Ressarcimento ao SUS: uma proposta de delimitação da fonte e do fundamento da obrigação constante do art. 32 da Lei nº 9.656/98

Resumo: O presente trabalho analisa a premissa sustentada por Carlos Mário da Silva Velloso de identificação do ressarcimento ao SUS do art. 32 da Lei nº 9.656/98 com uma pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa, fundada no art. 884 do Código Civil. A partir da distinção entre a fonte e o fundamento da obrigação, propõe-se a compreensão do instituto como uma obrigação ex lege ressarcitória, porém não confundível com o ressarcimento por enriquecimento sem causa.


Palavras-chave: Ressarcimento sus. Natureza. Distinção. Fonte. Fundamento.


Abstract: This study examines the premise supported by Carlos Mário da Silva Velloso about identification of SUS reimbursement from art. 32 of Law nº 9656/98, claiming for compensation for unjust enrichment, based on art. 884 of the Civil Code. Based on the distinction between the source and fundament of obligation, it is proposed to understand the institute as a legal obligation of reimbursement, but not confused with the compensation for unjust enrichment.


Keywords: Sus reimbursement. Nature. Distinction. Source. Fundament.


Sumário: 1. Introdução. 2. Distinção entre fonte e fundamento da obrigação. 3. A teoria das externalidades e a incidência do princípio democrático e da solidariedade. 4. A função regulatória e o ressarcimento ao SUS. 5. Da não fungibilidade entre o ressarcimento legal ao SUS e a pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa do art. 884 do Código Civil. 6. Da necessária imbricação entre o direito público e o privado para a classificação da obrigação. 7. Conclusões. 8. Referências.


1. Introdução


A Lei nº 9.656/98, instrumento de regulação da atividade de saúde suplementar, instituiu, em seu art. 32, a obrigação das operadoras de Planos de Saúde de ressarcimento dos serviços de atendimento à saúde, previstos nos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde – SUS. Desde sua instituição, o ressarcimento ao SUS é objeto de controvérsia doutrinária quanto à sua natureza jurídica. A discussão, de forma geral, situa-se entre enquadrar o instituto como uma obrigação tributária ou uma obrigação civil. A jurisprudência[1] tem rejeitado a tese da natureza tributária da obrigação, com respaldo na manifestação do Supremo Tribunal Federal, em juízo de medida cautelar, proferido nos autos da ADI-MC nº 1.931[2].  Nota-se uma maior acolhida do entendimento de que se tratar de uma obrigação ressarcitória, baseada na vedação ao enriquecimento sem causa.


Em consulta formulada por entidades representantes de operadoras de plano de saúde, o advogado e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Mário da Silva Velloso exarou Parecer sustentando a tese de que o ressarcimento ao SUS tem caráter indenizatório, constituindo reparação pelo enriquecimento sem causa decorrente do ganho que obtém a operadora quando seus segurados procuram atendimento médico nas instituições integrantes ao SUS. Como consequência desse enquadramento, Velloso propõe a aplicação do prazo prescricional de três anos, previsto no art. 206, § 3º, IV do Código Civil contado desde o atendimento do segurado do plano de saúde pelo SUS, bem como sustenta que o valor do ressarcimento deve coincidir com o valor gasto com o atendimento do segurado, equivalendo ao montante pago pelo SUS às entidades que o integram, devidamente atualizado.


As conclusões de Velloso têm por fundamento a noção de que o ressarcimento ao SUS decorre diretamente do art. 884 do Código Civil, que disciplina a restituição por enriquecimento sem causa. É o que se percebe das seguintes passagens do citado Parecer:


“7.15. Ora, o ressarcimento do art. 32 da Lei nº 9.656/98 não resulta de uma relação de direito público nem se enquadra nesse ramo do direito.


7.16. De fato, a doutrina costuma distinguir o direito público do privado ao fundamento de que o primeiro “é destinado a disciplinar os interesses gerais da coletividade”, nele incluindo o direito constitucional, o administrativo, o penal, entre outros, ao passo que o segundo “regula as relações entre os homens, tendo em vista o interesse particular dos indivíduos”, disciplinando, entre outras relações jurídicas, as obrigações que se estabelecem entre os indivíduos, decorrentes de contrato, do delito ou ainda provenientes da lei[3].


7.17. Com efeito, o ressarcimento de que se cuida não tem origem em contrato firmado sob o comando do direito administrativo nem constitui exigência feita em razão do exercício do jus imperi estatal. Ao contrário, decorre da lei, para o fim de evitar o enriquecimento sem causa, matéria de direito privado, disciplinada pelo direito civil, como linhas atrás foi exposto.


7.18. Certo é que não é possível atribuir natureza de direito público a uma relação de caráter indenizatório com base na vedação ao enriquecimento sem causa. Desnecessária seria até mesmo a criação do ressarcimento pela Lei 9.656/98. Dessa indenização já cuida o Código Civil, com propriedade e suficiência, ao estabelecer, no art. 884, que aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.


7.19. Não altera esse entendimento – a natureza privada da obrigatoriedade de ressarcimento – o fato de ser ele cobrado mediante execução especial, quando não pago voluntariamente no prazo estipulado em lei. A Lei nº 6.830/80, que dispõe sobre a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública aplica-se, como está dito em seu art. 2º, tanto à dívida tributária – daí o apego à expressão “execução fiscal” – quanto à não tributária, referida na Lei nº 4.320/64, que estatui normas gerais de Direito Financeiro para a elaboração e controle orçamentários.


7.20. Desnecessário lembrar que não é a forma de cobrança que define a natureza da dívida. No caso, o ressarcimento é de natureza privada e não constitui receita da ANS. Apenas por questão de praticidade a ANS assume sua cobrança, quando não pago voluntariamente, mas isso não altera sua destinação: continuará sendo ressarcimento destinado à entidade prestadora do serviço. Sendo o débito de natureza indenizatória, a ele não se aplica, ainda que por analogia, a prescrição qüinqüenal adotada pelo Superior Tribunal de Justiça para a dívida ativa do Poder Público, quando originada de relação de direito público.


7.21. Inaplicável a prescrição qüinqüenal, a solução há de ser encontrada no Código Civil, que contém disposição expressa para ações dessa natureza. Com efeito, o art. 206, § 3º, inciso IV, dispõe que prescreve em três anos a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa. Maior clareza impossível.


7.22. Estabelecido, como premissa, que a natureza do ressarcimento do art. 32 da Lei nº 9.656/98 constitui reparação para se evitar o enriquecimento sem causa em que incorreria a operadora de plano de saúde, em detrimento da unidade do SUS que prestasse o atendimento, a conclusão é no sentido de que o prazo prescricional para sua cobrança será de três anos.


[…]


B.1. Como se trata de indenização com base no art. 884 do Código Civil, a fim de impedir o enriquecimento sem causa, não tem lugar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, linhas atrás mencionado, que manda aplicar às obrigações de direito público a prescrição qüinqüenal prevista no Decreto nº 20.910/32. É que, vale enfatizar, tratando-se de reparação prevista no art. 884 do Código Civil, sua natureza é de direito privado, sujeitando-se ao prazo prescricional de três anos. (Código Civil, art. 206, § 3º, IV).


[…]


H.1. Conforme está no art. 884 do Código Civil, a restituição ou ressarcimento deve ser igual ao valor indevidamente auferido, atualizado monetariamente. Assim, a lei não concede qualquer margem de discricionariedade à Administração para fixar, a seu talante, o valor do ressarcimento. Deve ser ele, por imposição legal, idêntico ao valor do enriquecimento sem causa, ou seja, o valor pago pelo SUS às entidades que o integram, devidamente atualizado”.


Pretende-se no presente trabalho demonstrar que a premissa de identificação do ressarcimento ao SUS com uma pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa não pode ser aceita, bem como refletir sobre a correta natureza jurídica do instituto. Para tanto, utilizar-se-á como parâmetro de confronto as conclusões do já mencionado Parecer de Carlos Velloso e buscar-se-á delimitar a fonte jurídica e os fundamentos jurídicos e extrajurídicos da obrigação de ressarcimento ao SUS.


2. Distinção entre fonte e fundamento da obrigação


Para melhor análise do tema proposto, impõe-se desfazer a confusão entre fundamento e fonte da obrigação de ressarcimento ao SUS. O ressarcimento ao SUS é uma obrigação cogente que decorre diretamente do art. 32, da Lei nº 9.656/98. É verdade que, sob certo ponto de vista, toda obrigação tem como fonte remota a lei, posto que todas as obrigações nascem da lei, pois que é esta a fonte primária dos direitos; mesmo no campo contratual, não haveria a força jurígena da manifestação volitiva se não fosse o poder obrigatório que a lei lhe reconhece[4]. No entanto, deve-se atentar para qual fato humano foi eleito pela lei como suficiente para o surgimento da obrigação. As fontes das obrigações, assim, devem ser entendidas como os atos ou fatos de onde elas se originam, ou, na lição de Orlando Gomes:


“o fato jurídico ao qual a lei atribui o efeito de suscitá-lo”, [pois] “entre a lei, esquema geral e abstrato, e a obrigação, relação jurídica singular entre pessoas, medeia sempre um fato, ou se configura uma situação, considerado idôneo pelo ordenamento jurídico para determinar o dever de prestar (Obrigações, Rio de Janeiro, Forense, 1986, p. 31)”[5].


O fato humano eleito pela lei como idôneo a fazer nascer a obrigação de ressarcimento ao SUS é a prestação de serviços de atendimento à saúde em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde-SUS, prestados aos consumidores e respectivos dependentes das operadoras de planos privados de assistência à saúde. Uma vez ocorrido este fato da vida, incide a previsão do art. 32, da Lei nº 9.656/98, fazendo nascer a obrigação de ressarcimento ao SUS.


Identificado o fato humano que faz surgir a obrigação, deve-se esclarecer qual a norma jurídica incide com força jurígena suficiente para o nascimento do dever de prestar. Nesse aspecto, é equivocado supor que o ressarcimento ao SUS tem por fonte a vedação ao enriquecimento sem causa previsto no art. 884, do Código Civil. Na verdade, a vedação ao enriquecimento sem causa é um dos fundamentos da obrigação, mas não a sua fonte. A vedação ao enriquecimento sem causa consiste no princípio que inspira e legitima a obrigação estabelecida no art. 32, da Lei nº 9.656/98, assim como também o é o princípio da solidariedade (CF, art. 3º, I), além de razões regulatórias de desestímulo a práticas mercadológicas viciadas.


A confusão terminológica entre fonte e fundamento da obrigação se explica pela própria polissemia do termo fonte, que em muitas ocasiões é indevidamente empregado como sinônimo de fundamento. Essa perspectiva é bem demonstrada por Kelsen[6]:


“Legislação e costume são freqüentemente designados como as duas “fontes” do Direito, entendendo-se aqui por Direito apenas as normas gerais do Direito estatal. Mas as normas jurídicas individuais pertencem tanto ao Direito, são tanto parte integrante da ordem jurídica, como as normas jurídicas gerais com base nas quais são produzidas. E, se tomarmos em linha de conta o Direito internacional geral, então não poderemos considerar como “fontes” deste Direito a legislação, mas somente o costume e o tratado.


Fontes de Direito é uma expressão figurativa que tem mais do que uma significação. Esta designação cabe não só aos métodos acima referidos mas a todos os métodos de criação jurídica em geral, ou a toda norma superior em relação à norma inferior cuja produção ela regula. Por isso, pode por fonte de Direito entender-se também o fundamento de validade, a norma fundamental. No entanto, efetivamente, só costuma designar-se como “fonte” o fundamento de validade jurídico-positivo de uma norma jurídica, quer dizer, a norma jurídica positiva do escalão superior que regula a sua produção. Neste sentido, a Constituição é a fonte das normas gerais produzidas por via legislativa ou consuetudinária; e uma norma geral é a fonte da decisão judicial que a aplica e que é representada por uma norma individual. Mas a decisão judicial também pode ser considerada como fonte dos deveres ou direitos das partes litigantes por ela estatuídos, ou da atribuição de competência ao órgão que tem de executar esta decisão. Num sentido jurídico-positivo, fonte do Direito só pode ser o Direito.


Mas a expressão é também empregada num sentido não jurídico quando com ela designamos todas as representações que, de fato, influenciam a função criadora e a função aplicadora do Direito, tais como, especialmente, os princípios morais e políticos, as teorias jurídicas, pareceres de especialistas e outros. Estas fontes devem, no entanto, ser claramente distinguidas das fontes de Direito positivo. A distinção reside em que estas são juridicamente vinculantes e aquelas o não são enquanto uma norma jurídica positiva não delegue nelas como fonte de Direito, isto é, as torne vinculantes. Neste caso, porém, elas assumem o caráter de uma norma jurídica superior que determina a produção de uma norma jurídica inferior. A equivocidade ou pluralidade de significações do termo “fonte de Direito” fá-lo aparecer como juridicamente imprestável. É aconselhável empregar, em lugar desta imagem que facilmente induz em erro, uma expressão que inequivocamente designe o fenômeno jurídico que se tem em vista”. (grifos não são do original)


No nosso ordenamento jurídico positivo, a vedação ao enriquecimento sem causa, seja enquanto princípio geral do Direito ou como emanação da norma do art. 884 do Código Civil não é a fonte – no sentido de fundamento positivo de validade – da obrigação das operadoras de ressarcimento ao SUS. A fonte – a norma jurídica positiva do escalão superior que regula a produção de uma norma jurídica individual, seja a sentença ou o ato administrativo, que reconheça a obrigação – do ressarcimento ao SUS é o art. 32 da Lei nº 9.656/98.


A vedação ao enriquecimento sem causa somente pode ser entendida como um dos fundamentos dessa obrigação. Pode-se até admitir o uso, nesse contexto, do termo fundamento como sinônimo de fonte, mas em sentido impróprio, externando a ideia de uma representação que, de fato, influencia a função criadora e aplicadora do Direito. Nessa acepção lingüística, a esse fundamento será atribuída a qualidade de fonte não jurídica ou de fonte jurídica mediata[7]. Será uma fonte não jurídica se esse fundamento for entendido como um princípio moral ou político, externo ao Direito. Porém, acaso se compreenda que esse princípio foi acolhido pelo Direito positivo, assumirá o caráter de uma norma jurídica superior que determina a produção de uma norma jurídica inferior. Em outros termos: o princípio geral do Direito da vedação ao enriquecimento sem causa, acolhido implicitamente pela ordem constitucional, será a norma jurídica superior que determina a produção da norma jurídica inferior materializada no art. 32 da Lei nº 9.656/98.


Nesse sentido impróprio (ou mediato) de fonte jurídica, o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa pode ser compreendido como a base ou o critério de justificação da norma constante do art. 32 da Lei nº 9.656/98, na expressão acolhida por Larenz[8] e exposta por Vale[9]:


“Karl Larenz desenvolve suas teses na obra “Direito Justo, Fundamentos de Ética Jurídica” (Richtiges Recht, Grundzüge einer Rechtsethik). Em linhas gerais, o conceito de princípios de Karl Larenz não difere muito do pensamento de Esser. Segundo Larenz, desde a obra de Esser (Princípio e norma na elaboração jurisprudencial do Direito Privado), considera-se a existência de princípios que subjazem a uma determinada regulação jurídica e que são aplicados pela jurisprudência, ainda que com freqüência sejam desconhecidos ou estejam ocultos sob uma fundamentação obscura.


Em comentário pertinente, Larenz também enfatiza que Esser foi o primeiro autor a analisar com claridade a distinção entre princípio e norma. Em sua concepção, o princípio não é por si mesmo uma norma, mas a base ou o critério de justificação da norma.


Assim, seguindo o caminho trilhado por Esser, Larenz ressalta que “os princípios não são regras acabadas”, mas sim os fundamentos iniciais para a obtenção das regras. Em sua definição, os princípios constituem “pensamentos diretores e causas de justificação de uma regulação jurídica (possível ou efetivamente vigente)”.


Os princípios não são regras devido ao fato de “lhes faltar o caráter formal de proposições jurídicas, representado pela conexão entre um suporte fático e uma conseqüência jurídica”. Nesse sentido, os princípios apenas indicam a direção que deve seguir o processo de regulação. Pode-se dizer que são “um primeiro passo para a obtenção da regra”. (destaques não são do original)


É verdade que a doutrina, a partir de Dworkin[10], tem assentado que os princípios, assim como as regras, são espécies normativas. Dessa forma, um princípio jurídico pode ser a razão suficiente para a decisão de um caso concreto. Isso ocorre porque nem sempre a aplicação de um princípio está condicionada a uma prévia ponderação entre princípios colidentes, uma vez que um princípio pode ser o próprio fundamento de um juízo concreto de dever-ser, independente da consideração do peso relativo em face de outros princípios. Isoladamente considerados, os princípios (e nesse aspecto se assemelham às regras) dependerão apenas das possibilidades fáticas para sua concretização, perdendo importância as possibilidades jurídicas (ponderação com outros princípios colidentes). Assim, um princípio pode transmudar-se de mandamento de otimização para mandamento de maximização[11]. Quando isso se apresenta, o princípio adotado será a fonte imediata da norma jurídica individual. No entanto, esse não é o caso presente, no qual entre o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa e a norma jurídica individual (a sentença ou o ato administrativo que reconhece a obrigação de ressarcimento ao SUS) medeia outra norma jurídica geral, qual seja: o art. 32 da Lei nº 9.656/98.


Na defesa da obrigação do ressarcimento ao SUS, a argumentação baseada no princípio da vedação ao enriquecimento sem causa diz respeito ao fundamento de validade do art. 32 da Lei nº 9.656/98, ou seja, à discussão sobre a constitucionalidade da norma. Por isso, revela-se inadequado buscar auxílio, nesse ponto, no art. 884 do Código Civil, por se tratar de norma da mesma hierarquia daquela constante do art. 32 da Lei nº 9.656/98. O art. 884 do Código Civil não é o fundamento de validade do art. 32 da Lei nº 9.656/98, nem tampouco a fonte imediata da obrigação de ressarcimento ao SUS.


A obrigação decorrente do art. 32 da Lei nº 9.656/98 pode ser entendida como a concretização do princípio da vedação do enriquecimento sem causa e de outros princípios de matriz constitucional, tais como o da solidariedade e do Estado Democrático, assim como se revela um instrumento para o exercício da função regulatória do Estado sobre o mercado de Saúde Suplementar. Os fundamentos da obrigação, portanto, são mais amplos que a vedação ao enriquecimento sem causa e a sua fonte é o art. 32 da Lei nº 9.656/98.


3. A teoria das externalidades e a incidência do princípio democrático e da solidariedade.


A dificuldade de compreensão da natureza do ressarcimento ao SUS como uma obrigação ex lege ressarcitória (compensatória), que não se confunde com uma pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa, decorre, ainda, de uma ausência de sistematização dos demais fundamentos econômicos e jurídicos da obrigação. Não obstante a jurisprudência[12] compreender o instituto a partir da concretização do princípio da vedação ao enriquecimento sem causa, melhor seria entendê-lo como um mecanismo legal de reinternalização de externalidades (benefícios recebidos por agentes econômicos pelos quais não efetuaram prévio pagamento) nos custos das operadoras, como forma de corrigir uma falha do mercado decorrente do caráter suplementar da atividade privada de atendimento à saúde, em um contexto de universalização e gratuidade da saúde pública. A saúde pública é um direito social universal e gratuito, sendo que a prestação desse serviço público aos usuários de planos de saúde representa um ganho (uma não despesa) para as operadoras, que deixaram de desembolsar com a prestação do serviço ao usuário. O custo desse atendimento, no entanto, é suportado por toda a coletividade. Como forma de evitar o subsídio indireto de uma atividade privada, bem como em decorrência do princípio da solidariedade, o custo desse serviço público de saúde deve ser reinternalizado pela operadora, por meio do ressarcimento ao SUS.


O conceito de externalidades é atualmente objeto de amplo debate no direito ambiental, por aplicação do princípio do usuário pagador, segundo o qual aquele que utiliza mais os recursos ambientais escassos, em detrimento dos demais, deve arcar com o correlativo ônus pelo seu uso intensivo. No direito ambiental tem merecido maior relevo a noção de externalidades negativas[13], enquanto custos sociais da conduta individual, conforme expõe Silva Filho[14]:


“Percebe-se assim, que o mercado, ao se deparar com recursos naturais, cujo acesso é livre e cujo uso ou consumo é não-rival, falha, eis que os referidos bens ou não têm preço, ou seu preço não traduz um reflexo fiel do seu valor (e, por conseguinte, do seu custo), gerando distorções no seu uso e consumo, tudo contribuindo para o que Garrett Hardin, em 1968, chamou de “tragédia dos bens comuns” [15], mediante uma postura individualista que leva cada um a procurar maximizar seu interesse à custa do outro (free rider) [16]. Conclui-se, do mesmo modo, que embora, por definição, a economia seja a ciência da eleição do atendimento às necessidades perante recursos escassos, a escassez não pode ser entendida em um sentido absoluto, mas apenas de modo relativo, dentro do mercado[17].  Com razão, portanto, Cristiane Derani, ao afirmar que “a economia não surge com a escassez, porém a escassez é um pressuposto para a economia de mercado. Além do mais, não é toda a escassez que integra a dinâmica de preços do mercado, mas aquela escassez que pode ser controlada e produzida” [18].


Enfim, as falhas do mercado concernentes aos bens ambientais geram aquilo que se convencionou chamar de externalidades negativas, espécie do gênero externalidade, conceituado por Victor Carvalho Pinto, como “situações em que a atividade de uma unidade econômica prejudica ou beneficia outras unidades” [19], de forma que “terceiros ganham sem pagar por seus benefícios marginais ou perdem sem serem compensados por suportarem o malefício adicional”  [20].


Maria Alexandra de Sousa Aragão também indica o caminho para a compreensão do que sejam as externalidades, ao afirmar que:


“a denominação efeitos externos ao mercado é compreensível, porque se trata de transferência de bens ou prestação de serviços fora dos mecanismos do mercado. São transferências por meios não económicos na medida em que não lhes corresponde qualquer fluxo contrário de dinheiro. Sendo transferências ‘a preço zero’, o preço final dos produtos não as reflecte, e por isso não pesam nas decisões de produção ou consumo, apesar de representarem verdadeiros custos ou benefícios sociais decorrentes da utilização privada dos recursos comuns” [21].


Em outras palavras, o que a jurista lusitana já deixa entrever é que na produção e circulação de riquezas existem benefícios recebidos por agentes econômicos pelos quais não efetuaram prévio pagamento, assim como custos não apropriados pelos responsáveis, e que são sustentados por aqueles que não se beneficiam do resultado do processo produtivo. Em suma, efeitos externos ao mercado, ou externalidades, positivas, na primeira hipótese aqui proposta; e negativas, no segundo exemplo”.


O conceito acima apresentado de externalidade parece adequado ao objeto do ressarcimento ao SUS: situações em que a atividade de uma unidade econômica prejudica ou beneficia outras unidades de forma que terceiros ganham sem pagar por seus benefícios marginais (externalidades positivas) ou perdem sem serem compensados por suportarem o malefício adicional (externalidades negativas). A falha de mercado decorre do fato de que o Estado, ao prestar a saúde pública, atua como uma unidade econômica (em sentido impróprio, considerando-se o “mercado de saúde”), cuja atividade beneficia as outras unidades econômicas (as operadoras de planos de saúde privados).


A rigor, essa situação não é suficientemente resolvida pelo princípio da vedação ao enriquecimento sem causa. Isso porque não se pode dizer que sempre o ganho obtido pelo terceiro (que deixou de arcar com os custos do serviço de saúde prestado pelo sistema público ao beneficiário de seu plano de saúde) tenha se dado sem justa causa[22]. Inúmeras situações poderiam ser alegadas pelas operadoras para sustentar que elas não contribuíram de qualquer forma para que o atendimento ao usuário tenha ocorrido pelo sistema público de saúde. Ainda que não se exija a existência de um ilícito para a possibilidade de configuração do enriquecimento sem causa, situar a obrigação em questão exclusivamente no âmbito desse instituto jurídico pode suscitar dúvidas quanto ao próprio critério de imputação da responsabilidade. Igualmente, qual seria o critério quantitativo para se estabelecer a partir de quantos atendimentos no sistema público a operadora passou a receber a mensalidade do plano de saúde sem uma justa causa? A falta de justa causa para a apropriação da externalidade pelo agente econômico pressupõe a existência de uma lei impondo a obrigação de reinternalização do custo na atividade empresarial.


Não é estranho à economia de mercado que um agente econômico seja beneficiado por um fato externo à sua atividade. Empresas podem se beneficiar de uma atividade econômica de outras empresas ou mesmo da prestação de um serviço público. As teorias econômicas debatem se essas externalidades devem ser solucionadas pelo próprio mercado ou pela atuação interventiva do Estado[23]. De toda forma, tentar resolver essas questões a partir do princípio da vedação ao enriquecimento sem causa resultará na transformação de fatos econômicos em demandas jurídicas, acentuando o já elevado quadro de judicialização das relações sociais[24]. O ponto nodal, no entanto, é saber quais tipos de externalidades não são aceitas pela sociedade, sendo o Poder Legislativo o fórum adequado para o debate, como decorrência do princípio democrático. Lorenzetti[25] expõe com clareza esse dilema contemporâneo, que já se reflete no direito ambiental:


“A noção de externalidade negativa ou custo social da conduta individual tem sido um suporte fundamental para o ambientalismo.


Este aspecto, habitualmente ignorado, foi incorporado nas análises econômicas e no direito, e serviu para sinalizar muitas situações em que há conseqüências do agir individual que outros arcam. Historicamente, o direito se baseou no pressuposto da neutralidade a respeito deste tipo de ação, como uma forma de subsidiar os indivíduos e as empresas que atuam no mercado. Nas origens do capitalismo, a empresa estava nascendo e merecia um subsídio para fortalecer o seu crescimento, razão pela qual a regulação se concentrou somente nos problemas individuais ou internos.


Como conseqüência deste princípio, as empresas cujas atividades contaminam não levam em consideração estes custos, pois são transferidos a outras pessoas ou à comunidade em seu conjunto, recebendo apenas o benefício por sua atividade. Ao externalizar estes custos, não têm incentivos para reduzir o nível de poluição que causam com a produção de bens e serviços rentáveis. A partir do ponto de vista estritamente econômico, a externalidade leva a uma superprodução que excede o que se produziria realmente se a empresa levasse em conta os custos reais. A chave para alcançar um nível ótimo consiste em induzir os maximizadores do benefício privado para restringir sua produção ao máximo nível para que seja o melhor do ponto de vista social e não só do ponto de vista privado. Isto se alcança mediante políticas públicas que obriguem a empresa a funcionar ao longo da curva de custo marginal social e não ao longo da curva de custo marginal privado, o que implica que a “externalidade” seja “internalizada”.


A grande mudança se produz quando se “internalizam” esses custos porque a sociedade já não quer suportá-los. Isso se vê claramente nas indenizações por danos ambientais que devem pagar as empresas, mas também nas exigências de transformação dos mecanismos de produção de bens, obrigando-as a incorporar novas tecnologias “limpas”, com cujo custo devem arcar.


Constrói-se assim um novo modelo de relação entre a empresa e a sociedade em relação às externalidades, altamente complexo e conflituoso”. (destaques não são do original)


O debate em jogo envolve e contrapõe a sociedade e os agentes econômicos privados e diz respeito à obrigação de reinternalização nos custos da empresa do benefício por ela auferido e que foi arcado por toda a coletividade. Conforme anota a doutrina[26], o reconhecimento de que todos os direitos possuem custos quase sempre elevados, sendo arcados por escassos recursos captados na coletividade de indivíduos singularmente considerados, e de que os recursos públicos são insuficientes para a promoção de todos os ideais sociais – impondo o sacrifício de alguns deles -, implica também o reconhecimento de que os direitos devem ser exercitados com responsabilidade.


A obrigação veiculada no art. 32 da Lei nº 9.656/98, nesse contexto, manifesta uma decisão da sociedade de não tolerar a externalidade representada pelo benefício obtido pelas operadoras em decorrência do atendimento a um consumidor do plano de saúde pela rede pública de saúde[27]. Essa decisão, manifestação do princípio democrático, encontra respaldo no princípio da solidariedade, que demanda uma responsabilidade de todos pelo financiamento dos serviços de saúde pública. O princípio da solidariedade não se restringe à legitimação da competência tributária residual, uma vez que a Constituição prevê o custeio do sistema único de saúde por outras fontes, além dos recursos do orçamento da seguridade social, conforme prevê em seu art. 198, § 1º[28]. Sobre a incidência do principio da solidariedade como fundamento do ressarcimento ao SUS, confira-se o seguinte trecho do AgRg no REsp 866.393/RJ, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça:


“[…]13. Mesmo assim, não causa arrepio o fato de procurar o Poder Público recobrar investimento do setor privado, pelo princípio que veda o enriquecimento sem causa, em combinação com o princípio da solidariedade, pois todos são chamados à sua parcela de contribuição para a manutenção da saúde das pessoas.14. Por outro lado, as operadoras de planos privados e seguros de saúde não podem queixar-se de diminuição patrimonial, uma vez que, não fosse o atendimento dado pelo SUS, estariam sujeitas a prestá-lo por si mesmas, despendendo para tanto recursos seus.

15. O princípio da solidariedade fundamenta a regra contida no art. 32 da Lei n° 9.656/98 e, em última análise, se insere no contexto da concretização do objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, a saber, a construção de uma sociedade mais justa, livre e solidária (CF/88, art. 3°, inciso I).  Conclui-se, portanto, pela constitucionalidade, legalidade e legitimidade do ressarcimento ao SUS instituído pela Lei n° 9.656/98. […]”


4. A função regulatória e o ressarcimento ao SUS.


Há, também, no art. 32 da Lei nº 9.656/98 o estabelecimento de um mecanismo de regulação para corrigir práticas mercadológicas viciadas. A própria existência do ressarcimento ao SUS representa um estímulo a boas práticas empresarias, na medida em que induz o agente econômico a propiciar meios para reduzir a utilização do SUS pelos seus beneficiários, uma vez que esse atendimento gera também um custo para a operadora. Além disso, a função regulatória decorre da competência normativa geral atribuída tanto pelo caput do art. 32 da Lei nº 9.656/98 quanto pelo art. 4º, VI, da Lei nº 9.961/2000 à ANS para definir as normas para o ressarcimento[29], bem como da previsão constante do § 8º do mesmo artigo, segunda a qual o valor do ressarcimento não poderá ser inferior ao praticado pelo SUS nem superior ao praticado pelas operadoras. A lei, portanto, estabelece dois limites dentro dos quais caberá à Agência Nacional de Saúde Suplementar fixar o valor da obrigação. Essa possibilidade de fixação do valor do ressarcimento em montante superior aos praticados pelo SUS evita que as operadoras prefiram pagar o ressarcimento ao SUS ao invés de corrigirem eventuais falhas na prestação do serviço a seus usuários. Esse valor já se encontra limitado pela lei ao montante praticado pelas operadoras, o que revela uma opção legislativa decorrente de um juízo prévio de proporcionalidade da medida.


O tratamento legal quanto ao valor do ressarcimento ao SUS demonstra que além da função de concretização do princípio da vedação ao enriquecimento sem causa e da solidariedade, a obrigação legal instituída atua como mecanismo de regulação da atividade econômica privada, sujeita à intervenção estatal. Por sua vez, a regulação estatal da atividade privada de prestação de serviços de saúde, materializada pela Lei nº 9.656/98, encontra fundamento de validade no art. 197 da Constituição.


5. Da não fungibilidade entre o ressarcimento legal ao SUS e a pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa do art. 884 do Código Civil.


Não é possível desconsiderar a existência do art. 32 da Lei nº 9.656/98 sob a alegação de que já existe norma mais geral que trata do enriquecimento sem causa (o art. 884 do Código Civil). Entender como desnecessária a criação do ressarcimento ao SUS pela Lei 9.656/98, uma vez que dessa indenização já cuida o Código Civil, revela uma inadequada identificação da fonte da obrigação. Se não existisse o art. 32 da Lei nº 9.656/98 seria necessário buscar a cobrança de valores pagos em atendimentos oferecidos pelo SUS a beneficiários de planos de saúde com base no Código Civil, mediante o ajuizamento de uma ação veiculando essa pretensão, na qual seria preciso demonstrar a presença de todos os requisitos[30] à configuração do enriquecimento sem causa. No entanto, a existência do art. 32 da Lei nº 9.656/98 desonera o Poder Público de utilizar a norma geral do Código Civil. A única exigência será a manifestação no mundo fático da hipótese elegida pela Lei (art. 32 da Lei nº 9.656/98) para a existência da obrigação de ressarcir ao SUS: a prestação de serviços de atendimento à saúde em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde-SUS, aos consumidores e respectivos dependentes das operadoras de planos privados de assistência à saúde.


Afastada a premissa, não se sustenta a conclusão pela aplicação ao ressarcimento ao SUS do prazo prescricional previsto no art. 206, § 3º, IV do Código Civil, que cuida da prescrição da pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa. A norma em questão está se reportando ao art. 884, conforme se pode concluir por uma simples interpretação sistemática do Código. Ocorre que a aplicação dessa regra do art. 206, § 3º, IV do Código Civil somente seria possível se fosse desconsiderada a força jurígena autônoma do art. 32, da Lei nº 9.656/98, criadora da obrigação. E como já demonstrado, o ressarcimento legal ao SUS não se confunde com uma pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa, inaplicável, portanto, o prazo do art. 206, § 3º, IV, do Código Civil[31].


Igualmente, a conclusão de que o valor do ressarcimento deve coincidir com o valor gasto com o atendimento do segurado se baseia na equivocada noção de que a obrigação tem a mesma natureza de uma pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa decorrente da aplicação do art. 884 do Código Civil. No entanto, conforme já amplamente demonstrado, a obrigação legal de ressarcimento ao SUS transcende ao fundamento da vedação ao enriquecimento sem causa. No particular aspecto da fixação do valor do ressarcimento, o legislador instituiu, fixando prévios parâmetros, um mecanismo de regulação da atividade privada de interesse público, nos termos em que dispõe o art. 197 da Constituição.


6. Da necessária imbricação entre o direito público e o privado para a classificação da obrigação.


Por outro lado, a classificação do ressarcimento legal ao SUS, conforme proposta por Carlos Velloso, como uma relação de direito privado decorre do argumento de que a obrigação “não tem origem em contrato firmado sob o comando do direito administrativo nem constitui exigência feita em razão do exercício do jus imperi estatal” e que a obrigação “decorre da lei, para o fim de evitar o enriquecimento sem causa, matéria de direito privado, disciplinada pelo direito civil”.


A doutrina tem ressaltado que não se sustenta no atual estágio do Estado contemporâneo a nítida e rígida distinção, típica do século XIX, entre direito público e direito privado, conforme bem demonstra Medauar[32]:


“O tema sobre a esfera pública e a esfera privada apresenta-se, em grande parte, vinculada à idéia de separação entre o Estado e a sociedade. No interior do sistema jurídico, refletiu-se na divisão entre direito público e direito privado.


No século XIX a necessidade de consolidação do poder estatal na função de garantir a ordem, a segurança e o exercício dos direitos dos indivíduos, aliada à observância da autonomia da atuação privada, levou à distinção entre “o poder soberano e sua esfera e o poder dos indivíduos nas suas relações”[33]. Para Celso Lafer, “no exame desta dicotomia, que tem uma função heurística indiscutível na epistemologia jurídica, importa mencionar que existem duas acepções básicas a partir das quais se estruturam as relações de oposição entre os dois termos: na primeira, público é o que afeta todos ou a maioria, sendo portanto, o comum, que se contrapõe ao privado, visto como o que afeta a um ou a poucos; na segunda, público é o que é acessível a todos, em contraposição ao privado, encarado como aquilo que é reservado e pessoal”[34].


Com a dinâmica intervencionista o Estado passou a atuar em esferas antes tidas como reservadas à autonomia privada, em especial no setor econômico e social, do que resultou o processo denominado de publicização do privado; o que afeta a poucos passou a ser de interesse comum; a política interferiu na economia; por outro lado, grandes organizações, associações e grupos privados passaram a exercer pressão sobre o Estado, a colaborar na gestão de atividades de interesse geral, a solucionar problemas mediante acordos e negociações, gerando a chamada privatização do público. “Com isso, a distinção entre a esfera pública e privada perde sensivelmente em nitidez”[35], o que traz conseqüências de relevo em muitos institutos jurídicos delineados no século XIX, quando a idéia de separação predominava. Menciona-se também, no tema: flexibilização das relações público-privado;[36] enfraquecimento da separação entre setor público e setor privado;[37] intercâmbio e conexão entre público e privado;[38] “a atenção se desloca dos critérios de diferenciação entre público e privado para os critérios de coexistência e de imbricação entre ambos”[39].


O art. 32 da Lei nº 9.656/98 veicula uma obrigação ressarcitória, mas que não se equivale a uma relação exclusivamente privada indenizatória. Trata-se de uma obrigação com uma inegável dimensão social (a responsabilidade das operadoras frente aos custos de manutenção do serviço público de saúde, cuja prestação representou um benefício econômico para suas atividades empresariais), além de atuar como um mecanismo de intervenção do Estado na regulação da atividade privada de saúde suplementar. A vedação ao enriquecimento sem causa, conforme amplamente demonstrado anteriormente, é apenas um dos fundamentos da obrigação. Ainda assim, melhor seria compreender que ao invés de enriquecimento sem causa, a obrigação veicula uma decisão da sociedade de não tolerar uma específica externalidade, determinado a reinternalização nos custos da empresa do benefício auferido e arcado por toda a coletividade. Por essas razões, a obrigação do art. 32 da Lei nº 9.656/98 possui um caráter público, ainda que não se negue eventual fundamento típico de direito civil. Conforme destacado na citação doutrinária acima, melhor do que buscar critérios de distinção entre o público e o privado, deve-se atentar para a necessária imbricação entre essas duas esferas.


Por outro lado, há uma incorreção no entendimento de que o ressarcimento se destina à entidade prestadora do serviço, sendo que a cobrança pela ANS se dá apenas por uma questão de praticidade. O caput o art. 32 da Lei nº 9.656/98 explicita que serão ressarcidos pelas operadoras os serviços de atendimento à saúde, previstos nos respectivos contratos prestados aos seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas e privadas, conveniadas ou contratadas, integrante do Sistema Único de Saúde-SUS. E o parágrafo primeiro do mencionado art. 32 aduz que o ressarcimento será efetuado à entidade prestadora de serviço, quando esta possuir personalidade jurídica própria, e ao SUS. A leitura isolada e literal desse dispositivo pode levar à falsa compreensão de que o valor do ressarcimento destina-se a beneficiar o prestador do serviço (seja público ou privado). Ocorre que esse serviço já pode ter sido pago pelo SUS ao prestador antes do processamento do ressarcimento. Quando isso ocorre, o valor do ressarcimento deve se destinar ao SUS e não ao prestador, pois o contrário resultaria em um pagamento em duplicidade em favor do prestador de serviço.


A ANS editou a Resolução Normativa nº 185/2008, modificada pela Resolução Normativa nº 217/2010, que estabelece as normas do procedimento do ressarcimento ao SUS, prevendo que a identificação da ocorrência da obrigação de ressarcir ao SUS ocorre por meio da constatação de atendimento no SUS a beneficiário, sendo que essa identificação se realizada mediante cruzamento de bancos de dados relativos aos atendimentos realizados pelo SUS com as informações cadastrais das operadoras, constantes do banco de dados da ANS[40]. O repasse dos valores recolhidos é regulado pelo art. 51 da RN 185, que teve sua redação modificada pela RN nº 217/2010, prevendo que “os valores recolhidos pelas OPS a título de ressarcimento ao SUS serão partilhados pela ANS conforme ato em conjunto com o Ministério da Saúde”. Atualmente, encontra-se em fase de discussão entre a ANS, o Ministério da Saúde e o Fundo Nacional de Saúde a elaboração de Portaria conjunta para disciplinar os procedimentos de repasse dos valores do ressarcimento ao SUS. De qualquer forma, já se constata que não há o pagamento da operadora diretamente aos prestadores de serviço, uma vez que caberá ao gestor do SUS a prévia verificação da situação específica para saber se já houve o repasse de verbas públicas do SUS, evitando o pagamento em duplicidade.


 


Constata-se, assim, que não se sustenta a afirmativa de que o ressarcimento é de natureza privada, não constituindo receita da ANS, uma vez que a sua destinação seria para a prestadora do serviço. De fato, a ANS atua apenas como um instrumento para a cobrança do ressarcimento, mas esses recursos destinam-se a recompor o Sistema Único de Saúde e não propriamente ao prestador privado. Além disso, o próprio art. 32, § 6º, da Lei nº 9.656/98 estabelece que o produto da arrecadação dos juros e da multa de mora será revertido ao Fundo Nacional de Saúde.


7. Conclusão.


Das reflexões desenvolvidas no presente trabalho, verificou-se que: (i) a correta delimitação do ressarcimento ao SUS impõe refletir sobre a distinção entre a fonte (o fato humano que faz surgir a obrigação em conjugação com a norma jurídica positiva do escalão superior que regula a produção de uma norma jurídica individual que reconheça a obrigação) e o fundamento (as fontes jurídicas mediatas, que inspiram e dão fundamento de validade ao art. 32 da Lei nº 9.656/98) da obrigação; (ii) a vedação ao enriquecimento sem causa não é a fonte jurídica imediata do ressarcimento ao SUS, só podendo ser entendida como um dos fundamentos da obrigação; (iii) a fonte jurídica imediata do ressarcimento ao SUS é o art. 32 da Lei nº 9.656/98; (iv) o ressarcimento ao SUS é melhor compreendido a partir da teoria das externalidades, manifestando uma decisão da sociedade de não tolerar a externalidade representada pelo benefício obtido pelas operadoras em decorrência do atendimento a um consumidor do plano de saúde pela rede pública de saúde; (v) o fundamento (ou a fonte jurídica mediata) da obrigação, a partir da teoria das externalidades, encontra-se no princípio democrático, no princípio da solidariedade e na função regulatória sobre as atividades de saúde suplementar.


Diante dessas reflexões, pode-se concluir que: (i) o ressarcimento legal ao SUS, instituído pelo art. 32 da Lei nº 9.656/98, constitui obrigação ex lege ressarcitória, que não se confunde com uma pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa fundada no art. 884 do Código Civil, sendo inaplicável o prazo prescricional previsto no art. 206, § 3º, do Código Civil; (ii) o valor do ressarcimento legal ao SUS é fixado na forma do art. 32, § 8º, da Lei nº 9.656/98, não podendo ser inferior aos valores praticados pelo SUS nem superior aos valores praticados pelas operadoras, de maneira que o valor do ressarcimento não precisa ser igual ao montante pago pelo SUS às entidades que o integram.


Por fim, deve-se destacar que a ausência de perfeito enquadramento da obrigação nas categorias da responsabilidade civil não induz a inconstitucionalidade do art. 32 da Lei nº 9.656/98[41]. A obrigação legal de ressarcimento ao SUS possui fundamento constitucional tanto no princípio da solidariedade (art. 3º, inciso I e III; e arts. 194, 195, 198, § 1º e 203, todos da Constituição), como no princípio do Estado Democrático de Direito (art. 1º da Constituição) e na função regulatória do Estado sobre a atividade privada de saúde suplementar (art. 197 da Constituição). Em síntese, conforme trecho do já citado precedente do Superior Tribunal de Justiça (AgRg no REsp 866393/RJ): “não se pode perder de vista que a lei pode criar novos institutos, desde que não seja afrontada a Constituição. Não é necessário, sempre, enquadrá-los em categorias jurídicas já existentes”.


 


Referências bibliográficas:              

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.

BDINE JR., Hamid Charaf. In: PELUSO, Cezar (coord). Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Barueri, SP: Manole, 2008.

CUNHA, Paulo César Melo da. Regulação jurídica da saúde suplementar no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003.   

DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GALDINO, Flávio. O custo dos direitos. In: BARCELOS, Ana Paula de [et.al.]; TORRES, Ricardo Lobo (org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

LARENZ, Karl. Derecho Justo: fundamentos de etica juridica. Madrid: Civitas, 2001.

LOPES, Júlio Aurélio Vianna. A invasão do direito: a expansão jurídica sobre o Estado, o mercado e a moral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria geral do direito ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

MOTA, Maurício. Função socioambiental da propriedade: a compensação ambiental decorrente do princípio do usuário pagador na nova interpretação do Supremo Tribunal Federal. In: MOTA, Maurício (coord.). Função Social do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. II. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.

REIS, Otávia Miriam Lima Santiago. Ressarcimento ao SUS: fundamento jurídico da cobrança. Monografia apresentada ao Departamento de Direito da Universidade de Viçosa. Disponível em: http://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Materiais_por_assunto/monografia_ressarcimento_ao_sus.pdf.

SILVA FILHO, Carlos da Costa e. O princípio do poluidor-pagador: da eficiência econômica à realização da justiça. In: MOTA, Maurício (coord.). Fundamentos Teóricos do Direito Ambiental. Rio de janeiro: Elsevier Editora, 2008.

SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. O dilema constitucional contemporâneo entre o neoconstitucionalismo econômico e o constitucionalismo democrático. In: Constitucionalismo democrático e governo das razões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

VALE, André Rufino do. Estrutura das normas de direitos fundamentais: repensando a distinção entre regras, princípios e valores. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.


Notas:


[1] Como se pode verificar do enunciado nº 51 da súmula de uniformização de jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 2ª Região: “O art. 32, da Lei nº 9.656/98, que trata do ressarcimento ao Sistema Único de Saúde (SUS), é constitucional.”

[2] Sobre o tema, assim se manifestou o ministro Maurício Corrêa, no julgamento da cautelar, acompanhado pelos demais ministros do STF:

“44. Outra questão tida como contrária e ofensiva ao princípio da proporcionalidade seria o ressarcimento ao Poder Público, de que trata o caput do art. 32 da lei, dos serviços de atendimento que a rede hospitalar de saúde pública prestar ao contratado do plano. Frise-se que esses serviços só atingem os atendimentos previstos em contrato e que forem prestados aos respectivos consumidores e seus dependentes por instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do SUS, como está explicitamente disciplinado no § 1º do artigo 32, na versão atual, verbis: ‘O ressarcimento a que se refere o caput será efetuado pelas operadoras à entidade prestadora de serviços, quando esta possuir personalidade jurídica própria, e ao Sistema Único de Saúde – SUS, mediante tabela de procedimento a ser aprovada pelo CONSU.

45. Não vejo atentado ao devido processo legal em disposição contratual que assegurou a cobertura desses serviços, que, não atendidos pelas operadoras no momento de sua necessidade, foram prestados pela rede do SUS e instituições conveniadas e, por isso, devem ser ressarcidos à Administração Pública, mediante as condições preestabelecidas em resoluções internas da CÂMARA DE SAÚDE COMPLEMENTAR. Observo que não há nada nos autos relativamente aos preços que serão fixados, se atendem ou não as expectativas da requerente. Tudo gira em torno de hipóteses.

46. Também nenhuma consistência tem a argumentação de que a instituição dessa modalidade de ressarcimento estaria a exigir lei complementar nos termos do artigo 195, § 4º da Constituição Federal. Como resulta claro e expresso na norma, não impõe ela a criação de nenhum tributo, mas exige que o agente do plano restitua à Administração Pública os gastos efetuados pelos consumidores com que lhe cumpre executar.”

[3] RODRIGUES, Silvio – ob cit. Pág. 7/8. (nota do original)

[4] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. II. 22ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009. p. 36.

[5] Aput BDINE JR., Hamid Charaf. In PELUSO, Cezar (coord). Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 2ª ed. Barueri, SP: Manole, 2008. p. 178.

[6] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 258/259.

[7] A diferenciação aqui formulada entre fonte não jurídica e fonte jurídica mediata decorre da passagem anteriormente transcrita da obra de Kelsen, que atribui aos princípios morais a qualidade de fontes não jurídicas, uma vez que não seriam vinculantes “enquanto uma norma jurídica positiva não delegue nelas como fonte de Direito, isto é, as torne vinculantes”. O aprofundamento desse tema conduz a indagações jusfilosóficas mais elaboradas, tais como aquelas atinentes à distinção entre o positivismo jurídico exclusivo – que nega qualquer possibilidade de a moral ser utilizada como critério de identificação do direito positivo – e o positivismo jurídico inclusivo, que embora não abandone a tese da separação entre direito e moral, admite a existência de sistemas jurídicos em que os imperativos morais desempenham um papel crucial na identificação da validade e na interpretação das normas jurídicas. Sobre o assunto, confiram-se: DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. p. 134/147; VALE, André Rufino do. Estrutura das normas de direitos fundamentais: repensando a distinção entre regras, princípios e valores. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 27/31.

[8] Cf.: LARENZ, Karl. Derecho Justo: fundamentos de etica juridica. Madrid: Civitas, 2001. p. 34.

[9] VALE, op. cit., p. 50/51.

[10] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 35/46.

[11] Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 95 e 108.

[12] Cf.: AC 436004; AMS 41289; AC 381668; todos do TRF da 2ª Região.

[13] Vianna Lopes indica como causa da produção de externalidades negativas a interdependência das relações sociais, própria da modernidade: “Por externalidades negativas são designadas as conseqüências nocivas de atividades geradas nas relações sociais modernas e descarregadas sobre as pessoas alheias a elas. Assim, como por exemplo, a inflação é uma externalidade negativa no campo econômico; a poluição é uma externalidade negativa no campo ambiental… Afinal, se as relações sociais modernas envolvem sujeitos livres para contraí-las, eles tendem a deslocar o ônus produzido no relacionamento para fora do mesmo, atingindo pessoas alheias, ao invés de assumi-lo. Como não há submissão entre interdependentes, não é razoável que algum ou todos os sujeitos da relação social arquem com suas conseqüências negativas, preferindo exteriorizá-las.” (LOPES, Júlio Aurélio Vianna. A invasão do direito: a expansão jurídica sobre o Estado, o mercado e a moral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. p. 19.). Prossegue o citado autor sustentando que as características da interdependência das relações sociais se modificaram na contemporaneidade, fazendo surgir as internalidades negativas às próprias relações sociais, cujos ônus são cada vez mais imprevisíveis e simultâneos aos benefícios produzidos (LOPES, op. cit., p. 21).

[14] SILVA FILHO, Carlos da Costa e. O princípio do poluidor-pagador: da eficiência econômica à realização da justiça. In: MOTA, Maurício (coord.). Fundamentos Teóricos do Direito Ambiental. Rio de janeiro: Elsevier Editora, 2008.

[15] HARDIN, Garret. The Tragedy of Commons. Science, vol. 162, 1968, p. 1243-1248. Disponível em: <http://www.garretthardinsociety.org/articles/art_tragedy_of_the_commons.html>. Acesso em: 02 set. 2007. (nota do original)

[16] “A falta de mercado cria um preço ou custo zero e, por conseqüência, permite o uso excessivo ou abusivo dos recursos ambientais pelos chamados free riders (caronas) – expressão muito utilizada pelos economistas para designar os agentes econômicos que não pagam pela utilização dos bens livres. É como se o mercado pudesse ser comparado a uma barreira de pedágio, que deve cobrar um determinado valor dos usuários que trafegam pela rodovia. Os free riders seriam aqueles que se valem de um atalho ou desvio para elidir a cobrança do pedágio, o que os coloca em posição mais vantajosa em relação aos demais motoristas” (CARNEIRO, Ricardo Direito Ambiental. Uma Abordagem Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 69). (nota do original)

[17] No exemplo antes exposto, do consumo excessivo da fauna ictiológica, o fato da diminuição do número de exemplares de uma dada espécie de peixes (a sua escassez em termos absolutos) não provoca um aumento do preço do respectivo pescado, mas sim um incremento exponencial de sua captura. (nota do original)

[18] DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 117. (nota do original)

[19] PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico. Plano Diretor e Direito de Propriedade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 53-54. (nota do original)

[20] MOTTA, Ronaldo Seroa da. Economia Ambiental. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 182. (nota do original)

[21] ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. O Princípio do Poluidor-Pagador. Pedra Angular da Política Comunitária do Ambiente. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, Stvdia Ivridica, 23, p. 33. (nota do original)

[22] Em defesa da ausência de justa causa no enriquecimento da operadora: REIS, Otávia Miriam Lima Santiago. Ressarcimento ao SUS: fundamento jurídico da cobrança. Monografia apresentada ao Departamento de Direito da Universidade de Viçosa. Disponível em: <http://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Materiais_por_assunto/monografia_ressarcimento_ao_sus.pdf>).

[23] As divergências quanto ao comando – se tarefa do Estado ou do mercado – do processo de internalização ensejou a contraposição entre as teorias econômicas de Arthur Cecil Pigou, defensor da tese da “intervenção estatal para a correção das falhas de mercado, fosse mediante a instituição de subvenções, subsídios ou incentivos, no caso das externalidades positivas (por ele chamadas de economias externas), fosse por meio da cobrança de uma prestação financeira ao agente econômico que se beneficiava das externalidades negativas (deseconomias externas)” e Ronald Coase, que “sustentava a tese da atribuição de direitos de propriedade aos bens coletivos, para que os respectivos titulares, mediante negociação direta, sem qualquer interferência estatal, buscassem mediante acordo a internalização eficiente dos efeitos externos de suas atividades” (cf.: SILVA FILHO, op. cit.)

[24] O debate se insere, portanto, na importante temática da judicialização da política, na qual se contrapõem, de um lado, uma doutrina que demanda uma aumentada “responsabilidade dos integrantes do Poder Judiciário na concretização e no cumprimento das normas constitucionais, inclusive as que possuem uma alta carga valorativa e ideológica” e, de outro, uma teoria constitucional restrita ao âmbito da neutralidade política, que propugna apenas pela “judicialização da política dos direitos fundamentais, aí incluídos os direitos sociais, já que os mesmos são requisitos para a conformação de um contexto democrático” (cf.: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. O dilema constitucional contemporâneo entre o neoconstitucionalismo econômico e o constitucionalismo democrático. In: Constitucionalismo democrático e governo das razões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 38/39). Uma visão mais densa é fornecida por Vianna Lopes, segundo o qual a judicialização da política não é um conceito errôneo, mas insuficiente, uma vez que se verifica na contemporaneidade a própria substituição da política pelo direito, na regulação dos interesses difusos (LOPES, op. cit., p. 65/66).

[25] LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria geral do direito ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 34/35.

[26] GALDINO, Flávio. O Custo dos Direitos. In: BARCELOS, Ana Paula de [et.al.]; TORRES, Ricardo Lobo (org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 200.

[27] Note-se que a Constituição, em seu art. 199, § 2º, é expressa em vedar a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativas que atuam no âmbito da saúde suplementar.

[28] Nesse aspecto, concorda-se com CARLOS VELLOSO, que ressalta a desnecessidade de lei complementar para a veiculação do ressarcimento ao SUS, em decorrência da ausência de natureza tributária da obrigação, nos seguintes termos de seu Parecer: “4.2. E o § 4º do mesmo artigo 195 dispôs que outras fontes poderiam ser criadas para a manutenção e expansão da seguridade social, desde que observado o disposto no art. 154, inciso I, que exige, entre outras condições, que essa criação se dê mediante lei complementar. Ocorre que o art. 32 da Lei nº 9.656/98 não criou fonte de recurso para a manutenção ou expansão da seguridade social, para o que seria indispensável lei complementar, mas instituiu uma forma de ressarcimento por gasto efetuado pelo sistema público de saúde, que pode ser enquadrado entre as outras fontes de custeio do sistema de saúde, conforme previsto no § 1º art. 198 da Constituição.”

[29] A existência de uma função regulatória decorrente do ressarcimento ao SUS é defendida por Melo da Cunha, especificamente para sustentar a possibilidade de a ANS estabelecer, com base em seu poder normativo, critério para o parcelamento do crédito. Cf.: CUNHA, Paulo César Melo da. Regulação jurídica da saúde suplementar no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003. p. 112.

[30] Segundo a doutrina, o art. 884 do Código Civil exige os seguintes requisitos: o enriquecimento do beneficiado sem justa causa; o empobrecimento do lesado; e a relação de imediatidade entre o enriquecimento e o empobrecimento. Cf.: PEREIRA, op. cit., p. 276/277.

[31] Não se pretende discutir no presente trabalho o específico tema do prazo prescricional do ressarcimento ao SUS. No entanto, convém destacar que talvez não se mostre relevante para esse debate a classificação da obrigação como de natureza privada, aspecto abordado no próximo item. Isso porque a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (cf.: AgRg no REsp 1073796/RJ) tem aplicado o prazo prescricional do Decreto 20.910/32, em detrimento do prazo especial previsto no Código Civil, para ações de responsabilidade civil movidas conta a Fazenda Pública. Dessa forma, por aplicação do princípio isonômico, as pretensões indenizatórias da Fazenda Pública contra os particulares, mesmo fundadas em direito civil, também serão regidas pela prescrição quinquenal, afastando-se os prazos menores fixados no Código Civil, tal como o prazo do art. 206, § 3º, IV. A questão, no entanto, não se encontra pacificada, havendo posicionamento do próprio STJ no sentido de se aplicar o art. 206, § 3º, V, do Código Civil de 2002, em detrimento do art. 1º do Decreto n. 20.910/32, em relação às pretensões de reparação civil contra os entes públicos sempre que assim determinarem a regra de transição ou a data da ocorrência do fato danoso (cf.: EDcl no REsp 1145494/PR).

[32] MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 115/116.

[33] Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Introdução ao estudo…, cit., p. 130. (nota do original)

[34] A ruptura totalitária e a reconstrução dos direitos humanos. Um diálogo com Hannah Arendt. São Paulo: 1998. p. 243. (nota do original)

[35] Sampaio Ferraz Júnior. Introdução ao estudo…, cit., p. 131. (nota do original)

[36] Gaudin. Gouverner par contrat. Paris, 1999. p. 10. (nota do original)

[37] Cassese. Il cittadino e l’Amministrazione Pubblico. Riv. Trim. Dir. Pub., vol. 4, p. 1.020, 1998. (nota do original)

[38] Erminio Ferrari. Lo Stato sussidiario. Diritto Pubblico, vol. 1, p. 115, 2002. (nota do original)

[39] Luzia Torchia. La scienza Del diritto amministrativo. Riv. Trim. Dir. Pub., vol. 4, p. 1.122, 1998. (nota do original)

[40] Consoante dispõe o caput do art. 20 da Lei nº 9.656, “as operadoras de produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei são obrigadas a fornecer, periodicamente, à ANS todas as informações e estatísticas relativas às suas atividades, incluídas as de natureza cadastral, especialmente aquelas que permitam a identificação dos consumidores e de seus dependentes, incluindo seus nomes, inscrições no Cadastro de Pessoas Físicas dos titulares e Municípios onde residem, para fins do disposto no art. 32.”

[41] Em importante julgado, em uma situação análoga, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 3378/DF, analisando o instituto da compensação ambiental veiculado pelo art. 36 da Lei nº 9.985/2000, afirmou a constitucionalidade da instituição, por Lei, de uma obrigação compensatória, muito embora esse instituto não possa se enquadrar nas tradicionais categorias da responsabilidade civil. Em especial, o dever de compensação ambiental existe mesmo diante de uma atividade lícita e – nisso o mais inovador em relação ao sistema tradicional da responsabilidade civil – essa obrigação persiste mesmo sem a prévia ocorrência e valoração dos danos ambientais, uma vez que tal compensação não representa estritamente uma reparação pelos danos causados. Cf.: MOTA, Maurício. Função socioambiental da propriedade: a compensação ambiental decorrente do princípio do usuário pagador na nova interpretação do Supremo Tribunal Federal. In: MOTA, Maurício (coord.). Função Social do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 3/68.

Informações Sobre o Autor

Dalton Robert Tibúrcio

Procurador Federal


Equipe Âmbito Jurídico

Recent Posts

TDAH tem direito ao LOAS? Entenda os critérios e como funciona o benefício

O Benefício de Prestação Continuada (BPC), mais conhecido como LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social),…

10 horas ago

Benefício por incapacidade: entenda como funciona e seus aspectos legais

O benefício por incapacidade é uma das principais proteções oferecidas pelo INSS aos trabalhadores que,…

10 horas ago

Auxílio reclusão: direitos, requisitos e aspectos jurídicos

O auxílio-reclusão é um benefício previdenciário concedido aos dependentes de segurados do INSS que se…

10 horas ago

Simulação da aposentadoria: um guia completo sobre direitos e ferramentas

A simulação da aposentadoria é uma etapa fundamental para planejar o futuro financeiro de qualquer…

10 horas ago

Paridade: conceito, aplicação jurídica e impacto nos direitos previdenciários

A paridade é um princípio fundamental na legislação previdenciária brasileira, especialmente para servidores públicos. Ela…

10 horas ago

Aposentadoria por idade rural

A aposentadoria por idade rural é um benefício previdenciário que reconhece as condições diferenciadas enfrentadas…

10 horas ago