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Saber e poder em Foucault: Por uma insurreição dos saberes jurídicos sujeitados

Resumo O presente artigo propõe abordar de que forma a análise da relação entre saber e poder na obra de Michel Foucault pode ser importante para uma insurreição dos saberes jurídicos sujeitados. A abordagem proposta analisará primeiramente os métodos arqueológico e genealógico com a finalidade de questionar certos discursos que construíram um determinado tipo de conhecimento como universal e, ao mesmo tempo, desqualificaram os demais como locais, descontínuos e menores. Apresentam-se em seguida apontamentos para o desenvolvimento no campo jurídico de pesquisas futuras que possibilitem não somente uma crítica dos discursos hegemônicos, mas também proporcionem um espaço para novas perspectivas de conhecimento a partir dos saberes sujeitados.


Palavras-chave: Saber; Poder; Saberes sujeitados; Saberes jurídicos.


Abstract: This work aims to address how the analysis of the relationship between knowledge and power in the work of Michel Foucault may be important for an uprising of legal subjugated knowledges. The proposed approach first examine the archaeological and genealogical methods in order to question some speeches that build a certain type of knowledge as universal and at the same time discredit the other as local, discontinuous and smaller. The following notes to the development in the legal area of future research that will enable not only a critique of hegemonic discourses, but also provide a space for new perspectives of knowledge from the subjugated knowledges


Key words: Knowledge; Power; Subjugated knowledges; Legal knowledges.


Sumário: Introdução; 1. As ciências do homem entendidas enquanto saberes: a arqueologia; 2. Como o poder produz saber: a genealogia; 3. Os saberes sujeitados e a insurreição dos saberes jurídicos sujeitados; Considerações Finais; Referências.


Introdução


Os saberes jurídicos no pensamento foucaultiano aparecem inseridos na história, relacionados com o problema do poder e da produção da verdade (FONSECA, 2002, p. 156). Suas concepções de verdade e discurso descaracterizam o discurso jurídico como isento e universal, de forma que discursos sobre o direito relacionam-se com as práticas de poder e estas vão influenciar a produção dos discursos sobre o direito.


Seguindo o pensamento foucaultiano, o presente trabalho parte do questionamento da suposta universalidade e verdade do conhecimento científico, na medida em que descarta a diversidade das experiências sociais e culturais e também as alternativas epistemológicas que emergem de tais experiências. Neste sentido, esta pesquisa objetiva abordar como a análise da relação entre saber e poder na obra de Michel Foucault pode ser importante para uma insurreição dos saberes jurídicos sujeitados, entendidos estes como os saberes desqualificados pelo discurso hegemônico e considerados abaixo do nível estabelecido pelos postulados da cientificidade.


Para tentar iniciar um possível caminho em direção ao objetivo proposto é necessário, primeiramente, estabelecer e refletir sobre a relação entre saber e poder a partir dos conceitos de arqueologia e genealogia. Entendido o primeiro como o método próprio da “análise das discursividades locais”, e o segundo como a “tática que faz intervir, a partir dessas discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprendem.” (FOUCAULT, 1999, p. 14-15).


Apresentam-se em seguida apontamentos para o desenvolvimento de pesquisas futuras que visem uma insurreição dos saberes jurídicos sujeitados. Para tanto se destaca além da crítica das categorias jurídicas modernas, o necessário estudo sobre a diversidade jurídica, no sentido de tornar visíveis conhecimentos que foram sujeitados, ou seja, saberes, subjetividade, práticas e memórias que foram relegados à tradição como exemplos primitivos, tradicionais e pré-modernos.


1. As ciências do homem entendidas enquanto saberes: a arqueologia


Um dos principais temas da obra de Michel Foucault é explorar a relação entre discurso e verdade. O seu trabalho pode ser considerado uma critica radical da metafísica ocidental, tal como o de Nietzsche.


Nietzsche considera que a verdade é historicamente produzida por relações de poder. Para a metafísica ocidental, de origem platônica e cristã, existe a noção de verdade absoluta e esta pode ser alcançada pelo pensamento. Os dogmas metafísicos são, entre outros, “A Verdade”, “O Bem” e “Deus”. Nietzsche (2005, p. 28) rejeita tal concepção e designa a metafísica como a ciência que trata dos erros fundamentais do homem como se fossem verdades fundamentais.


Para Foucault (2000, p. 12), seguindo o pensamento de Nietzsche, não existem verdades absolutas, mas cada sociedade “tem seu regime de verdade”, isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros. Ou seja, possui os mecanismos que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos. Assim, um discurso acolhido como verdadeiro além de coagir, julgar, condenar e classificar atua excluindo outros discursos, desqualificando-os perante a sua hegemonia de discurso universalizante.


Foucault adota o método arqueológico para fazer a sua análise dos saberes. (MACHADO, 1981, p. 9) Isso implica na recusa de que existe uma evolução do conhecimento, que este segue em direção à verdade e de que a verdade se dá em oposição ao conhecimento comum.


A riqueza do método arqueológico é que ele possibilita uma reflexão sobre as ciências do homem entendidas enquanto saberes. Investiga suas condições de existência por meio da analise do “que dizem, como dizem e por que dizem – neutralizando a questão de sua cientificidade”. (MACHADO, 1981, p. 11).


Pode-se considerar o saber como um “conjunto de elementos, formados de maneira regular por uma prática discursiva e indispensáveis à constituição de uma ciência, apesar de não se destinarem necessariamente a lhe dar lugar.” Um saber é também o campo de “coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam; finalmente, um saber se define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso.” (FOUCAULT, 1995, p. 206).


Foucault (1996, p. 8-9) diz que há procedimentos de controle e de delimitação do discurso. “Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa.”


 O discurso, não é considerado apenas como um conjunto de fatos lingüísticos. Não é uma “consciência que vem alojar seu projeto na forma externa da linguagem; não é uma língua, com um sujeito para falá-la. É uma prática que tem suas formas próprias de encadeamento e de sucessão.” (FOUCAULT, 1995, p. 193). Vai além da utilização de palavras e frases e da mera referência a “coisas”. Trata-se de “um conjunto de enunciados que se apóia na mesma formação discursiva”. (FOUCAULT, 1995, p. 135).


O enunciado é diferente da proposição e da frase. Pode-se dizer que havendo frase há enunciado, mas existem enunciados que não correspondem a frase alguma, como um quadro classificatório das espécies botânicas ou uma árvore genealógica. O enunciado não é uma unidade do mesmo gênero da frase, proposição ou ato de linguagem, não é uma unidade como um objeto material poderia ser, é uma função que cruza um domínio de estruturas e unidades possíveis e que faz com que apareçam, conteúdos concretos, no tempo e no espaço. (FOUCAULT, 1995, p. 98-99).


 Foucault (1995, p. 109) considera que descrever uma formulação enquanto enunciado não consiste em analisar as relações entre o autor e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer), mas em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito. Sendo assim não cabe a tentativa de colocar na origem de um determinado enunciado um cogito. Segundo Foucault (1995, p. 141)


“A análise dos enunciados se efetua, pois, sem referência a um cogito. Não coloca a questão de quem fala, se manifesta ou se oculta no que diz, quem exerce tomando a palavra sua liberdade soberana, ou se submete sem sabê-lo a coações que percebe mal. Ela situa-se de fato, no nível de um “diz-se” – e isso não deve ser entendido como uma espécie de opinião comum, de representação coletiva que se imporia a todo indivíduo, nem como uma grande voz anônima que falaria necessariamente através dos discursos de cada um.”


Para Deleuze (1988, p. 29), “somos forçados a partir de palavras, de frases e de proposições. Só que as organizamos num corpus determinado, variável, conforme o problema colocado.” Nesse sentido, a originalidade de Foucault está na maneira pela qual ele determina os corpus, não em função de constantes lingüísticas nem em função das qualidades pessoais dos que escrevem ou falam, mas de um “discurso sem referência”. Foucault “não escolhe as palavras, as frases, as proposições de bases segundo a estrutura, nem segundo um sujeito-autor de quem elas emanariam, mas segundo a simples função que exercem num conjunto.” Por exemplo, as regras de internamento no caso do asilo ou da prisão, os regulamentos disciplinares no caso da escola.


Portanto, ao analisar as formações discursivas a partir dos enunciados, a arqueologia questiona a própria idéia de um método histórico imutável sistemático, universalmente aplicável. Além disso, define o que é o saber e realiza uma história dos saberes sem relacioná-los a uma história do progresso e da razão.


A arqueologia indica que a verdade é tão somente um jogo, definido por regras específicas. A verdade é “esse jogo ou conjunto de regras que, numa determinada época e para uma determinada sociedade, autoriza o que é permitido dizer, como se pode dizê-lo, quem pode dizê-lo, a que instituições isso se vincula, etc.” Este conjunto de regras, estabelece “o que deve ser reconhecido como verdadeiro e o que deve ser excluído como desqualificável.” (MUCHAIL, 2004, p. 12).


2. Como o poder produz saber: a genealogia


A partir da genealogia, Foucault abre um novo caminho para análise histórica. Analisa agora não o “como”, mas o “porquê” dos saberes. Pretende explicar “o aparecimento dos saberes a partir de condições de possibilidades externas aos próprios saberes.”(MACHADO, 2000, p. X).


A genealogia pode ser considerada como uma análise dos saberes que procura examinar “a sua existência e suas transformações, situando-os como peças de relações de poder.” (MACHADO, 1981, p. 187).


Foucault não dedica uma obra ao tema poder, entretanto este tema permeia sua obra. A sua análise do poder não visa analisar as formas regulamentadas e legítimas do poder em seu centro. Trata-se de apreender o poder em suas extremidades, em suas formas e em suas instituições mais regionais, mais locais. Principalmente no ponto em que esse poder, indo “além das regras de direito que o organizam e o delimitam, se prolonga, em conseqüência, mais além dessas regras, investe-se em instituições, consolida-se nas técnicas e fornece instrumentos de intervenção materiais, eventualmente até violentas.” (FOUCAULT, 1999, p. 32). Dessa maneira, o autor afasta-se metodologicamente de uma compreensão juridicizada do poder


“O ponto de partida de Foucault ao analisar o tema do poder, portanto, parece ser o desejo de rompimento com aquilo que ele chama de teorias jurídicas do poder. Com efeito, trata-se de romper com todo o arsenal teórico produzido desde a filosofia política moderna no sentido de justificar o poder através do contratualismo. […] A análise econômica posta em prática pela teoria jurídica clássica consiste em associar o poder a um direito, que pode ser possuído e, por conseqüência, transacionado. Em outras palavras, o poder seria algo passível de ser transferido ou alienado, como um bem qualquer. É aqui que entra a figurado contrato, instrumento jurídico por excelência, para operar esse tipo de transação com o poder – como se dá, por exemplo, na constituição do poder político (da soberania), quando os indivíduos supostamente cedem seu poder ao soberano por meio de um pacto.” (POGREBINSCHI, 2004, p. 183)


Tradicionalmente, a filosofia política realiza a seguinte pergunta: “Como o discurso da verdade ou, pura e simplesmente, como a filosofia, entendida como o discurso por excelência da verdade, podem fixar os limites de direito do poder?” (FOUCAULT, 1999, p. 28). Ou seja, o poder é concebido pela a filosofia política em sua relação direta com a lei e com as verdades que a legitimam. O papel essencial da teoria do direito, desde a Idade Média, é o de fixar a legitimidade do poder. O discurso e a técnica do direito tiveram essencialmente como função dissolver, no interior do poder, “o fato da dominação, para fazer que aparecesse no lugar dessa dominação, que se queria reduzir ou mascarar, duas coisas: de um lado, os direitos legítimos da soberania, do outro, a obrigação legal da obediência.” (FOUCAULT, 1999, p. 31).


Tal discurso da legitimidade do soberano, no século XVII, encontra em Hobbes seu maior defensor. Foucault tenta fazer o inverso,


“[…] ou seja, deixar, ao contrário, valer como um fato. Tanto em seu segredo como em sua brutalidade, a dominação, e depois mostrar, a partir daí, não só como o direito é, de uma maneira geral, o instrumento dessa dominação – isso é óbvio – mas também como, até onde e sob que formas, o direito (e quando digo o direito, não penso somente na lei, mas no conjunto de aparelhos, instituições, regulamentos que aplicam o direito) veicula e aplica relações que não são de soberania, mas sim de dominação”. (FOUCAULT, 1999, p. 31).


Os poderes não são analisados, portanto, como derivados da soberania, mas buscam-se extrair das relações de poder, histórica e empiricamente, seus operadores de dominação. O direito é examinado não a partir de uma legitimidade, mas sob os aspectos de procedimento de sujeição. Sendo assim, o problema adequado sobre o poder seria este: “Qual é esse tipo de poder capaz de produzir discursos de verdade que são, numa sociedade como a nossa, dotados de efeitos tão potentes?” Em poucas palavras, Foucault (1999, p. 29) responde


“[…] em qualquer sociedade – múltiplas relações de poder perpassam, caracterizam, constituem o corpo social; elas não podem dissociar-se, nem estabelecer-se, nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação, um funcionamento do discurso verdadeiro. […] somos forçados a produzir verdade pelo poder que exige essa verdade e que necessita dela para funcionar. […] Temos de produzir a verdade como, afinal de contas, temos de produzir riquezas, e temos de produzir a verdade para produzir riquezas. E, de outro lado, somos igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a verdade é a norma; é o discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele próprio propulsa efeitos de poder. Afinal de contas, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer, em função de discursos verdadeiros, que trazem consigo efeitos específicos de poder. Portanto: regras de direito, mecanismos de poder, efeitos de verdade.”


Os mecanismos do poder são assim analisados entre estes dois pontos de relação: as regras de direito que delimitam positivamente o poder e as verdades que tal poder formalizado produz. De tal modo se estabelece a relação triangular entre esses três conceitos: poder, direito e verdade. (FOUCAULT, 1999, p. 28).


Trata-se, portanto, da análise das relações de poder em seu caráter produtor de realidades. O poder deve ser considerado como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir. A reflexão foucaultiana opera, portanto, um deslocamento de uma noção repressiva e negativa de poder para uma abordagem produtiva do mesmo, um poder estimulador de discursos e práticas.


No que tange às relações de poder, Foucault constata que no decorrer séculos XVII e XVIII muitas transformações passam a ser operadas. O poder de soberania é substituído gradualmente pelo poder disciplinar, as monarquias soberanas se transformam aos poucos em sociedades disciplinares.


O poder disciplinar surge a partir das transformações da sociedade européia, com o deslocamento de um poder soberano para um corpo burocrático disseminado ao longo do tecido social. Tem como função “‘adestrar’ as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais” A disciplina busca “fabricar” indivíduos. É “a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício.” (FOUCAULT, 1993, p. 153).


Foucault estabelece as características básicas do poder disciplinar. Em primeiro lugar é uma técnica de distribuição dos indivíduos através da inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório. Em segundo lugar o poder disciplinar se caracteriza pela distribuição ordenada das atividades dos indivíduos num tempo controlável. Em terceiro lugar, é um instrumento de vigilância.


A distribuição é realizada por meio de táticas tais como, o horário, a elaboração temporal do ato, a utilização exaustiva do tempo, através dos discursos de verdade. O poder serve-se de tais instrumentos para docilizar os corpos, isto é, para fazer, de cada um, um “sujeito-sujeitado”. (FOUCAULT, 1993, p. 130).


Os indivíduos estão expostos à vigilância de forma contínua, perpétua, permanente. Ela não tem limites, penetra nos lugares mais recônditos, está presente em toda a extensão do espaço. (FOUCAULT, 1993, p. 177).


O modelo disciplinar por excelência é o Panopticon de Jeremy Benthan. Foucault (1993, p. 177) descreve tal arquitetura da seguinte forma


“[…] na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário, ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível.”


Essa arquitetura tem o objetivo de fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, “mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce.” (FOUCAULT, 1993, p. 166).


O Panopticon é utilizado como modelo para hospitais, fábricas, prisões e escolas, permitindo o estabelecimento de normas, mecanismos de controle e, principalmente, a disciplina.


“É o diagrama de um poder que não atua do exterior, mas trabalha o corpo dos homens, manipula seus elementos, produz seu comportamento, enfim, fabrica o tipo de homem necessário ao funcionamento e manutenção da sociedade industrial capitalista. Ligada à explosão demográfica do século XVIII e ao crescimento do aparelho de produção, a dominação política do corpo que ela realiza responde à necessidade de sua utilização racional, intensa, máxima, em termos econômicos. Mas, por outro lado – o corpo só se torna força de trabalho quando trabalhado pelo sistema político de dominação característico do poder disciplinar”. (MACHADO, 2000, p. XVII).


O poder disciplinar, a partir da segunda metade do século XVIII, é complementado pelo biopoder. Ambas as espécies de poder passam a coexistir no mesmo tempo e no mesmo espaço.


O biopoder diz respeito à “assunção da vida pelo poder”, isto é, uma “tomada de poder sobre o homem vivo, uma espécie de estatização do biológico”, operada a partir de meados do século XIX. (FOUCAULT, 1999, p. 285-289). Foucault denominou como “limiar de modernidade biológica” o momento em que a política torna-se biopolítica. Durante milênios o homem permaneceu o que era para Aristóteles: “um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão.” (FOUCAULT, 2003, p. 134)


Tal poder não está direcionado ao adestramento dos corpos individuais, mediante a implementação da disciplina, mas objetiva reger a multiplicidade dos homens não na medida em que eles se resumem em corpos, “mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.” (FOUCAULT, 1999, p. 289).


Não se trata mais de um poder soberano que tem sua força no fazer morrer e deixar viver e que é exercido a partir do momento em que o soberano pode primeiramente matar. O biopoder é uma tecnologia de governo que tem o poder de “fazer viver” àqueles grupos populacionais que se adaptem ao perfil do Estado capitalista e tem o poder de “deixar morrer” os que não se adaptam.


O que é necessário observar é que nos processos através dos quais se exerce o biopoder há ao mesmo tempo uma extensa produção de saber. São os mecanismos do biopoder que irão produzir um saber sobre a população e permitir uma atuação sobre ela.


“Entram em campo as ciências exatas e biológicas: a Estatística e a Biologia, principalmente, passam a ser extremamente importantes nesse momento em que se necessitam de demografias, políticas de natalidade, soluções para endemias, entre outras coisas mais. A questão da higiene pública passa a ser a principal pauta da Medicina e, com ela, podemos pensar que o biopoder assume uma certa forma de poder de polícia, tal como entendemos essa última modalidade de poder contemporaneamente. O biopoder traz ainda consigo novos mecanismos e novas instituições, tais como a poupança e a seguridade social”. (FOUCAULT, 1999, p. 290-291).


 A chave para que se possa encontrar um núcleo comum entre os conceitos de poder disciplinar e biopoder é que em ambos permanece, portanto, o poder-saber. A idéia do poder enquanto produtor de saber.


Um dos objetivos de Foucault com a análise do poder-saber parece indicar para o estabelecimento das lutas travadas entre os saberes sujeitados e os discursos dominantes.


3. Os saberes sujeitados e a insurreição dos saberes jurídicos sujeitados


As ciências do homem, diz Deleuze (1988, p. 82), não podem ser separadas das relações de poder que as “tornam possíveis e que suscitam saberes mais ou menos capazes de atravessar um limiar epistemológico ou de formar um conhecimento.” O poder, considerado abstratamente, não vê e não fala, entretanto faz ver e falar. A determinação de um corpus de frases e de textos para se extrair enunciados só pode ser feita designando os focos de poder dos quais esse corpus depende. De forma que “se as relações de poder implicam as relações de saber, estas, em compensação, supõe aquelas.” (DELEUZE, 1988, p. 89-90) Deste modo, ao fazer ver e ao fazer falar o poder produz verdades.


A verdade muitas vezes é apresentada a partir dos “discursos científicos”. O discurso de um “doutrinador”, ou de um juiz é considerado como verdade devido ao cientificismo. Por isso, a principal estratégia do discurso científico é desqualificar os saberes não-científicos, sujeitá-los. Foucault (1999, p. 15) pergunta


“Quais tipos de saber vocês querem desqualificar no momento em que vocês dizem ser esse saber uma ciência? Qual sujeito falante, qual sujeito discorrente, qual sujeito de experiência e de saber vocês querem minimizar quando dizem: eu, que faço esse discurso, faço um discurso científico e sou cientista?”


Os saberes desqualificados pelo discurso científico hegemônico tornam-se discursos periféricos. Foucault (1999, p. 11-12) chama de saberes sujeitados os “conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações formais.” Além disso, podem ser considerados saberes sujeitados, “toda uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores.”


Tais saberes sujeitados são considerados abaixo do nível estabelecido pelos postulados da cientificidade. São examinados como “locais”, “descontínuos”, “menores” e, assim sendo, não legitimados pelos discursos hierarquizantes e universalizantes que estão de acordo com as exigências da ciência e da verdade.


Neste sentido a genealogia, segundo Foucault, é um empreendimento de insurreição dos saberes sujeitados. Visa libertar da sujeição os saberes históricos, isto é, “capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico.” Trata-se da reativação dos saberes locais e menores contra a hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos de poder intrínsecos. (FOUCAULT, 1999, p. 14)


O conceito de colonialidade de saber, desenvolvido por alguns teórico latino-americanos associados ao pensamento descolonial, dialoga com o conceito foucaultiano de saberes sujeitados. A colonialidade do saber, não apenas estabelece o eurocentrismo como perspectiva única de conhecimento, mas também descarta as outras produções intelectuais. (ESCOBAR, 2003, p. 51). Podem ser considerados como autores vinculados a esta corrente, o filósofo Enrique Dussel, o antropólogo e teórico literário e cultural Walter Mignolo, o sociólogo Aníbal Quijano, o filósofo Santiago Castro-Gómez, o sociólogo Ramón Grosfoguel, entre outros.


A colonialidade é um dos temas centrais das chamadas teorias descoloniais e deve ser diferenciado de colonialismo. Colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberania de um povo reside no poder de outro povo ou nação. A idéia de colonialidade refere-se a um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, porém, ao invés de estar limitado a uma relação formal de poder entre dois povos, refere-se à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas articulam-se entre si. Embora o colonialismo preceda a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Ela se mantém viva nos manuais de aprendizagem, nos critérios para um bom trabalho acadêmico, na cultura, no senso comum, na auto-imagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos. Neste sentido, respira-se a colonialidade na modernidade cotidianamente. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131).


Lander (2005, p. 26) propõe analisar a colonialidade do saber como dispositivo que organiza a totalidade do espaço e do tempo de todas as culturas, povos e territórios do planeta, presentes e passados numa grande narrativa universal.


“Da constituição histórica das disciplinas científicas que se produz na academia ocidental interessa destacar dois assuntos fundacionais e essenciais. Em primeiro lugar está a suposição da existência de um metarrelato universal que leva a todas as culturas e a todos os povos do primitivo e tradicional até o moderno. A sociedade industrial liberal é a expressão mais avançada desse processo histórico, e por essa razão define o modelo que define a sociedade moderna. A sociedade liberal, como norma universal, assinala o único futuro possível de todas as outras culturas e povos. Aqueles que não conseguirem incorporar-se a esta marcha inexorável da história estão destinados a desaparecer. Em segundo lugar, e precisamente pelo caráter universal da experiência histórica européia, as formas do conhecimento desenvolvidas para a compreensão dessa sociedade se converteram nas únicas formas válidas, objetivas e universais de conhecimento. As categorias, conceitos e perspectivas (economia, Estado, sociedade civil, mercado, classes, etc.) se convertem, assim, não apenas em categorias universais para a análise de qualquer realidade, mas também em proposições normativas que definem o dever ser para todos os povos do planeta. Estes conhecimentos convertem-se, assim, nos padrões a partir dos quais se podem analisar e detectar as carências, os atrasos, os freios e impactos perversos que se dão como produto do primitivo ou o tradicional em todas as outras sociedades”. (LANDER, 2005, p. 33-34).


As outras formas de ser, de organização da sociedade e de conhecimento, são transformadas “não só em diferentes, mas em carentes, arcaicas, primitivas, tradicionais, pré-modernas. São colocadas num momento anterior do desenvolvimento histórico da humanidade.” Ou seja, “aniquilação ou civilização imposta definem, destarte, os únicos destinos possíveis para os outros” . (LANDER, 2005, p. 34).


Tanto o direito como o estado, por estarem vinculados a esta tradição moderna são considerados como soluções universais que devem ser aplicadas em toda parte. “As ‘leis do direito’ são dessa forma, abordadas como ‘leis naturais’ ou as ‘leis da natureza’” (EBERHARD, 2004, p. 116-117). Isto é, confundem uma forma de direito com “O Direito”.


Clavero (1994, p.21-22) afirma, com relação à América Latina, que a negação do direito do colonizado começou pela afirmação do direito do colonizador, pela negação de um direito coletivo por um direito individual. O europeu colonizou as terras vazias da América, um território que foi considerado vazio juridicamente porque não estava povoado de indivíduos que respondiam às exigências da própria concepção. Deste modo foi estabelecida uma ordem de direitos universais de todos os seres humanos como um passo para exatamente negar o direito à maioria deles.


O que aconteceu, de fato, pode ser qualificado com o nome de imperialismo jurídico, a fórmula de imposição de um direito em substituição aos direitos das culturas e minorias. O imperialista põe seu direito no lugar dos direitos dos povos dominados, os tolera na medida que não prejudiquem seu interesse. (SORIANO, 2004, p. 116-117). Para Soriano essa tem sido a atitude dos colonizadores, não só no passado, mas também na atualidade.


Falar de insurreição de saberes sujeitados e colonialidade do saber remete a idéia de pluralismo jurídico. Para Wolkmer (1997, p.195), pluralismo jurídico pode ser entendido como: Multiplicidade de práticas jurídicas existentes num mesmo espaço sócio- político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais. O pluralismo jurídico implica na necessária emancipação do mito da supremacia do direito estatal, isto é, pela capacidade de abordar epistemologicamente as diferentes manifestações da juridicidade, sem ter como única referência o direito ocidental moderno.


Neste sentido pode ser importante importante o olhar a partir da diversidade jurídica pois o olhar antropológico coloca em questão a visão da lei não como um elemento universal e abstrato, mas como algo construído pela ação humana que assume formas distintas em cada cultura. Apresenta, dessa forma, um potencial para o desenvolvimento de alternativas epistemológicas de descolonização do saber e para insurreição dos saberes jurídicos sujeitados, pois revela também formas de conhecimentos encobertas pelo direito hegemônico. (DAMÁZIO, 2008)


Considerações Finais


Neste trabalho procurou-se demonstrar que as análises foucaultianas sobre arqueologia, genealogia e saberes sujeitados proporcionam novas ferramentas que possibilitam questionar os saberes jurídicos e suas categorias que afirmam ser verdadeiras e universais.


É importante, portanto, que se analise primeiramente a relação entre poder e saber que constitui o conhecimento jurídico. Só assim pode ser feita uma leitura desconstrutiva da visão tradicional e moderna do direito. Com isso abre-se o espaço para captar as alternativas contra-hegemônicas de outras experiências jurídicas que emergem das relações sociais e culturais.


A contribuição da perspectiva foucaultiana para o jurídico resulta em conseqüências práticas, não se trata de um assunto meramente teórico, mas abrange uma nova forma de posicionamento em benefício da “insurreição dos saberes” que foram sujeitados, contribuindo assim para a abertura de um diálogo entre distintos grupos humanos sobre as diversas concepções do jurídico.


 


Referências

CLAVERO, Bartolomé. Derecho indígena y cultura constitucional en América. México: Siglo XXI, 1994.

DAMÁZIO, Eloise da Silveira Petter. Antropologia, alteridade e Direito: da construção do “outro” colonizado como inferior a partir do discurso colonial à necessidade da prática alteritária. In: COLAÇO, Thais Luzia.(Org.). Elementos de Antropologia Jurídica. Florianópolis: Conceito, 2008, p. 217-240.

DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 1988.

EBERHARD, Christoph. Direitos Humanos e Diálogo Intercultural: uma perspectiva antropológica. In BALDI, César Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

ESCOBAR, Arturo. Mundos y conocimientos de otro modo. El programa de investigación de modernidad/colonialidad latinoamericano. Tabula Rasa. Revista de Humanidades, Bogotá, Colombia, n.1, p. 51-86, jan./dez. 2003.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

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Informações Sobre o Autor

Eloise da Silveira Petter Damázio

Doutoranda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Filosofia do Direito e Antropologia Jurídica. Atuando principalmente nos seguintes temas: relação poder-saber, discurso colonial, pós-colonialismo e pensamento descolonial.


Equipe Âmbito Jurídico

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