Autora: Shaiane Martins Alves – Bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá | Conclusão em 12/2018. (e-mail: shaianem.adv@gmail.com)
Resumo: O presente trabalho discorre sobre os riscos da condenação pelo crime de estupro de vulnerável baseada exclusivamente na palavra da vítima. O assunto é muito complexo, pois se trata de um crime de repugnância social, gerando consequências graves para quem responde por ele. Logo, uma pessoa que não cometeu tal crime, mas foi acusado injustamente, ainda que consiga provar que não o cometeu, tem sua reputação manchada e, muitas vezes, o seu laço com a suposta vítima rompido. Ocorre que o único meio de prova é a própria vítima, eis que se trata de crime contra pessoa. Porém, na maioria das vezes não é possível a comprovação da materialidade através o exame de corpo de delito, posto que o crime pode ser cometido sem deixar marcas corporais. De outro giro, é de extrema necessidade a realização de avaliação psíquica na vítima, tendo em vista que através dela é possível descobrir se houve abuso ou não. A invenção do crime pode ocorrer tanto pela imaginação da criança, quanto por induzimento de algum parente. Tudo isso é averiguado na avaliação. À guisa de conclusão, levando em consideração que as pessoas que mentem sobre a ocorrência desse crime se respaldam na impunidade, necessário se faz a criação de um novo tipo penal.
Palavras-chaves: Direito Processual Penal. Crimes sexuais. Palavra da vítima.
Abstract: This paper discusses the risks of conviction for the crime of rape of the vulnerable based exclusively on the victim’s word. The subject is very complex, as it is a crime of social disgust, generating serious consequences for those who answer for it. Therefore, a person who did not commit such a crime, but was wrongly accused, even if he can prove that he did not, has his reputation tarnished and, often, his bond with the alleged victim is broken. It turns out that the only form of evidence is the victim himself, since it is a crime against the person. However, in most cases it is not possible to prove materiality by examining the crime, since the crime can be committed without leaving body marks. On the other hand, it is extremely necessary to carry out a psychological assessment on the victim, considering that through it it is possible to find out if there was abuse or not. The invention of crime can occur either by the child’s imagination, or by inducing a relative. All of this is verified in the evaluation. By way of conclusion, taking into account that people who lie about the occurrence of this crime are supported by impunity, it is necessary to create a new criminal type.
Keywords: Criminal Procedural Law. Sexual crimes. Victim’s word.
Sumário: Introdução. 1. O delito de estupro de vulnerável. 1.1. Sujeito passivo. 1.2. Presunção de vulnerabilidade absoluta. 1.3. Consumação e tentativa. 1.4. A prática do crime por um agente menor de 18 anos. 1.5. Erro de tipo. 2. Das provas. 2.1. A importância da avaliação psíquica da vítima nos crimes sexuais. 2.1.1. Falsas memórias do sujeito passivo. 2.2. A desnecessidade de exame de corpo de delito como prova fundamental de materialidade no crime de estupro de vulnerável. 3. As consequências sociais para o sujeito ativo de uma falsa denúncia de estupro de vulnerável. 3.1. Casos de falsa denúncia de crime de estupro de vulnerável no ambiente familiar. 3.1.1. As consequências da concessão de medidas cautelares na relação intrafamiliar. Conclusão. Referências.
Introdução
O presente trabalho consiste na pesquisa sobre os riscos da condenação pelo crime de estupro de vulnerável baseado exclusivamente na palavra da vítima. A ideia de abordar o tema surgiu devido a uma audiência que tive a oportunidade de assistir no meu primeiro estágio.
Nessa audiência, a vítima, que tinha 13 (treze) anos de idade, disse, no momento de seu depoimento, que seu pai, ora réu, não tinha a estuprado, que na verdade tudo foi uma mentira inventada por ela e sua mãe, porque ele tinha arrumado uma outra mulher e saído de casa.
A metodologia utilizada foi a descritiva, e a técnica foi pesquisas bibliográficas, por meio de livros, doutrinas e histórias reais. A intenção dessa pesquisa é demonstrar que, apesar de o delito de estupro de vulnerável ser de grande comoção e muitas vezes gerador de ódio e de vontade de fazer justiças com as próprias mãos, nem todas as vezes que ocorre a denúncia ela é verdadeira.
Surpreendentemente, é bastante comum os casos em que a pessoa comunica a ocorrência do suposto fato ocorrido na delegacia, mesmo sabendo ser mentira, apenas pela vontade de conseguir algo em troca, ou por mera vingança.
Há também os casos em que a suposta vítima é acometida por falsas memórias que a fazem acreditar ter sofrido um abuso o qual não ocorreu. Assim, a atuação da psicologia no deslinde desse crime é primordial.
A questão é complexa, por isso primeiro é necessário entender no que consiste o delito de estupro de vulnerável, quem são os sujeitos passivos, como funciona a presunção de vulnerabilidade.
Também é necessário o devido cuidado com a averiguação do crime, com a correta colheita de provas, como a avaliação psíquica nas vítimas, fator indispensável. Devido ao fato de atos libidinosos configurarem o delito de estupro de vulnerável, há a desnecessidade de exame de corpo de delito como prova fundamental de materialidade.
Além disso, serão abordadas as consequências sociais para o sujeito ativo de uma falsa denúncia de estupro de vulnerável, as consequências da concessão de medidas cautelares na relação intrafamiliar, falsas memórias do sujeito passivo, e erro de tipo no crime de estupro de vulnerável.
O delito de estupro de vulnerável se encontra no artigo 217-A do Código Penal, que prevê como crime ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos, tendo como pena cominada a de reclusão, de 08 (oito) a 15 (quinze) anos. Incorre na mesma pena quem pratica as ações com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
Assim, para sua consumação não necessariamente precisa ser efetivada a conjunção carnal, que consiste no coito vagínico, ou seja, a introdução do pênis na vagina, basta um ato libidinoso, que consiste em todo ato de satisfação da libido, isto é, de satisfação do desejo ou apetite sexual da pessoa.
Além disso, trata-se de um delito material, ou seja, só haverá a consumação com a ocorrência do resultado naturalístico, seja este a conjunção carnal ou outro ato libidinoso.
1.1. Sujeito passivo
Sujeito passivo do crime é o titular do bem jurídico lesado ou ameaçado pela conduta criminosa, ou seja, aquele que sofreu pela infração penal cometida pelo sujeito ativo.
O estupro de vulnerável tem como sujeito passivo o menor de 14 (quatorze anos) e o enfermo ou deficiente mental que não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
Importante ressaltar que, apesar de ser mais falado sobre a prática desse crime contra mulheres, tanto o homem quanto a mulher podem ser sujeitos passivos.
1.2. Presunção de vulnerabilidade absoluta
Importante mencionar que, neste delito, a presunção de vulnerabilidade do menor de quatorze anos é absoluta, conforme Súmula 593 do STJ, que dispõe que o crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.
A Lei 13.718/18, acrescentou o §5º no artigo 217-A do Código Penal, o qual dispõe o seguinte:
“As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.”
Assim, agora tornou-se lei a presunção de vulnerabilidade absoluta não somente quanto ao menor de 14 anos, mas também em relação a quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tenha o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência.
1.3. Consumação e tentativa
Por se tratar de crime material, só haverá a consumação com a ocorrência do resultado naturalístico. Quanto à tentativa, a intenção do agente deverá ser considerada. Se o seu desejo é a conjunção carnal, e a penetração do pênis na vagina não vem a ocorrer por razão alheia à sua vontade, o crime ficará na esfera da tentativa, nos termos do artigo 14, II, do Código Penal, embora outros atos libidinosos, não desejados, mas naturais ao ato, já tenham ocorrido. Se a intenção, por outro lado, é a prática de ato libidinoso diverso à conjunção carnal, o crime estará consumado no momento em que concretizado o ato buscado (por exemplo, toque nos seios).
Muitos autores, todavia, não concordam com esta tese, e entendem que o crime se consuma no momento em que o corpo da vítima é violado. Entretanto, o raciocínio é perigoso, pois pode afastar a incidência do instituto da desistência voluntária, previsto no art. 15 do Código Penal. Por exemplo: o agente, buscando a conjunção carnal, após rasgar a roupa da vítima e tocar em suas pernas, com o intuito de afastá-las para a penetração, desiste do crime, para evitar a condenação pelo estupro de vulnerável. Neste caso, se configuraria desistência voluntária. Entretanto, para os autores que sustentam que o toque no corpo da vítima consuma o crime, pouco importando a sua intenção, o crime de estupro de vulnerável restaria configurado.
1.4. A prática do crime por um agente menor de 18 (dezoito) anos
Partindo da teoria tripartida do crime, onde este é um fato típico, antijurídico e culpável, o menor de 18 anos pode vir a cometer crime, mas não preenche o requisito da culpabilidade, pois é inimputável.
Dessa forma, não pode ser penalmente responsabilizado como se adulto fosse, porque a imputabilidade penal inicia-se aos 18 anos, ficando o adolescente que comete infração penal sujeito à aplicação de medida socioeducativa.
Assim, sua conduta delituosa é denominada tecnicamente de ato infracional, previsto no artigo 103 da Lei 8.069/90, e sua responsabilização corresponderá as medidas previstas no artigo 101 do mesmo diploma legal.
1.5. Erro de tipo
Para discorrer sobre erro de tipo no crime de estupro de vulnerável, antes deve-se entender o que é erro de tipo.
Erro de tipo é uma causa excludente de culpabilidade, logo, ausente o dolo, isento de pena está o agente. Está prevista no artigo 20, caput, do Código Penal.
O erro de tipo se caracteriza pelo fato de o agente não querer cometer a conduta tida como crime, mas, por falsa percepção da realidade, por erro sobre elemento constitutivo do tipo, acaba praticando conduta típica.
Sendo assim, no tocante ao delito de estupro de vulnerável, o elemento constitutivo do tipo é a vítima ser menor de 14 anos, ou ser enfermo ou deficiente mental que não tenha o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência. Logo, se o agente não souber a real idade da vítima, acreditando ser diversa, não constitui dolo, sendo isento de pena.
Importante mencionar que o erro de tipo permite a exclusão do dolo, mas não da culpa. Logo, se o crime tiver previsão de culpa, responderá pelo agente pela modalidade culposa. Porém, como o delito de estupro de vulnerável não admite a modalidade culposa, excluído o dolo não responde o agente por crime nenhum.
Um exemplo de situação de erro de tipo no crime de estupro de vulnerável, abordado por um professor em sala de aula, é a seguinte:
Numa casa noturna, onde só deveria ser permitida a entrada de maiores de 18 anos, o agente vem a conhecer uma pessoa que diz ter 19 (dezenove) anos, idade esta que condiz com a sua compleição física. Porém, na verdade tem apenas 13 (treze) anos. Decidem, então, ir ao motel, onde o ato sexual é praticado.
Neste caso, não haverá o crime estupro de vulnerável, pois houve erro sobre elemento constitutivo do tipo legal – o agente não sabia que estava fazendo sexo com alguém menor de 14 (quatorze) anos. Como não se pune a modalidade culposa, a conduta é atípica. Entrementes, é evidente que o erro só ocorrerá naquelas situações em que a vítima, de fato, aparenta ser maior de 14 (quatorze) anos.
Contudo, importante ressaltar que o erro de tipo deve incidir sobre a idade da vítima, e não sobre a vulnerabilidade. Portanto, se o agente, sabendo que a vítima é menor de 14 (quatorze) anos, com ela faz sexo, sob o argumento de que não a considerava vulnerável pois se prostitui, ou pelo fato de que ela já não era mais virgem, ocorrerá o delito do art. 217-A, pois a presunção de violência é absoluta.
A prova é a fase mais importante do processo, na medida em que se verifica a veracidade das informações fornecidas, sendo fundamental para a obtenção de uma percepção mais próxima da realidade e, consequentemente para a prolação de uma decisão mais justa.
Desta forma, as provas mais usadas na investigação dos crimes de estupro são a palavra da vítima e o exame de corpo de delito, o qual pode ser usado apenas em algumas hipóteses.
Abaixo é possível entender a necessidade de avaliar a palavra da vítima e como esse procedimento é feito. Assim como são demonstrados os casos em que não há necessidade do exame de corpo de delito.
2.1. A importância da avaliação psíquica da vítima nos crimes sexuais
Conforme mencionado anteriormente, um ato libidinoso também configura o delito de estupro de vulnerável. Logo, não necessariamente restará configurado, através de exame de corpo de delito, o cometimento do crime. Isto porque ato libidinoso é um termo muito abrangente, podendo se configurar por lambidas realizadas pelo agente nas partes íntimas da vítima, lambidas realizadas pela vítima nas partes íntimas do agente, o ato de o agente passar as mãos nas partes íntimas da vítima, ou requerer que ela passe nas suas, uma esfregação do pênis na vagina sem a introdução, entre diversas outras possibilidades.
Deste modo, as provas passam a ser apenas o depoimento da vítima ou de testemunhas. Sendo que, devido a natureza do delito, é muito improvável a existência de testemunhas, eis que o agente busca fazê-lo o mais escondido possível. Assim, resta apenas a palavra da vítima.
Ocorre que, devido ao delito incluir como vítima menores de 14 anos, isto engloba, obviamente, crianças de idade muito baixa, que, eventualmente, podem estar fantasiando, o que é natural para a idade. Crianças podem criar histórias na cabeça e exterioriza-las, e às vezes até mesmo acreditar no inventado.[1] Uma criança de determinada idade não tem noção da gravidade da imputação de um delito como o de estupro.
Imagine que uma criança de quatro anos assistindo a novela com os pais viu uma cena em que o mocinho está na cama deitado com a mocinha, trocando carícias. A criança fica com aquilo na cabeça e dois dias depois afirma para a mãe que o tio passou a mão nas partes íntimas dela. É uma situação muito complexa. Cabe primeiro aos pais, ou responsáveis legais, ouvirem o que a criança diz e buscar a fundo. Ocorre que, no calor do momento, muitos acreditam de imediato no que a criança falou e já vão à Delegacia. Neste interim, são abertos inquéritos de um delito gravíssimo para pessoas que podem ser inocentes.
Diante disso, necessário se faz uma avaliação psíquica a fim de confirmar a veracidade dos fatos.
A perícia psicológica realizada em casos de abuso sexual de crianças e adolescentes deve incluir entrevistas com os responsáveis e com a vítima.[2] Uma possibilidade é realizar alguma dessas entrevistas conjuntamente, com vistas à observação da dinâmica familiar. Nesses casos, o psicólogo adquire um papel de julgador, devendo atentar para o grau de incongruência entre as necessidades da criança e as habilidades parentais despendidas.[3] O psicólogo destaca e analisa os aspectos psicológicos das pessoas envolvidas, ocultos por trás das relações processuais. O principal objetivo da perícia psicológica é auxiliar o juiz na tomada de uma decisão, garantindo, consequentemente, os direitos e o bem-estar da criança e/ou adolescente.[4]
É necessário que se atente para o maior número possível de elementos disponíveis, como a coleta do relato da situação vivenciada, a análise das repercussões físicas e psicológicas, entrevistas com os responsáveis, registros escolares, entre outros, a fim de que se obtenham conclusões confiáveis com relação às situações relatadas.[5]
Chagnon apresenta a concepção de que a perícia psicológica realizada nas vítimas deve abarcar, em geral, três objetivos. O primeiro consiste em avaliar se o sujeito que se diz vítima apresenta transtornos ou deficiências que poderiam influenciar o seu comportamento, verificando também se apresenta tendências mitomaníacas, perversas ou de fabulação. O segundo objetivo consiste em apresentar uma avaliação global do periciado, determinando seu grau de inteligência, de atenção, de memória e de representação do real. Como terceiro objetivo a ser atingido, o perito deve avaliar a repercussão dos fatos no psiquismo da vítima, em relação à etapa de desenvolvimento em que esta se encontra.[6]
Para atingir os objetivos propostos, Chagnon propõe que seja realizada, primeiramente, uma entrevista com os responsáveis pela criança, através da qual se busca realizar uma anamnese e obter informações acerca da dinâmica familiar. A entrevista com a suposta vítima permitirá obter, dentre outros dados, informações acerca do seu nível de desenvolvimento intelectual articulado a sua dinâmica afetiva. Desta avaliação global do caso depende a próxima etapa, em que são avaliados a credibilidade do relato e o traumatismo apresentado pelo periciado. Na avaliação da credibilidade, Chagnon propõe que sejam analisadas as características das declarações da criança, suas modalidades gerais, as particularidades do conteúdo e as motivações da declaração, sempre considerando o contexto da relação eventualmente pré-existente com o agressor. Junto à avaliação da credibilidade, deve ser realizada a avaliação do traumatismo, isto é, das consequências decorrentes da suposta agressão sofrida. Com as informações desta etapa, junto aos dados obtidos nas entrevistas com os responsáveis e o periciado, é elaborado o relatório. Para o autor, o relatório deve enfatizar a descrição do desenvolvimento e da organização da personalidade do periciado anteriores e posteriores às supostas agressões, sendo esta a etapa final na realização da perícia.
De maneira geral, destaca-se a importância de os peritos respeitarem o ritmo de discurso da vítima e não emitirem julgamentos sobre o que está sendo relatado. Devem estar atentos para a comunicação não verbal, para a tonalidade emocional e para a postura, aceitando possíveis incoerências, lacunas de informação e contradições no discurso do periciado.[7] Além disso, deve-se cuidar para não contaminar os dados fornecidos pela vítima, criando falsas memórias.
Estudos têm investigado o processo de falsas memórias no relato de testemunhos, identificando que perguntas feitas de forma tendenciosa podem influenciar o relato, conduzindo a falsas confissões e a informações equivocadas, resultando, consequentemente, em depoimentos inverídicos. Deve-se, portanto, fazer perguntas abertas, não tendenciosas, de forma a não influenciar a vítima.[8]
Ao mesmo tempo, na realização da perícia psicológica, é preciso estar atento para a possibilidade de falsas denúncias, como em casos de divórcio, disputas de guarda, pensão alimentícia e alienação parental, situações nas quais um dos cuidadores pode influenciar a criança ou o adolescente a relatar uma situação abusiva com o intuito de prejudicar o genitor que está sendo acusado ou para obter algum tipo de vantagem.[9] Assim, o psicólogo necessita constantemente atentar para esses inúmeros aspectos, considerando, também, que manipular a criança ou o adolescente a dar um depoimento falso pode ser considerado um tipo de violência e, inclusive, acarretar em sérias implicações para o seu desenvolvimento.[10] Portanto, a atividade pericial requer tanto conhecimento aprofundado no assunto, quanto boa capacidade de tomada de decisão, eis que pode ser a prova determinante do processo.
2.1.1. Falsas memórias do sujeito passivo
Quando a palavra memória é pronunciada, geralmente é associada empiricamente ao passado, as experiências e sensações individuais dos seres humanos. Essa relação com o pretérito permite ao ser humano buscar o aprendizado por meio de experiências transeuntes.
Segundo Iván Izquierdo[11], “A memória humana é caracterizada pela capacidade dos seres humanos de adquirir, conservar e evocar informações através de dispositivos neurobiológicos e da interação social”.
No âmbito jurídico a memória tem grande importância, uma vez que no processo penal é relevante que seja evocado memórias sobre determinado acontecimento delituoso, corroborando no processo investigativo em busca da verdade perante aos fatos. Porém, existe o fenômeno das falsas memórias que pode fragilizar os depoimentos de testemunhas, vítimas e até mesmo o depoimento do réu sobre determinado contexto.
As falsas memórias são lembranças de determinado fato que não ocorreram, porém, o indivíduo acredita veemente na existência deste. Na literatura internacional esse fenômeno é foco de diversas pesquisas na busca da explicação sobre essa eventualidade, uma vez que existem questões em torno dos acontecimentos delituosos envolvendo crianças como vítimas de violências físicas e sexuais que prestam depoimentos. Esses depoimentos fragilizados pelas falsas memórias podem ter caráter decisivo tanto na vida da vítima, quanto na do réu.[12]
No crime de estupro de vulnerável, a violência sofrida pela vítima que não detém capacidade suficiente de resistência, podem deixar sequelas físicas e psíquicas que podem ensejar uma desestabilização emocional, tornando prejudicada a recordação das lembranças do crime.
O processo de surgimento das falsas memórias pode ocorrer mediante fatores endógenos, como distorções, e por fatores externos, como por exemplo, informações falsas que são sugeridas ao indivíduo. Baseado nos estudos de Alfred Binet[13], foi sugestionado a existência de dois tipos de memórias, a memória autossugerida e a memória deliberadamente sugerida, posteriormente tais termos foram denominados de falsas memórias espontâneas e sugeridas. As falsas memórias espontâneas são aquelas produto de alterações endógenas, as lembranças são modificadas internamente, como resultado do funcionamento da memória. Já as falsas memórias sugeridas vêm do meio externo, resulta das falsas informações que o indivíduo acaba incorporando a memória original.[14]
O testemunho nos processos penais tende a ser o meio probatório mais recorrente e em alguns processos penais o único meio de prova. Pois, em uma grande porcentagem dos casos não há como recorrer a outros meios forenses de prova, como provas documentais ou periciais. Contudo, a testemunha vale-se da memória para a evocação do fato ocorrido que se pretende elucidar e suas nuances, então assim guiar o veredicto dos julgadores. Toda a importância do testemunho está concentrada na capacidade da vítima ou testemunha de evocar suas memórias e descrever o fato qual como ocorreu.
Diante da análise feita sobre as falsas memórias é possível reconhecer que na instrução criminal faz necessário que o interrogatório seja feito de maneira não tendenciosa, pois como já visto as falsas memórias podem ocorrer por informações externas, por tanto quanto mais determinante for a pergunta e menos sugestiva será melhor para não influenciar com informações errôneas o depoimento da vítima ou pergunta. Exemplos de perguntas que podem ser feitas de forma determinante: “Onde você viu o acusado? Como o acusado estava vestido?”.[15]
Percebe-se que a inexistência de perguntas sugestivas, faculta o depoente evocar sua memória sem a interferência de fatores externos, podendo reduzir o risco de uma falsa memória deliberadamente sugerida. Como as falsas memórias autossugeridas é um processo que ocorre na própria memória do depoente, é mais eficaz testemunhos por relato espontâneo, pois se presume que será sincero e puro.
Assim, é preciso que haja uma cautela na análise dos depoimentos da vítima, porque por mais que o Estado tenha o dever de assegurar a punição do infrator, é preciso cautelar para que não haja punição de um inocente, uma vez que a vítima pode está debilitada emocionalmente para lembrança pura do fato, bem como pode estar sendo induzida pelo fenômeno das falsas memórias, mesmo acreditando veemente na sua lembrança.
2.2. A desnecessidade de exame de corpo de delito como prova fundamental de materialidade no crime de estupro de vulnerável
O Código de Processo Penal, em seu artigo 158 prevê que “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”.
Ocorre que, no delito de estupro de vulnerável, nem sempre há vestígios, pois a prática de atos libidinosos também constituem o crime. Assim, o entendimento dos Tribunais é de que a ausência de exame de corpo de delito não afasta a materialidade do crime. Senão, vejamos:
APELAÇÃO CRIMINAL. RECURSO DEFENSIVO. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PADRASTO QUE É ACUSADO DE ABUSAR SEXUALMENTE DE ENTEADA, ENTÃO COM NOVE ANOS DE IDADE. SENTENÇA CONDENATÓRIA. DEFESA POSTULA ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVA. ADUZ NÃO DEMONSTRADA A MATERIALIDADE DO FATO, EIS QUE ACUSAÇÃO SE PAUTA SOMENTE NO RELATO DA OFENDIDA. RECLAMA AUSENCIA DE EXAME DE CONJUNÇÃO CARNAL, ALEGA INDUÇÃO À MENTIRA POR PARTE DA MÃE E ALEGA CONDUTA SOCIAL FAVORÁVEL. INVOCA O PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO. PEDIDO DESPROVIDO. DEPOIMENTO DA OFENDIDA QUE SE MOSTRA COERENTE EM SEU CERNE DESDE O PRINCÍPIO. INEXISTÊNCIA DE MOTIVOS A SUPOR FALSA INDUÇÃO POR PARTE DA MÃE. BOA CONDUTA SOCIAL E AUSÊNCIA DE LAUDO PERICIAL DISPENSÁVEIS A COMPROVAÇÃO DO TIPO. SENTENÇA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. Recurso desprovido.
(TJ-RS – ACR: 70072554058 RS, Relator: João Batista Marques Tovo, Data de Julgamento: 20/06/2018, Quinta Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 12/07/2018)[16]
Assim, há a perda de tal prova, já que não há como ser realizada, pelos motivos acima expostos. Porém, de acordo com a decisão acima, isso não pode ser usado como fato caracterizador de ausência de materialidade. De tal modo, só resta a palavra da vítima como prova.
O crime de estupro de vulnerável é de grande repúdio. O indivíduo que comete este crime é punido dentro da cadeia – afinal todos sabem o que costuma acontecer com estupradores no presídio – e fora dela. Ao alcançarem a liberdade, os agentes muitas vezes não conseguem voltar para onde moravam antes de terem sido presos, tendo a necessidade de se mudarem com receio de retaliações.
Ocorre que, no tocante as falsas denúncias, sejam por induzimento de genitores, sejam por imaginações férteis de crianças muito novas, ou ainda por outros fatores, as consequências sociais são as mesmas. Apesar de provar na justiça que é inocente, a imagem perante as pessoas permanece manchada. Isto implica na dificuldade de conseguir empregos, nas relações interpessoais e em toda vida do sujeito.
Foi apresentada sugestão legislativa 7/2017[17] pelo programa e-cidadania, a qual propunha que fosse equiparado a hediondo o delito de falsa acusação de estupro. Entretanto, esta foi rejeitada por comissão em decisão terminativa. Especialistas afirmaram que tal sugestão não seria a melhor solução, tendo em vista que inibiria diversas vítimas de denunciarem o crime de estupro.
Ocorre que há necessidade de uma punição mais severa, seja através de novo tipo penal, qualificadora ou causa de aumento de pena. Isto porque os danos são, muitas vezes, irreparáveis.
3.1. Casos de falsa denúncia de crime de estupro de vulnerável no ambiente familiar
Existem casos, mais frequentes do que se imagina, de falsa denúncia de crime de estupro de vulnerável. Tais denúncias ocorrem por motivos familiares, podendo ser pela guarda do filho, por ciúmes entre marido e mulher ou por divórcios mal sucedidos.
Ocorre que, aparentemente, as pessoas não tem noção da gravidade do crime que estão imputando a outrem. E das consequências que acarretam.
Importante mencionar que nos casos em que o falso denunciante não retira a acusação, o sujeito ativo responde por um processo extremamente sério, tendo a obrigação provar sua inocência por algo que jamais pensou em cometer, além de ter que enfrentar as consequências sociais.
3.1.1 As consequências da concessão de medidas cautelares na relação intrafamiliar
Nos casos em que o acusado do crime de estupro de vulnerável mora com a suposta vítima, há imposição de concessão de medidas cautelares previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal, em especial a prevista no inciso III:
“[…]
III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;
[…]”.
Tal medida promove o distanciamento entre o acusado e a suposta vítima, gerando, por diversas vezes, um dano irreparável. Isto porque um processo criminal, ainda mais do delito em questão, demora anos para ser encerrado, devido a necessidade de colheita de provas periciais e estudos psicológicos. Nessa entoada o tempo passa, e mesmo com a comprovação da inocência do acusado ao final, já houve um rompimento no vínculo que não volta mais.
O Jornal Extra, publicou em 27 de maio de 2012, uma notícia[18] sobre uma avó que foi acusada de ter abusado sexualmente do neto, em 2003. No decorrer do processo, o convívio dela com a criança de três anos foi proibido judicialmente. Somente quando o menino completou sete anos, e ela foi inocentada, que pode voltar a recebê-lo em visitas de 15 em 15 dias. Os laços entre os dois, porém, nunca foram recuperados.
Conclusão
A questão apresentada nesse trabalho é complexa, por isso foi explicado no que consiste o delito de estupro de vulnerável, quem são os sujeitos passivos, e como funciona a presunção de vulnerabilidade.
Foi abordada a necessidade de avaliação psíquica nas vítimas, as falsas memórias do sujeito passivo, o erro de tipo, e a desnecessidade de exame de corpo de delito como prova fundamental de materialidade.
Também foram expostas as consequências sociais para o sujeito ativo de uma falsa denúncia e as consequências da concessão de medidas cautelares na relação intrafamiliar.
Assim, é necessário ter em mente que uma condenação pautada exclusivamente na palavra da vítima, no tocante ao crime em questão, exige uma segurança excepcional de que se está indo pelo caminho certo.
Aqui, o princípio do in dúbio pro reo deve ser aplicado no seu máximo aproveitamento, posto que qualquer resquício de dúvida pode ser um fio solto que puxado leva à inocência do réu.
Ademais, as consequências da condenação nestes crimes, em verdade, destroem a vida do condenado inocente, é o falecimento da sua reputação, seu respeito social, seu conforto em família, e é também a chancela para um longo sofrimento dentro da prisão, com práticas que já conhecemos e ignoramos; é ainda, e por fim, a sua pena de morte.
Uma possível saída seria a criação de um novo tipo penal, qual seja, denunciação caluniosa de crime de estupro de vulnerável, baseada na sugestão legislativa 07/2017, porém com alterações, em especial a pena, sendo equiparada a do delito de estupro de vulnerável, podendo, inclusive ser intitulada de artigo 339-A, do Código Penal.
No caso, para configuração deste delito, deveria ser comprovado o dolo do notificante, ou seja, que ele denunciou mesmo sabendo não ter corrido o crime de estupro de vulnerável. Certamente seria uma forma de inibir os irresponsáveis que notificam um crime de tamanha gravidade sabendo ser mentira.
REFERÊNCIAS
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[16] TJ-RS – ACR: 70072554058 RS. Relator: João Batista Marques Tovo. DJ: 20/06/2018. Disponível em: <https://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/599963987/apelacao-crime-acr-70072554058-rs?ref=serp>. Acesso em: 01.nov.2018.
[17] BRASIL. Sugestão legislativa 7/2017. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/128460. Acesso em 14.nov.2018.
[18] JORNAL EXTRA. Nas Varas de Família da capital, falsas denúncias de abuso sexual podem chegar a 80% dos registros. Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/rio/nas-varas-de-familia-da-capital-falsas- denuncias-de-abuso-sexual-podem-chegar-80-dos-registros-5035713.html>. Acesso em: 19 set. 2018.
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