Resumo: A Constituição Federal de 1988 determinou uma nova concepção de segurança pública com a ampliação de seus agentes. A segurança passou a ser considerada dever de todo o cidadão, descaracterizando teoricamente a exclusividade dos órgãos policiais no tratamento do assunto. Todavia, a abordagem repressiva da violência e da criminalidade, em virtude das conseqüências desastrosas de seu crescimento, tem preponderado nesta sociedade, ainda que considerada democrática. Por isso, mesmo com vinte anos de promulgação, a luta pela efetivação da disposição constitucional de uma política cidadã referente ao tema constitui caráter recente. Ante ao exposto, o presente trabalho pretende apresentar o paradigma atual da segurança pública, sua fundamentação e pretensões.
Palavras-Chave: Segurança pública – democracia – cidadania – direitos humanos – polícia comunitária.
Abstract: The Federal Constitution of 1988 determined a new conception of public security with the amplification of its agents. Security started being considered a duty of every citizen, theoretically uncharacterizing the exclusivity of police departments to deal with this subject. However, the repressive approach of violence and criminality, due to their growth disastrous consequences, has preponderated in this society, even though being it considered democratic. Therefore, in spite of the twenty years of promulgation, the struggle for the accomplishment of constitutional availability of a citizenly politics referring to the theme is of recent character. Herein, this work intends to present the current paradigm of public security, its fundamentation and pretensions.
KeyWords: Public Security – democracy – citizenship – human rights – police community.
Sumário. Introdução. 1. Segurança pública: previsão constitucional e sua prática. 2. Evolução da estrutura política federal em segurança. 3. Segurança Cidadã. Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
A análise histórica brasileira demonstra uma sociedade caracterizada pela reprodução de modelos e conceitos provenientes de culturas em destaque mundial. Com isso, devido à falta de correspondência ao momento vivenciado pela realidade nacional, muitas determinações legislativas e comportamentais disciplinadas não foram efetivamente incorporadas. Considerando a abertura política promovida pela Constituição Federal de 1988, houve a legitimação de garantias sequer questionadas na época, tornando imprescindível o planejamento de sua implementação. A lacuna gerada pela ausência dessa etapa resultou na atuação incoerente dos órgãos atingidos por essa mácula.
A segurança, como dever e garantia da cidadania, tornou-se um dos mais relevantes instrumentos da democracia. Entretanto, mobilizada segundo orientações arcaicas, promoveu o retrocesso aos valores totalitários. Ainda predomina na população a compreensão da segurança como função exclusiva da polícia, bem como que a redução da violência e da criminalidade se obtém através do aumento do contingente policial, de sua manifestação invasiva e rigorosa. A própria instituição mantém opiniões conflitantes oriundas de remanescentes teóricos calcados no militarismo, em um conservadorismo inerte.
Ocorre que o fenômeno da criminalidade, por ser demasiadamente complexo, envolve questionamentos que superam as meras exigências provenientes da crescente demanda por serviços de proteção. A violência propriamente dita é considerada uma reação a algo, uma tentativa de corrigir o que o diálogo não foi capaz de resolver (DUTRA, 2008); uma resposta ao fracasso, às frustrações, ao desrespeito e à prepotência. Enfim, pode assumir significados que extravasam as relações interpessoais, abrangendo o processo de vitimização, a violência estrutural propagada pela desigualdade da distribuição de renda e pela dominação de classes (STRAUB, 2005). Portanto, a violência e a criminalidade podem ser consideradas sintomas sociais que exigem o diagnóstico de sua causa, para o tratamento específico; comprovando-se, através do exposto, a ineficácia da abordagem repressiva e mecânica do tema (DUTRA, 2005).
A atenção ao diagnóstico, à avaliação e ao planejamento de ações em segurança pública pelo Estado adquiriu relativa estabilidade somente a partir de 2000 com o Plano Nacional de Segurança Pública e em 2003 com a consolidação da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), órgão responsável pela implantação e execução da política nacional de segurança. Atualmente, a noção de Segurança Cidadã constitui referência central na luta pela exclusão definitiva do modelo repressivo e pela construção de um novo paradigma, cuja apresentação é um dos objetivos deste estudo.
1. Segurança Pública: Previsão Constitucional e sua Prática
A Constituição Federal de 1988 destinou um capítulo específico para o tratamento da matéria. No Título V, artigo 144, consagra o dever do Estado, bem como o direito e a responsabilidade de todos nas questões relativas a essa garantia; destacando o exercício em prol da preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, efetuado pelas polícias federal, rodoviária federal, ferroviária federal, civil, militar e corpo de bombeiros. Não obstante a ausência de considerações explícitas, suas atividades incluem a participação do Poder Judiciário, do Ministério Público e do Sistema Penitenciário. Dessa forma, objetivou-se através da interação de órgãos estatais e comunidade, a prevenção e o controle das manifestações da violência, garantindo o exercício da cidadania, bem maior tutelado pelo sistema democrático.
Entretanto, a gestão independente de cada unidade federativa sobre suas respectivas forças policiais e as atribuições específicas de cada órgão exige extremo equilíbrio na coordenação das diversas políticas públicas implementadas, para concretizar a interação necessária prevista pela abordagem eleita. A omissão da análise deste aspecto contribuiu para o fracasso dos projetos implementados, bem como a fomentação de discursos demagógicos e na retórica vazia segundo os quais a brutalidade policial significa, sobretudo, competência (SOARES, 2006). Com isso, o policiamento brasileiro assumiu as características de um sistema moderadamente descentralizado e multiplamente descoordenado, haja vista o exercício de mais de uma força sobre a mesma área, enfatizando a competição e sobreposição de autoridades (JÚNIOR, 2008).
A colaboração e a integração comunitária, concebidas como relevantes fundamentos para a nova concepção da ordem pública, experimentam lento desenvolvimento. Em virtude do intenso processo de exclusão social que assola a sociedade brasileira, a população mais carente em segurança conhece apenas a face repressiva e retrógrada da força policial. Sua cultura se ressente do espírito comunitário, permitindo que o individualismo e o paternalismo dificultem os esforços destinados a sua participação. A urbanização acentua a secessão. Mesmo quando superado este óbice, prevalecem reivindicações em detrimento da mobilização para a autoproteção, autoajuda e solidariedade. Além disso, o próprio poder público desconfia da participação da comunidade na resolução de seus problemas (SULOCKI, 2007).
A reforma constitucional negligenciou o tema, uma vez que sequer elaborou projetos para a adequação das instituições policiais ao regime democrático. A segurança pública permaneceu indiferente e imóvel, mantendo estruturas funcionais e organizacionais conservadoras, herdando a tradição autoritária. Foi necessária a atitude extrema de um cidadão sobrevivente da chacina da Candelária, para que surgisse o primeiro plano de segurança desenvolvido após a redemocratização. [1]
2. Evolução da Estrutura Política Federal em Segurança
O movimento para a inovação da segurança pública iniciou em 1995, com a Medida Provisória nº 813, que instituiu a Secretaria de Planejamento de Ações Nacionais de Segurança Pública (SEPLANSEG), primeiro órgão direcionado à articulação de ações nacionais referentes ao assunto. Logo em seguida, em 1997, foi convertida em Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), tendo competências e atribuições ampliadas. Sofreu várias alterações nos anos seguintes, alcançando destaque com a instituição do Plano Nacional de Segurança Pública e a criação do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) em 2000. Todavia, consolidou-se como órgão central de planejamento das ações de segurança com a execução do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) em 2003 (PRONASCI, 2007).
À Secretaria Nacional de Segurança Pública compete, entre outros objetivos, o planejamento, a implementação e a avaliação de programas do Governo Federal para a área; a promoção da integração dos órgãos de segurança pública, da interface de ações com organismos governamentais e não-governamentais; o estímulo e a proposição de planos aos órgãos estaduais. Ao Fundo Nacional de Segurança Pública cabe apoiar projetos estatais, municipais e sociais de prevenção à violência, formando um sistema de distribuição de recursos. Nesta legislação está implícita a concepção de um Sistema Único de Segurança Pública, uma vez que se percebe a coordenação descentralizada e compartilhada da política pública, através da articulação de fundos provenientes dos três níveis de governo e da participação de diversas esferas da sociedade. Estimula-se a elaboração de planos de segurança pública pelos Estados, haja vista que o repasse do recurso exige apresentação e apreciação conjunta, aliada à execução dos projetos previstos (PRONASCI, 2007).
3. Segurança Cidadã
A noção de segurança cidadã constitui a síntese teórica que fundamenta a política de segurança pública apresentada, visando sua compatibilização com o modelo democrático. Nesta senda, visa resgatar a cidadania, a solidariedade e o respeito aos direitos humanos no cerne dos órgãos estatais envolvidos na efetivação da segurança, bem como em toda a sociedade. Sua atuação prioriza ações que promovam a valorização dos direitos humanos, mobilizando principalmente a educação como instrumento de transformação e de sistematização do conhecimento de seus participantes.
Tais atitudes superam o sistema policial convencional, instituindo a atuação preventiva e repressiva qualificadas, valorizando a resolução pacífica dos conflitos, motivando a interação das instituições à comunidade. Dessa forma, a sociedade civil além de exigir o cumprimento de metas, atua como fiscalizador da probidade do sistema, controlando, inclusive, a prestação da justiça (PRONASCI, 2007).
O Projeto Segurança Cidadã adotou a abordagem estratégica de suas atividades. Haja vista que empresas utilizam este método para superar as instabilidades do mercado e vencer a concorrência, também as vicissitudes ocasionadas por conflitos destrutivos podem ser amenizadas. No cerne da luta contra a violência e a criminalidade, as organizações representam um meio de alcançar essa pretensão, desde que seja mobilizada a estratégia como instrumento e que a redução das taxas delitivas configure entre os resultados esperados. Considerando que o planejamento estratégico determina a avaliação das peculiaridades do contexto, para a partir da construção de seu diagnóstico destinar o tratamento específico; constitui, então, procedimento compatível às exigências exaradas pela abordagem da criminalidade.
Amparando-se nessas constatações, foi instituído o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, através da edição da Medida Provisória nº 416, prevendo a realização de um conjunto de 94 ações, articulando órgãos, estados, municípios e comunidade. Entre os valores endossados pela medida, destaca-se a possibilidade de aliar-se os direitos humanos à prática policial eficiente, já que ambos são considerados imprescindíveis nesse contexto; a legitimidade da prevenção e da repressão qualificada; a valorização da função histórica da polícia; o aparelhamento das instituições policiais e o aperfeiçoamento da educação pública, os quais resultam na igualdade material do acesso à justiça (PRONASCI, 2007).
Conclusão
A República Federativa do Brasil, por constituir um Estado Democrático de Direito, visa à transformação da realidade social a partir da tutela dos ideais democráticos e do respeito aos direitos fundamentais, apoiando-se eminentemente na valorização da cidadania e da dignidade da pessoa humana. Segundo essa afirmação, seu compromisso de construir uma sociedade livre, justa e solidária e de erradicar as formas de discriminação não correspondia às práticas de segurança pública adotadas, mesmo diante de explícita determinação constitucional.
Todavia, ainda que aos vinte anos da promulgação da Constituição Federal, o modelo de segurança pública idealizado principia sua adequação material às garantias fundamentais, bens maiores perseguidos por todo cidadão. Não há democracia onde a liberdade é considerada uma exceção, onde a punição, a atuação inquisitiva rotula como crime disparidades sociais, políticas e culturais.
Ainda há muito a ser feito, entretanto, sugere-se a ênfase no estímulo da atuação do poder público como aglutinador das forças comunitárias, a fim de inseri-las na formação de políticas públicas de segurança e com isso usufruir a possibilidade de resolução democrática dos conflitos proposta pela Constituição.
Graduada em Odontologia pela Universidade Federal de Santa Maria /RS, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria/ RS, Especialista em Ciências Criminais pela Unama/IDRS, Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pela Fadisma/RENAESP, Especializanda em Gestão da Segurança Pública na Sociedade Democrática pela ULBRA/RENAESP, Perita Odonto-legista do Instituto Geral de Perícias do RS
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