Segurança pública e Justiça restaurativa: apontamentos para a reflexão da necessidade de uma política pública integrada

Resumo: O presente trabalho trata do tema da Segurança Pública e da Justiça Restaurativa. O objetivo é destacar alguns pontos essenciais na temática para a reflexão acerca da polícia e do sistema penal, bem como a relação entre esses. Estudo realizado a partir da revisão bibliográfica. Na primeira parte aborda-se na Segurança Pública, a questão da polícia: definição, breve história acerca do surgimento, buscando compreender o atual formato de polícia no Brasil. Após, apresenta-se argumentos para um novo modelo de polícia, integrado ao planejamento de políticas públicas com outras áreas. Nesse sentido, a segunda parte trata da Justiça Restaurativa, refletindo acerca das dificuldades do atual sistema penal e das novas possibilidades a partir dessa nova proposta em parceira com o Poder Judiciário. Conclui-se pela necessidade de uma visão de polícia numa perspectiva humanística, onde a proteção aos cidadãos e ao exercício de seus direitos figure como função essencial; para tanto, faz-se necessário pensar a questão da segurança pública integrada a outras áreas da esfera pública.

Palavras-Chave: Segurança. Polícia. Políticas Públicas. Justiça Restaurativa.

Abstract: The present work treats of the Public Safety's theme and of the Restorative Justice. The objective is to detach some essential points in the theme for the reflection concerning the police and of the penal system, as well as the relationship among those. Study accomplished starting from the bibliographical revision. In the first part it is approached in the Public Safety, the subject of the police: definition, brief history concerning the appearance, looking for to understand the current police format in Brazil. After, he comes arguments for a new police model, integrated into the planning of public politics with other areas. In that sense, the second part treats of the Restorative Justice, contemplating concerning the difficulties of the current penal system and of the new possibilities starting from that new proposal in partner with the Judiciary Power. It is concluded by the need of a police vision in a humanistic perspective, where the protection to the citizens and the exercise of their rights represents as essential function; for so much, it is done necessary to think the public safety's subject integrated into other areas of the public sphere.

Keywords: Safety. Police. Public Politics. Restorative Justice.

Sumário: Introdução. 1. Segurança Pública. 1.1 Situando a temática: definições importantes. 1.2 O surgimento das polícias no mundo e no Brasil. 1.3 A questão da segurança pública e a polícia que temos no Brasil. 1.4 Por um novo modelo de polícia e por políticas públicas integradas a outras áreas. 2. Justiça Restaurativa: um olhar diferenciado para a aplicação do direito penal. 2.1 As dificuldades do atual sistema penal. 2.2 O modelo de Justiça Restaurativa. Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução

O presente estudo objetiva refletir acerca da Segurança Pública e da Justiça Restaurativa, temas de extrema relevância na atualidade, quer pela crescente onda de violência e criminalidade no país, quer pela preocupação política em pautar alternativas que possam efetivamente diminuir à criminalidade.

No ambiente acadêmico, estudo sobre o tema da Segurança Pública, mais exatamente acerca da Polícia, apresenta-se como uma urgência. Nesse sentido, evidencia-se também a importância de pensar a questão da Segurança Pública e da elaboração de políticas públicas conjuntamente com outras áreas, como saúde, educação, moradia, cultura, etc.

Logo, destacam-se alguns pontos essenciais na temática para a reflexão acerca da polícia e do sistema penal, bem como a relação entre esses. De acordo com a estrutura adotada na abordagem, pretende-se evidenciar acerca da responsabilidade de todos, enquanto cidadãos no debate e proposição sobre a questão da Segurança Pública.

Assim, far-se-á um enfoque emblemático acerca da questão da segurança pública. Em seguida, será delineada o procedimento da Justiça Restaurativa, como sendo uma alternativa a ser praticada junto ao sistema penal atual, de modo que permite uma ressocialização mais adequada e efetiva.

1. Segurança Pública

1.1 Situando a temática: definições importantes

O tema da segurança pública, de acordo com o art. 144 da Constituição Federal de 1988, no Capítulo III, do Título V – Da defesa do Estado e das Instituições Democráticas compreende um dever do Estado, direito e responsabilidade de todos para a garantia da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Para tanto, a ordem constitucional elegeu como órgãos responsáveis pelo exercício dessa prerrogativa, às polícias.

Para Norberto Bobbio (2000, p. 944), a polícia é uma função estatal que se concretiza num órgão de administração que visa cumprir as limitações impostas pela lei à liberdade dos indivíduos e grupos no sentido de salvaguardar a ordem pública, nas suas diversas manifestações: em síntese, da proteção das pessoas à proteção da propriedade, à proteção de qualquer bem tutelado pelas normas penais.

Por sua vez, Marcos Rolim (2009, p. 21) julga importante distinguir a “polícia” de “policiamento”, uma vez que entende a primeira como uma estrutura pública e profissional centrada nas funções de manutenção da ordem e da segurança pública, enquanto o segundo relaciona-se à atividade específica de patrulhamento ostensivo.

No entanto, saber com exatidão quais as funções e responsabilidades da polícia apresenta-se como o um dos grandes problemas entre os temas da segurança pública. As ideias de manutenção da ordem e de garantia de segurança pública são noções genéricas no contexto das sociedades modernas (ROLIM, 2009). Nesse sentido, importa refletir acerca da missão das ordens policiais em situações e sistemas totalitários, onde manter a ordem por muitas vezes remete à prática de uma injustiça flagrante.

O atual debate acerca das atribuições policiais encontra de um lado, aqueles que acreditam que a polícia deve ocupar-se em prender culpados, logo atuar como “um braço do sistema de justiça criminal” e de outro, aqueles que defendem que a polícia deva priorizar estratégias para diminuição da criminalidade (ROLIM, 2009, p. 22). Da mesma forma, apresentam-se outras questões, como o sentimento de segurança ante a presença ostensiva de policiais nas ruas como se isso pudesse por fim à criminalidade; ou ainda, a ênfase em alguns crimes como mais graves que outros, como por exemplo, o furto em relação à sonegação fiscal.

Tais questões permeiam o debate social e político acerca da função policial e consequentemente das políticas de segurança pública. E nisso evidencia-se, o entendimento de Herman Goldstein (2003) que diferentemente das ciências médicas, na área da segurança pública falta clareza com relação ao objeto de estudo, o que inibe o desenvolvimento de uma ciência da área. O autor ainda enfatiza que tal situação é ainda mais complicada, ao observar-se que os policiais lidam em seu cotidiano com diversas outras questões fora do âmbito da criminalidade.

Dessa forma, verifica-se ante a complexidade do trabalho policial nos dias atuais, a importância dos estudos dedicados ao tema, exatamente pela dificuldade de resolução de muitas das questões acima ventiladas. Nesse sentido, oportuno buscar na história a compreensão do modelo de polícia construído durante o século XX. 

1.2 O surgimento das polícias no mundo e no Brasil

Numa perspectiva histórica, o termo polícia no decorrer dos séculos denotou sentido diverso do atual. Etimologicamente, o vocábulo deriva da expressão grega politeia, que designava a arte de governar a cidade, ou de tratar da “coisa pública” (ROLIM, 2009). Dado o significado etimológico, correspondia ao “conjunto das instituições necessárias ao funcionamento e à conservação da cidade-Estado”, sendo que na Idade Média indicava “a boa ordem da sociedade civil, da competência das autoridades políticas dos Estado, em contraposição à boa ordem moral, do cuidado exclusivo da autoridade religiosa” (BOBBIO, 2000, p. 944).

Na Idade Moderna, a polícia derivou “toda a atividade da administração pública: veio assim a identificar-se um ESTADO DE POLÍCIA, com o que se designava um ordenamento em que toda a função administrativa era indicada com o termo de Polícia” (BOBBIO, 2000, p. 944). Logo, de maneira geral até o século XIX, a história da polícia esteve longe dos termos institucionais hoje existentes, uma vez que a organização de policiamento não existia de forma autônoma. E ainda, porque o conceito atual de “segurança pública” não faria sentido, exceto como “manutenção da paz” em sociedades onde as funções da justiça criminal eram geralmente questões privadas (ROLIM, 2009).

O uso do termo polícia voltou a ter um significado mais restrito, no início do século XIX, explica Bobbio (2000) ao identificar a atividade inclinada ao exercício da defesa da comunidade de perigos internos. Entendia-se como perigo as ações e situações contrárias à ordem pública e à segurança pública. Nas palavras do autor:

“A defesa da ordem pública se exprimia na repressão de todas aquelas manifestações que pudesse desembocar numa mudança das relações político-econômicas entre as classes sociais, enquanto que a segurança pública compreendia a salvaguarda da integridade física da população, nos bens e nas pessoas, contra os inimigos naturais e sociais” (BOBBIO, 2000, p. 944).

E assim surgiram as polícias modernas para manter a ordem diante de manifestações e revoltas populares, mas inicialmente longe da preocupação com a ocorrência de crimes. O estudo de Rolim (2009) destaca a experiência da polícia inglesa como uma forma distinta de formação e organização com reflexos até hoje, em detrimento da tradição francesa de policiamento de modelo bipartido, com o sistema de Guarda-civil no campo e da Tenência de Polícia em Paris.

Os ingleses por tradições políticas e culturais de respeito à autonomia individual resistiram à ideia de uma polícia profissional, criando inicialmente uma polícia no ideal de mais um serviço público, com forte vínculo com a comunidade e sem o uso de armas (ROLIM, 2009). Tal concepção difere em muito da adotada pelas polícias desde a sua formação no Brasil, embora o que venha a distinguir o serviço da função policial seja exatamente a possibilidade do uso da força.

Nos Estados Unidos as primeiras organizações policiais além da persecução criminal, também eram responsáveis pelas funções administrativas, de controle e de fiscalização. O que evidencia que na formação das estruturas profissionais de policiamento, “não se imaginava que a polícia deveria ter como missão exclusiva ou mesmo fundamental o combate ao crime” (ROLIM, 2009, p. 28).

Contudo, as forças policiais modernas se estruturam com vínculos muito próximos aos cidadãos, como na experiência norte-americana de rondas policiais, realizadas por patrulheiros a pé, em constante interação com a comunidade. O que, segundo Rolim (2009) muda completamente com a inclusão de três importantes recursos tecnológicos e que alteram radicalmente o perfil do policiamento moderno: o carro de patrulha, o telefone e o rádio de comunicação.

Com o passar dos anos a estrutura policial que surge afasta-se do padrão antigo, conforme o autor: com o uso das novas tecnologias, a resposta às ocorrências criminais dá-se “após” a comunicação do fato pelas vítimas; os policiais não são mais recrutados com base nos vínculos comunitários; casos de corrupção policial por motivos econômicos, políticos acabam por criar outra estrutura organizacional para as polícias.

No caso do Brasil, as Polícias Militares com origem nas Forças Policiais foram criadas no período do Brasil Imperial. A corporação mais antiga é a do Rio de Janeiro, a Guarda Real de Polícia criada em 1809 por Dom João VI, Rei de Portugal, que na época tinha transferido sua corte de Lisboa para o Rio, por causa das guerras na Europa, lideradas por Napoleão.

O decreto que instituiu a Guarda Real de Polícia assinalou o nascimento da primeira Polícia Militar no Brasil, a do Estado da Guanabara. A Guarda era subordinada ao governador das Armas da Corte que era o comandante de força militar, que, por sua vez, era subordinado ao intendente-geral de Polícia. A partir disso, implantava-se no Brasil a característica da Polícia Militar que prevaleceria até os dias de hoje.

Importante salientar, conforme Lucas Cabral Ribeiro (2011) com o advento da República no Brasil e o desmembramento da centralização do Império, os Estados membros detêm maior autonomia, criando assim as forças públicas, que seriam a representação da segurança nos Estados, para defesa do governo diante dos excessos da União, momento em que começa a organização militar estatal em quartéis.

Apenas em 1946 as Forças Armadas aparecem no texto constitucional. De acordo com o estudo de Ribeiro (2011), na história da formação das polícias militares percebe-se o quanto esta sempre manteve relação com as instituições políticas e a consolidação das suas práticas e projetos políticos desenrolados na história do país.

O tema da polícia é bastante recente na historiografia no Brasil e os vários são os motivos. Um deles, na opinião de Marcos Luiz Bretas e André Rosemberg (2013), possui estreita relação com a conjuntura do período ditatorial no país e a imagem de polícia decorrente. Porém, asseveram que mesmo após meio século, pareça inacreditável que o estigma policial permaneça e continue a contaminar os estudiosos sobre o tema.

De acordo com os autores, embora os estudos atuais, ainda hoje as abordagens da História da Polícia:

“[…] parecem ainda obedecer a estas duas tensões; por um lado, entre uma história da dominação em que a polícia é instrumento e uma história onde o exercício da dominação pela e na polícia se apresenta como um problema; por outro, entre uma história da polícia onde as questões que realmente interessam estão fora dela e uma história mais diretamente ligada à vida policial” (BRETAS; ROSEMBERG, 2013, p. 166).

Dessa forma, após o breve histórico a respeito do surgimento das polícias no mundo e no Brasil, passa-se a analisar o modelo atual de polícia no Brasil. O objetivo do apanhado histórico – ressalta-se embora breve – é o de enfatizar a importância dos acontecimentos do passado, na formação de tais instituições, como no caso a polícia.

1.3 A questão da segurança pública e a polícia que temos no Brasil

O atual policiamento no Brasil apresenta-se como um modelo reativo. O estudo de Rolim (2009) denomina tal situação como “A síndrome da Rainha Vermelha”, ao cunhar a expressão utilizada por um biólogo americano pra explicar “o princípio da mudança zero”, conforme explica:

“Os esforços policiais, mesmo quando desenvolvidos em sua intensidade máxima, costumam redundar em “lugar nenhum”, e o cotidiano de uma intervenção que se faz presente apenas e tão somente quando o crime já ocorreu parece oferecer aos policiais uma sensação sempre renovada de imobilidade e impotência. “Corre-se”, assim, para se permanecer onde está, diante das mesmas perplexidades e temores. Para a visão que possuem a respeito de si mesmos e de seu trabalho, o ciclo permanente de chamadas a serem atendidas e a baixa produtividade das providências adotadas no que se refere à identificação e responsabilização dos infratores faz com que uma determinada sensação de inutilidade passe a definir o “espírito objetivo” do policiamento contemporâneo” (ROLIM, 2009, p. 37).

Dessa forma, o atual formato da polícia no Brasil embora todos os recursos financeiros empregados pouca contribuição tem na diminuição da criminalidade e da violência, sofrendo exatamente da Síndrome da Rainha Vermelha.

De maneira geral, entende-se que esse modelo reativo de policiamento pressupõe que a polícia deva esperar para ser acionada, ou seja, deva esperar até o crime ser cometido e comunicado. E assim, maior dificuldade para a polícia lidar com crimes que não produzam vítimas ou ainda testemunhas.

1.4 Por um novo modelo de polícia e por políticas públicas integradas a outras áreas

O modelo proposto por Rolim (2009) chamado de pró-ativo defende uma reaproximação do policiamento às comunidades, inclusive com a retomada do patrulhamento a pé. Nessa perspectiva defende um modelo centrado na prevenção. Para isso, destaca a necessidade de uma política séria de segurança pública a partir de diagnósticos precisos; da constante formação dos policiais; entre outras questões.

O Supremo Tribunal Federal Brasileiro, em uma de suas decisões enfatiza acerca da necessidade de políticas públicas para a questão da segurança pública:

“O direito a segurança é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo (RE 559.646-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 7-6-2011”, Segunda Turma, DJE de 24-6-2011).[1]

Portanto, pensar na segurança pública exige o conjunto esforço de outras agências governamentais, com uma política que envolva as áreas da saúde, da educação, da geração de emprego e renda, do lazer, entre outras. É preciso que toda a sociedade sinta-se envolvida nesse assunto, trazendo tal questão para o âmbito da cidadania.

Nesse sentido, importantes iniciativas estão sendo apresentadas e implementadas, tal como a Justiça Restaurativa, conforme analisa-se a seguir.

2. Justiça Restaurativa: um olhar diferenciado para a aplicação do direito penal

2.1 As dificuldades do atual sistema penal

O atual sistema penal vive um momento de decadência. Não é eficiente para responsabilizar o infrator pelos seus atos, não proporciona um contentamento à vítima, nem mesmo é eficaz para a promoção da ressocialização dos transgressores. Verifica-se, portanto, que o rompimento do texto legal é o marco para aplicação de punição ao infrator, punição esta na maioria das vezes, desnecessária e agravantes na busca da recuperação social.

Em crimes graves, o atual sistema penal, qual seja, o sistema acusatório, demonstra ineficácia e impunidade, não sendo o meio adequado para recriminar a conduta dos transgressores da norma. Já no que se refere aos crimes brandos, o direito penal parece ser rigoroso ao extremo, agindo de forma drástica em situações de menor vulto.

Nas palavras de Marcos Rolim, a atual crise do sistema penal:

“Pode-se, com razão, argumentar que a experiência concreta realizada com a justiça criminal na modernidade está marcada por promessas não cumpridas que vão desde a alegada função dissuasória ou intimidadora das penas até à  perspectiva da ressocialização. Uma abordagem mais crítica não vacilaria em apontar a falência estrutural de um modelo histórico. Estamos, afinal, diante de um complexo e custoso aparato institucional que, em regra, não funciona para a responsabilização dos infratores, não produz justiça, nem se constitui em um verdadeiro sistema. Quando se depara com delitos de pequena gravidade, o direito penal é demasiado; quando se depara com crimes graves, parece inútil” (ROLIM, 2009, p. 233).

A atual falência do sistema penal e a incessante e ineficaz aplicação da punição do infrator através da prisão é questionada por Lopes Júnior, que assevera: “A ideia de que a repressão total vai sanar o problema é totalmente ideológica e mistificadora. Sacrificam-se direitos fundamentais em nome da incompetência estatal em resolver os problemas que realmente geram a violência”. (LOPES JÚNIOR, 2004, p. 15). Ainda, mais adiante, continua criticando o sistema penal em vigor: “O movimento da lei e ordem, em nome de liberdade, acaba aprisionando; em nome da ordem pública, sacrifica o individual e estabelece o autoritarismo; em nome da justiça, pratica a exclusão e a intolerância, as mais graves das injustiças”. (LOPES JÚNIOR, 2004, p. 19).

Com isso, evidente a urgência em traçar meios alternativos de “punição” e “ressocialização”. Nesse sentido, discorre Foucault:

“A punição ideal será transparente ao crime que sanciona; assim, para quem a contempla, ela será infalivelmente o sinal do crime que castiga; e para quem sonha com o crime, a simples ideia do delito despertará o sinal punitivo. Vantagem para a estabilidade da ligação, vantagem para o cálculo das proporções entre crime e castigo e para a leitura quantitativa de interesses; pois tomando a forma de uma consequência natural, a punição não aparece como o efeito arbitrário de um poder humano” (FOUCAULT, 1987, p. 87).

Dentre desse contexto, Rolim interroga:

“E se, no final das contas, estivéssemos diante de um fenômeno mais amplo do que o simples mau funcionamento de um sistema punitivo? Se, ao invés de reformas pragmáticas ou de aperfeiçoamentos tópicos, estivéssemos diante do desafio de reordenar a própria idéia de “Justiça Criminal”? Seria possível imaginar uma justiça que estivesse apta a enfrentar o fenômeno moderno da criminalidade e que, ao mesmo tempo, produzisse a integração dos autores à sociedade? Seria possível imaginar uma justiça que, atuando para além daquilo que se convencionou chamar de “prática retributiva”, trouxesse mais satisfação às vítimas e às comunidades? Os defensores da Justiça Restaurativa acreditam que sim” (ROLIM, 2009, p. 236).

Nessa esteira, visa-se o uso alternativo do direito penal (CARVALHO, 2003, p. 20). Esse uso alternativo refere-se a medidas despenalizadoras, com descriminalizações judiciais de condutas, a fim de possibilitar uma ressocialização do infrator mais eficiente, reinserindo-o na sociedade e atuando na causa geradora do mal causado.

Para tanto, busca-se na Justiça Restaurativa uma forma de mudança frente aos padrões hoje defendidos, ou seja, a aplicação de um método para resolução de conflitos que permita a interação entre os envolvidos, com a reestrutura da relação rompida. Transformação, reparação de danos e reintegração na comunidade estão entre os seus pilares. Deseja-se, portanto, uma reformulação no sistema penal, que produza justiça, atendendo aos anseios da sociedade. Acredita-se que a justiça restaurativa é a solução.

2.2 O modelo de Justiça Restaurativa

A Justiça Restaurativa foi criada como uma alternativa ao modelo de justiça criminal hoje prevalecente. Ela diverge da justiça punitiva e retributiva, praticada pelo atual sistema penal acusatório. Apesar das práticas de justiça restaurativa datarem das civilizações antigas, a expressão “justiça restaurativa” foi cunhada por Albert Eglash, em 1977, em uma obra intitulada “BeyondRestitution: CreativeRestitution”, a qual, na língua portuguesa foi chamada “Além da reparação: reparação criativa”. (ROLIM, 2009, p. 236).

O paradigma da justiça restaurativa recebeu grande influência das correntes garantistas e abolicionistas que estudam o direito penal, mas diferencia-se delas, na medida em que aceita o atual sistema penal, mas intui proporcionar uma solução de conflitos diferenciada, que atinja, mais eficaz e rapidamente a pacificação social. É, portanto, uma alternativa a ser seguida.

E quando se fala em alternativa, situa-se no mesmo sentido defendido por Dotti:

“A alternativa, em síntese, é a tomada de posição diante de uma realidade na medida em que implica na busca de novos caminhos para atender os problemas por ela revelados. É também uma atitude alternativa a proscrição das penas cruéis e infamantes ou a consideração da Política Criminal como ciência de meios e de fins que projeta a realidade humana e social no quadro jurídico, arrancando para a revisão como desdobramento da crítica que dirige contra o sistema”(DOTTI, 1998, p. 476).

A justiça restaurativa é um método alternativo em que se busca a reparação dos danos à vítima, ao infrator e à sociedade como um todo. Para tanto, utiliza-se de uma metodologia que parte de um encontro temático entre os abrangidos – infrator e vítima – bem como pessoas que podem oferecer um maior apoio aos envolvidos (ROLIM, 2009), que tenham uma ligação emocional forte e positiva com os debatedores. Nesse encontro haverá um facilitador/mediador que não tem a função primordial de mediar, mas sim de direcionar a discussão para que as partes cheguem a um acordo para o ocorrido, por elas mesmas.

É um procedimento democrático, em que ambas as partes podem se expressar, revelando uma faceta da cidadania, de modo a consagrar direitos fundamentais consagrados constitucionalmente. Segundo Maria Fernanda Macedo:

“O enfoque da justiça restaurativa, que permite à vítima mecanismos para participar ativamente na solução do conflito em que está envolvida, bem como lhe proporciona mecanismos céleres para a resolução do dano sofrido são meios de acesso à justiça, além de medidas para a preservação dos direitos de cidadania. E mais: o tratamento aplicado ao criminoso também lhe garante dignidade e a preservação de seus direitos, na obrigação de reparação dos danos que ele causou à vítima” (MACEDO, 2013, p. 107).

Os pressupostos teóricos da justiça restaurativa tentam aproximar direito civil e direito penal, minimizando suas diferenças. Ressalte-se que a justiça restaurativa apresenta algumas premissas fundamentais, as quais devem ser respeitadas para o sucesso no deslinde do encontro temático.

Assim, destaca-se que a justiça restaurativa foca sua atividade no ato danoso e em suas consequências, não direcionando seu método para a violação da lei, mas sim para o dano causado por uma pessoa a outra. Realiza-se para um acordo entre as partes, o qual se funda na “vergonhareintegrativa” a ser instalada no âmago do infrator no momento da reunião com parentes e amigos próximos presentes na audiência.

Por tudo isso, verifica-se um papel positivo da justiça restaurativa, uma vez que consiste em um procedimento democrático, baseado em respeito e dignidade, em que os envolvidos possuem um espaço para se expressar, podendo o infrator se arrepender e traçar meios para reparar o dano, conscientizando-se do mal causado. Da mesma maneira, a vítima tem a oportunidade de entender o porquê do fato ocorrido, bem como de ter sua lesão minimizada.

As vítimas, portanto, podem ultrapassar a barreira do fato ocorrido, recuperando o norte de suas vidas e seguindo em frente, visto que, através dessa audiência, poderão ver seus direitos garantidos e ter o controle de sua vida retomado. (ROLIM, 2009).

Ainda, mas não menos importante, oportuniza-se a reconstrução de laços de afeto entre o infrator e parentes ou amigos próximos, de modo a tentar promover a sua ressocialização.

E nesse sentido, completa Marcos Rolim:

“Pelo que já foi dito, resta evidente que a concepção teórica da Justiça Restaurativa é totalmente relacional. Através dela, se procura retirar todas as consequências da compreensão de que os seres humanos existem por conta da consideração dos demais. Afinal, essa é a condição que nos afasta de uma natureza “fantasmagórica” pela qual poderíamos existir sem sermos notados ou fora de qualquer relação com os demais. Não somos totalmente independentes dos outros, nem totalmente dependentes. Somos interdependentes. A Justiça, então, enquanto estiver preocupada com as pessoas deve voltar sua atenção para as relações entre elas. Esse ponto de partida permite desdobramentos inéditos e nos afastará da concepção individualista da agência humana e da própria justiça evidenciada nas concepções punitivas” (ROLIM, 2009, p. 248).

Logo, a proposta da Justiça Restaurativa permite enxergar-se a pessoa humana e o seu círculo social mais próximo, a família, numa relação conjunta em busca da composição de uma via alternativa à prática delituosa, de arrependimento e de reparação ao dano causado. Diante da ineficiência do sistema prisional, nos casos onde é possível recorrer à Justiça Restaurativa, tal opção demonstra-se efetivamente mais apta à realização da preceituada ressocialização penal prevista em lei.

Conclusão

Ao término deste trabalho, verifica-se a importância dos estudos no tema da Segurança Pública, conforme evidenciado com a pesquisa acerca das Polícias. Da mesma forma, apresentam-se novas alternativas para a realização da justiça criminal, como a proposta da Justiça Restaurativa.

Dessa maneira, é manifesta a necessidade de uma alteração de comportamento na prática, com uma conscientização geral da sociedade acerca das práticas comuns em torno da segurança pública. É preciso (re)pensar a questão das polícias e do policiamento em si, assim como verificar as pesquisas feitas nessa área, de modo que se

permita aplicar as questões que oportunizam resultados.

Assim, afastar-se-á aquele modelo reacionário de polícia, permitindo uma integração da comunidade no policiamento e, consequentemente, uma formação cidadã. Verifica-se na Justiça Restaurativa, uma prática nova, recente e com resultados científicos positivos. Nesse contexto, imperiosa a sua aplicação, seja pelos resultados efetivos e ressocializantes que produz, seja pela atual falência e descrédito com o sistema penal em curso.

Por fim, evidente a urgência no debate e reflexões sobre segurança pública no Brasil, contextualizando o atual sistema penal e as alternativas existentes para a consagração dos direitos fundamentais garantidos na Constituição Federal, bem como a criação de políticas públicas que oportunizem a ressocialização e a recuperação daqueles que transgridem a norma penal, priorizando o princípio da dignidade da pessoa

humana.

 

Referências
BRETAS, Marcos Luiz; ROSEMBERG, André. A história da polícia no Brasil: balanço e perspectivas. Topoi, v. 14, n. 26, jan./jul. 2013, p. 162-173. Disponível em: < http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi26/TOPOI26_2013_TOPOI_26_E01.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2014.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000, v. 2, p. 944-949.
BRASIL. Contituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 10 jul. 2014.
CARVALHO, Salo de. Prefácio in: Garantismo Penal Aplicado de Amilton Bueno de Carvalho. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2003.
DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1998.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir – história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.
GOLDSTEIN, Herman. Policiando uma Sociedade Livre. Herman Goldstein – tradução Marcelo Rollemberg. São Paulo, SP: Ed. da Universidade de São Paulo. 2003.
LOPESJUNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
MACEDO, Maria Fernanda Soares. Justiça Restaurativa: a importância da participação da vítima na pacificação dos conflitos. Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 36, p. 95-109, abr. 2013.
RIBEIRO, Lucas Cabral. História das polícias militares no Brasil e da Brigada Militar no Rio Grande do Sul. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História da  ANPUH. São Paulo, 2011. Disponível em:< http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1313022007_ARQUIVO_textoANPUH.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2014.
ROLIM, Marcos. A síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no século XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Oxford, Inglaterra: Universityof Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2009.
Nota:
[1] No mesmo sentido: ARE 654.823-AgR, rel. min. Dias Toffoli, julgamento em 12-11-2013, Primeira Turma, DJE de 5-12-2013.

Informações Sobre os Autores

Giselda Siqueira da Silva Schneider

Mestranda em Direito e Justiça Social do PPGD da FURG

Silvia Gomes Terra Leite

Mestranda em Direito e Justiça Social do PPGD da FURG


Equipe Âmbito Jurídico

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