquista se deu na Inglaterra no século XVIII, correspondente à concepção liberal clássica; são os direitos civis que englobam tanto as liberdades individuais, direito de ir e vir, direito à vida e à segurança, igualdade perante a lei e direito à propriedade. Figuram também nessa primeira geração os direitos políticos que contemplam o direito ao sufrágio universal, participação política, direito de associar-se e de se sindicalizar, conquistas do Século XIX, na Grã-Bretanha.
A segunda geração de direitos diz respeito àqueles que foram conquistados pelas lutas operárias e sindicais no século XX, os direitos econômicos ou sociais. Aí se incluem os direitos relacionados ao bem-estar social: trabalho, aposentadoria, seguro-desemprego, educação (com preponderância para este, segundo o autor), saúde etc já numa perspectiva material, como de obrigatória provisão pelo Estado.
A terceira geração de direitos diz respeito, não mais ao indivíduo, mas à coletividade, ao povo, à humanidade ou à nação. São os direitos difusos ou coletivos. Direito ao meio-ambiente, à paz, autodeterminação dos povos, direitos do consumidor etc. Estariam, ainda, protegidos nesse espectro os interesses das mulheres, idosos, da criança e adolescente e minorias étnicas.
Sobre a ordem evolutiva empregada em sua abordagem, Marshall afirma que os países que não a seguiram (v.g. Rússia, Alemanha e Áustria) têm maiores dificuldades no desenvolvimento dos demais elementos. Ainda que essa rigidez seja objeto de críticas, é plausível considerar que, quando o percurso de um país inicia pelos direitos sociais ou de participação haverá problemas para garantir os direitos civis e desenvolver os direitos políticos. Para tal consideração é preciso simplificar um pouco os processos de desenvolvimento da sociedade e ignorar a interpenetração que as distintas dimensões de direitos tem umas com as outras.
José Murilo de Carvalho cita esse “descompasso” como sendo o caso do Brasil entre outros países e atribui em parte a isso a dificuldade de consolidação dos direitos de cidadania de diferentes gerações, além das cíclicas voltas a estágios inferiores no que tange às garantias fundamentais.
“O surgimento seqüencial dos direitos sugere que a própria idéia de direitos, e, portanto, a própria cidadania, é um fenômeno histórico. O ponto de chegada, o ideal da cidadania plena, pode ser semelhante, pelo menos na tradição ocidental dentro da qual nos movemos. Mas os caminhos são distintos e nem sempre seguem linha reta… O percurso inglês foi um entre outros. A França, Alemanha, os Estados Unidos, cada país seguiu seu próprio caminho. O Brasil não é exceção. Aqui não se aplica o modelo inglês. Ele nos serve apenas para comparar por contraste… Como havia lógica na seqüência inglesa, uma alteração dessa lógica afeta a natureza da Cidadania. Quando falamos de um cidadão inglês ou norte-americano, e de um cidadão brasileiro, não estamos falando exatamente da mesma coisa”.[8]
A política, sob o prisma de Marshall, cuida de atividades mais diretamente relacionadas ao legítimo monopólio do Estado sobre a violência e ao fazê-lo coloca a cidadania dentro de um sistema social como uma proteção contra o Mercado e os diversos grupos culturalmente dominantes.
Se é possível enxergar aí apenas a sucessão de novas teorias sociais, o que está em jogo é mais importante. As idéias formam as fundações dos regimes políticos. A abordagem de Marshall – com seus direitos universalistas mais sensíveis às diferenças – foi útil para o avanço de direitos e proteção de cidadãos contra abusos da sociedade civil.
No futuro, o desafio para as teorias da cidadania não deverá ser uma escolha entre extremos, mas uma combinação complexa de diferentes abordagens que funcionem em um sistema de direitos legítimos.
III. Cidadania além dos direitos – a ética republicana
O republicanismo de que trata este texto não se refere a uma forma de governo ou organização do Estado, tampouco a algum partido político, mas a uma tradição política que vem desde o renascimento e que tem hoje nos meios acadêmicos um certo influxo.
Se o republicanismo representa, como veremos, diferenças marcantes em relação ao modelo liberal, não é menor a sua diferença no que tange à relação cidadão-Estado. Esta é a parte que nos interessa examinar: o que significa a cidadania dentro do republicanismo, no que se distancia e como pode contribuir para as concepções consagradas e hegemônicas de cidadania?
A cidadania como um status, um atributo ou qualidade do membro da sociedade é uma noção amparada na lei e, nesse sentido, poder-se-ia incorrer no erro de considerá-la algo dado e inquestionável e mesmo de ignorar todas as lutas que implicaram a conquista destes “atributos”.
Hoje há maior cuidado entre os estudiosos em considerar a cidadania como um processo contínuo de conquistas, adequações a novos valores e acomodação das demandas que constantemente surgem no seio da sociedade, de modo que defini-la rigorosamente como um status já não é satisfatório.
Chama a atenção que ao mesmo tempo em que se generaliza o debate em torno da cidadania, como fórmula capaz de conter todos os anseios de emancipação da sociedade, surge também maior interesse nos meios acadêmicos pelo republicanismo, ou antes, pelos valores típicos do republicanismo clássico, gerando uma tendência que em alguns países é reconhecida como um neo-republicanismo ou um republicanismo revisitado.[9]
A palavra república, como bem sabemos, tem origem no latim res publica (coisa pública) e, embora tenha origens na antiguidade romana, tornou-se durante a idade média e no renascimento o nome de um tipo característico de ente político ao qual seria impróprio chamar de Estado, visto que essa expressão, por sua vez, só se popularizou mais tarde.
Enquanto no Estado como o concebemos desde suas raízes modernas, aquele que governa, governa não apenas a coisa pública, mas também a todos os membros daquele Estado. Na República a idéia é que todos se governam a si mesmos e a coisa pública de forma transparente e participativa, idéia que podemos perceber que se dissolveu nas distintas teorias do contrato social que variam quanto ao maior ou menor grau de abdicação do seu arbítrio individual em favor de preservar a mesma individualidade frente ao Estado, algo inconcebível na idéia essencial de republicanismo.
A distinção entre esses modelos de Estado tem implicações bastante relevantes para a cidadania como veremos.
O Estado liberal privilegia a privacidade como forma de preservar direitos individuais. Negligencia, assim, o fomento de virtudes cívicas que podem levar o povo ao desempenho de tarefas como cidadãos num espírito mais cooperativo e solidário.
A República, em oposição, tem como elementos essenciais publicidade e autogoverno[9], afastando-se bastante dos cânones do estado moderno e liberal e do modelo representativo “a la Sièyes”. Essa importância dada ao autogoverno e à publicidade são parte do legado do republicanismo clássico e são a tônica do republicanismo atual.
Tais diferenças dizem respeito diretamente à questão da cidadania, pois no republicanismo o cidadão ou membro da comunidade política se define na vida pública, delineando e definindo suas capacidades na convivência com a coletividade e também com o conflito. Essas idéias remetem à concepção clássica greco-romana da relação intrínseca entre o civitas e cives ou polites e polis – cidadão e cidade – no dizer de Tucídides “andrés gar polis” ou “o homem é a cidade”.
Algo que chama a atenção é que numa república, segundo tal definição, os cidadãos não são governados por outros cidadãos, mas pela lei. Como é possível então sustentar essa afirmação e a essencialidade do autogoverno?
Bem, os negócios públicos requerem debate e conseqüentemente decisões. Isso exige procedimentos ou regras que digam quem pode falar, quando falar e como alcançar as decisões. Essa participação acentuada do cidadão na coisa pública depende da virtude cívica, ou seja, da civilidade – ou, ainda, do interesse corretamente entendido, segundo a expressão de Tocqueville[10] – que se reflete no respeito à vontade da coletividade e à consciência da interdependência dos cidadãos.
“Civilidade é a atitude individual de preocupação com o bem público, transmite a idéia de espírito público que se perdeu na sociedade de mercado. Aproxima-se do que Montesquieu chamou de virtude: amor à Republica e à Democracia. Civilidade, em suma, é a conduta de uma pessoa cuja autoconsciência individual está parcialmente sobredeterminada por sua autoconsciência coletiva, sendo os referentes desta última a sociedade como um todo e as instituições da sociedade civil. A sociedade civil é aqui concebida não apenas como mercado, mas como o espaço além da família e da localidade e aquém do Estado, significando ainda boas maneiras com os amigos e tolerância com os inimigos”.[11]
As decisões em tal contexto alcançariam a forma de regras promulgadas para guiar os membros desse espaço público. Essa é a essência da publicidade. Decorre daí a transparência na condução dos negócios e uma espécie de constrangimento a agir segundo o interesse público, de modo que impera a lei.
Há uma interessante interação entre as idéias aparentemente excludentes de soberania popular e império da lei. Por isso é possível falar de autogoverno e governo da lei ao mesmo tempo. Certo é que numa república todos estão sujeitos ao governo da lei, mas não se aceita sujeitar-se ao governo arbitrário de outros homens.[12]
O republicanismo está mais preocupado com a liberdade frente à dominação do que frente à interferência – esta última, uma preocupação do liberalismo.
Desse modo começamos a perceber no contexto do republicanismo que cidadania se identifica com um ethos ou modo de vida. A cidadania pode ser sim uma questão de conquistar direitos perante a lei e à sociedade, um status legal, imunidades e garantias, mas é mais. A cidadania real implica compromisso com o bem comum e participação ativa nos negócios públicos. Isso requer a mencionada virtude cívica.
Essa ética induz compreender que todo cidadão tem um ofício. Parece-lhe natural o exercício da participação em atividades cívicas como o Tribunal do Júri ou ser mesário nas eleições, por exemplo, do mesmo modo que é indispensável estar bem informado sobre a vida política.
A cidadania republicana tem duas dimensões ou funções: uma integrativa e uma educativa. A primeira diz respeito à consciência construída na interação dos atores públicos, no debate com vistas às tomadas de decisões. O cidadão é capaz de enxergar as conseqüências de decidir estritamente se valendo de seu papel de consumidor ou pai para o outro cidadão ou a coletividade enquanto trabalhadores ou compartilhadores do meio-ambiente, por exemplo.[13]
Isso parece um trunfo sensacional numa sociedade onde a extrema complexidade, a diferenciação do trabalho, o isolamento típico de grandes sociedades urbanas, são capazes de nos levar à compartimentação, a só ver o outro como funcionário do shopping, ou motorista na mesma via congestionada que nós. É uma perspectiva relacional que nos possibilita ser parte de e não estar à parte de.
A perspectiva meramente legal da cidadania nos coloca em termos categóricos como cidadãos ou não-cidadãos, especialmente enquanto titulares de direitos e garantias. Repare que a perspectiva de cidadania amparada em ser apenas destinatários de políticas públicas ou titulares de direitos induz a uma perspectiva consumista da política.
“Do ponto de vista republicano, a cidadania tem tanto uma dimensão ética como uma legal… A cidadania ‘real’ ou ‘verdadeira’ requer compromisso com o bem comum e participação ativa nos negócios públicos. Requer virtude cívica”.[14]
Numa perspectiva ética, há variações mais distantes dos extremos, levando-se em conta, inclusive, o papel pró-ativo deste cidadão. A participação é o principal meio de desenvolver as virtudes cívicas. Esta é a dimensão educativa. A educação formal também é primordial, pois desde cedo podemos ser educados de modo a tomar consciência dos nossos direitos e responsabilidades.
Já o isolamento, ainda que apenas moral, leva à incapacidade de se enxergar como membro da comunidade ou cidade, minando o civismo e fazendo com que o autogoverno seja impossível.
Outro desdobramento deste ethos republicano é não mais considerar a lei como força heterônoma ou um mal necessário. O respeito à lei não é apenas uma forma de evitar a sanção, mas um comportamento elementar do autogoverno. O cidadão sujeito à lei é livre porque cumpre a lei que ele mesmo criou.
De outro modo, à medida que o desrespeito à lei aumenta, todo o sistema se torna mais caro e ineficiente, exigindo mais leis e mais policiamento e fiscalização.
Se a teoria liberal da cidadania reduziu cidadania a mercado, Marshall em certa medida a recolocou no estado, de tal modo que o destino da cidadania parecia estar reduzido ao mercado ou ao estado. A tradição republicana com sua ênfase na sociedade civil como um domínio entre o estado e a economia representa uma tradição alternativa, que acentua a ordem de associação da vida cívica como a base da cidadania e da comunidade.
IV. Participação Cidadã
Reconhecer a virtude cívica como um componente imprescindível do tipo de comportamento ativo que se requer do cidadão na perspectiva republicana, pode suscitar certa desconfiança em relação à sociedade brasileira em razão da curta experiência no ambiente das instituições democráticas e dos traços de autoritarismo remanescentes na esfera estatal e na sociedade civil que se traduzem em uma cultura política não-democrática.[15]
Contudo, não se pode ignorar a presença de diversas formas de participação política no Brasil desde o início da transição democrática, geradas nos processos sociais ou facilitadas por mecanismos institucionais. A dimensão pedagógica é um efeito adicional aos ganhos imediatos dessas práticas,[16] pois as ações políticas tradicionais se enfraquecem e perdem terreno lenta e gradualmente enquanto as participativas se fortalecem.[17]
“Esse fortalecimento dá-se, por um lado, com a assunção de deveres e responsabilidades políticas específicas e, por outro, com a criação e exercício de direitos. Implica também o controle social do Estado e do mercado, segundo parâmetros definidos e negociados nos espaços públicos pelos diversos atores sociais e políticos”.[18]
Teixeira[19] também considera que a participação cidadã diferencia-se da chamada “participação social e comunitária”, em razão de não ter por objetivo apenas a prestação de serviços à comunidade e não se restringir à simples participação em grupos ou associações para defesa de interesses específicos ou expressão de identidades.
O objetivo de atender às tais necessidades específicas ou de expressar identidades pode estar presente, mas quer-se sempre algo mais com essa espécie de participação. Ela é um processo em construção reunindo as demandas coletivas e gerais, debatidas no espaço público e não reivindicadas nos gabinetes, combinando o uso de mecanismos institucionais com sociais, inventados no cotidiano das lutas e superando a clássica dicotomia entre representação e participação.[20]
“Ao referir a ‘participação cidadã’ tenta-se, portanto, contemplar dois elementos contraditórios presentes na atual dinâmica política. Primeiro o ‘fazer ou tomar parte’, no processo político-social, por indivíduos, grupos, organizações que expressam interesses, identidades, valores que poderiam se situar no campo do ´particular’, mas atuando num espaço de heterogeneidade, diversidade, pluralidade. O segundo, o elemento ‘cidadania’, no sentido cívico, enfatizando as dimensões de universalidade, generalidade, igualdade de direitos, responsabilidades e deveres. A dimensão cívica articula-se à idéia de deveres e responsabilidades, à propensão ao comportamento solidário, inclusive relativamente àqueles que, pelas condições econômico-sociais, encontram-se excluídos do exercício dos direitos, do ‘direito a ter direitos’”.[21]
V. Conclusão
A idéia de valorizar o tema da cidadania dentro de uma teoria renovada do republicanismo não é, ou não deve ser um esforço nostálgico de retorno a uma época perdida e dourada. Mesmo porque é muito pouco provável que tal época já tenha existido. A cidadania é uma construção histórica e a ação política e jurídica deve ter bem em conta a realidade social circundante e estar voltada para a materialização do bem comum.
Parece-nos que a grande virtude dessa abordagem é proporcionar uma prática que procura restituir a força – virtù – ao cidadão, iserindo-o em uma relação que não permite passividade e alienação da própria vontade. Isso, de certo modo, proporciona a restituição de conteúdos éticos à sociedade política e ao direito – elemento do qual o direito se esforçou por prescindir em favor da propalada Ciência Pura do Direito. A contrapartida da liberdade do cidadão é a consciência de interdependência entre os membros da sociedade humana.
A cidadania foi e continua sendo o indicador da democracia ao longo da história recente da humanidade. Podemos matizar seu conteúdo, traçar os percursos mais viáveis para a sua consecução, moderar seus imperativos conforme as distintas matrizes culturais. O certo é que a cidadania é um fenômeno dinâmico, e cuja plenitude é inatingível se considerada a constante transformação das necessidades e capacidades humanas. A cidadania mais plena é aquela capaz de conferir a dignidade mais substantiva e universal, segundo os pressupostos de uma época e lugar.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
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