O procedimento dos crimes dolosos contra a vida e seus conexos – o chamado rito do Júri – é bipartido. A primeira parte, conhecida como “judicium accusationes”, inicia-se com o recebimento da denúncia (eventualmente de queixa-crime, se for o caso de ação penal privada subsidiária) e extingue-se com a sentença de pronúncia, a qual irá determinar se deve ou não o réu ser submetido à segunda etapa – “judicium causae” –, esta a se realizar em plenário, junto ao Conselho de Sentença. O estágio inicial é desenvolvido frente ao juiz singular, de regra o magistrado que irá presidir os trabalhos no Colegiado. Nesse momento o sistema será rigorosamente o mesmo imposto para a maioria dos crimes dolosos, e regular-se-á pelos artigos 394 até 405 do CPP. Assim, seja ou não o crime de competência do Júri, na maioria dos casos, o primeiro movimento será o interrogatório (há ritos em que o réu será ouvido por último – escusado dizer serem estes muito mais consentâneos com os princípios constitucionais, em especial o do Contraditório), depois serão ouvidas as testemunhas, produzidas perícias e provas requeridas e, por fim, será a oportunidade para as manifestações da Acusação e da Defesa, as quais encontram fulcro nos artigos 406 (Júri) e 500 (rito ordinário dos crimes apenados com reclusão).
Como se vê, até aquela ocasião – a das alegações finais – tudo acontece da mesma maneira. Diante das provas coligidas e do que foi dito pelas partes, tem agora o magistrado, convenientemente instruído, de dizer o que sente (sentença). Sendo o crime de competência do juiz singular, estando ele em dúvida, deverá absolver o réu, diante da máxima “in dubio pro réu” (em dúvida, a favor do réu), corolário do Princípio do Favor rei ou “Indulgentia principis” (BETTIOL, Giuseppe. Instituições de direito e processo penal. Tradução Miguel da Costa Trindade. Coimbra. 1974, pg. 295) . É como soam os incisos II, IV e VI do art. 386 do CPP. Nesse diapasão, eventual condenação somente se justificaria por um juízo de certeza. Dito de outra maneira: é ônus da acusação provar o que alega na denúncia, de maneira extremada, a que não restem incertezas, já que, em Direito, como quer antigo brocardo jurídico “allegare sine probare et non allegare paria sunt”- alegar e não provar é o mesmo que não alegar (MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. Saraiva. São Paulo, 1960, pg. 179).
Nos processos afetos ao Tribunal do Júri, entretanto, Doutrina e Jurisprudência apontam no sentido de que o verdadeiro julgamento deva se desenvolver no segundo período, eis que o primeiro constituir-se-ia em mero juízo de admissibilidade da acusação. Assim, as duas fontes do Direito antes referidas repetem-se na afirmação de que vigoraria, na fase da pronúncia, o princípio “in dubio pro societate” (na dúvida, em favor da sociedade). Sob este enfoque, somente a prova extreme de dúvidas em favor do réu poderia elidir fosse ele encaminhado ao seu julgador constitucional, o Colégio Popular.
Não se pode, com a devida vênia, concordar com tal inteligência.
Ser julgado por seus pares, nos crimes dolosos contra a vida e conexos (artigos 74, § 1º e 78, I do CPP), é direito e garantia fundamental. Não é por outra razão que o procedimento em tela encontra-se previsto também no artigo 5º, XXXVIII, “d” da Constituição Federal. As garantias fundamentais têm, como se sabe, o escopo de proteger os cidadãos do excessivo avanço do Estado na seara das liberdades individuais. Os direitos ungidos com tal aptidão são de primeira geração, foram escolhidos como norteadores da Carta Política, não podem ser menoscabados e, muito menos, usados contra o interesse da cidadania.
Explica-se: em sendo o caso de julgamento por juiz monocrático, na fase da sentença, restando aquele em dúvida, o que deverá fazer? Evidentemente absolver o réu, pelas razões já expendidas. Quem tem o dever de suplantar a incerteza é, como antes dito, a Acusação, não tendo esta logrado êxito, mister seja a lide resolvida em favor da Defesa. Segundo aquele entendimento muitas vezes repetido pela maioria, em se tratando de crime doloso contra a vida, a garantia de ser julgado pelos jurados impõe não possa o réu ser impronunciado, ou mesmo absolvido sumariamente, se houver dúvida. Isto é, nesta ótica, melhor seria não lhe tivesse o Legislador constituinte outorgado tal garantia, porque poderia ele naquele momento processual ser absolvido, ao invés de enviado a julgamento popular.
Dito de outra maneira: naqueles crimes em que o cidadão não tem a garantia de ser julgado por seus iguais, na dúvida deve o juiz absolvê-lo; quando presente a referida prerrogativa, não. E tudo isso no mesmo momento processual.
Poder-se-ia citar a maioria dos manuais, os quais, com pequenas variações, reproduzem-se. Por todos, Saulo Brum Leal (Júri popular. 3ª Edição. Porto Alegre. Livraria do Advogado. 1994. Pg. 55): “Somente com prova induvidosa da excludente é que poderá ser proclamada a absolvição sumária, neste momento processual. A Jurisprudência é farta neste sentido, bastando rápida leitura referente ao tema no título em exame”.
Nem se diga possa ter – de novo o surrado bordão – “a Doutrina e a Jurisprudência” tal entendimento em face da gravidade do crime. Figure-se o seguinte exemplo: numa vara única, três denúncias são recebidas na mesma data. Uma por lesão corporal gravíssima (reclusão de 2 a 8 anos), outra por latrocínio (reclusão de 20 a 30 anos) e a última por homicídio simples (reclusão de 6 a 20 anos). O primeiro crime tem a pena menor do que a do crime doloso contra a vida; o segundo a tem maior. Terminada a instrução, são os autos conclusos ao magistrado para sentença. Nos três casos, restam dúvidas quanto a serem os réus culpados ou inocentes. O juiz, então, diante daquele ensinamento repisado, deve absolver os acusados pelos dois primeiros crimes e enviar o último ao Júri, porque não pode absolvê-lo, em face de ter ele aquela “garantia” sobra a qual já se falou. Ora, melhor seria não tivesse então a referida franquia: poderia ser absolvido desde logo. Quer dizer, a elevação do Júri à condição de direito fundamental, impede, segundo a miopia que se multiplica, seja, de logo, na fase da pronúncia, o cidadão poupado do “strepitus fori”, como aconteceria se para o crime cometido não houvesse aquele privilégio.
Com a inserção do procedimento do Júri no art. 5º da CF, quis o Constituinte dizer que ninguém pode ser condenado por juiz togado em se tratado de crime doloso contra a vida. Absolvido pode. E nas mesmas condições em que o seria fosse outra a natureza do delito, ou seja, na presença de dúvida, sob pena de ser este rito mais gravoso ao réu, como de fato tem sido, à luz da cantilena fundada na “Doutrina e Jurisprudência”.
Vejamos.
Quais são os pressupostos para o recebimento da denúncia? A suspeita de ter havido um crime e indícios de que seja o denunciado o autor. Estes aspectos são analisados não importando a natureza do delito. A questão deve ser resolvida na instrução. A isso se presta o processo, inclusive, obviamente, a primeira fase do ritual do Júri. Por outro lado, diz o art. 408 do CPP: “se o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor, pronuncia-lo-á, dando os motivos de seu convencimento”. Ou seja, o juiz deve estar convencido da existência de um crime, isto é, de um fato típico, antijurídico e culpável, ou, no mínimo, de um injusto típico, para quem entenda não integrar a culpabilidade a estrutura do delito. A segunda parte do tipo processual em testilha, numa visão sistemática, tendo em vista o filtro constitucional – repita-se, porque o Júri é uma garantia do indivíduo -, deve ser interpretada, no que concerne à expressão “indícios”, como sendo estes de tal monta que levariam juiz singular a condenar. Como não pode o magistrado assim agir, pronunciará o réu, enviando-o a quem, com exclusividade, entendendo ser o caso, pode
Como ensinava o saudoso Evandro Lins e Silva (artigo do Boletim IBCCRIM nº 100 Março/2001): “O juiz lava a mão como Pilatos e entrega o acusado (que ele não condenaria) aos azares de um julgamento no Júri, que não deveria ocorrer, pela razão muito simples de que o Tribunal de Jurados só tem competência para julgar os crimes contra a vida quando este existe, há prova de autoria ou participação do réu e não está demonstrada nenhuma excludente ou justificativa”.
Dizia mais: “Veja-se que o Código de Processo Penal só autoriza a pronúncia quando há indícios suficientes: o adjetivo não está aí colocado por mero capricho ou por enfeite de redação do legislador. Suficiente, segundo o Aurélio, é aquilo que satisfaz, que é bastante, apto ou capaz, no caso, de condenar. Em primoroso trabalho sobre o tema, José Roberto Antonini mostra, com clareza meridiana, que o ‘in dubio pro societate’ não passa de uma, ‘frase de efeito sem laços de parentesco com o nosso sistema jurídico positivo” (Rev. Trib., p. 465)”.
Citando Frederico Marques (Encerramento da Formação da Culpa no Processo Penal, p. 129): “Para a pronúncia tem de ser certa a existência do crime e provável a autoria imputada ao réu. Se apenas, razoável a existência do crime, não pode haver pronúncia, e o mesmo se verifica quando tão só possível a autoria que ao denunciado é atribuída”
“Hoje já se nota ser essa uma nova tendência da doutrina e da jurisprudência, porque ‘se assim não se fizer, se diante da simples possibilidade de ser o réu o autor do crime, for ele exposto ao Júri, ter-se-á criado verdadeiro prodígio jurídico: a garantia contra condenação arbitrária transformada monstruosamente em exposição ao risco de condenação despótica”.
E o criminalista do século arrematava: “Concluímos: é alógico o procedimento penal contra quem tem em seu favor o benefício da dúvida. Quanto mais depressa se resolva essa situação melhor para a própria sociedade de que o réu faz parte”.
No mesmo sentido, a posição do eminente Professor Vicente Greco Filho (Tribunal do Júri – Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. Coordenação: Rogério Lauria Tucci, São Paulo: Ed. Rev. dos Tribunais, 1999, pp. 118/120, apud Maurides de Melo Ribeiro, in Artigo do Boletim IBCCRIM nº 124 Março/2003). “Em sendo o veredicto do júri qualificado pela soberania, que se consubstancia em sua irreformabilidade em determinadas circunstâncias, e tendo em tinta a ausência de fundamentação da decisão, a função, às vezes esquecida, da pronúncia é a de impedir que um inocente seja submetido aos riscos do julgamento social irrestrito e incensurável.
“É comum dizer-se que a função da pronúncia é a de remeter o réu a júri. Mas rejeitamos, terminantemente, essa impostação. A função da fase de pronúncia é exatamente a contrária”.
“Em outras palavras, a função do juiz togado na fase da pronúncia é a de evitar que alguém que não mereça ser condenado possa sê-lo em virtude do julgamento soberano, em decisão quiçá, de vingança pessoal ou social. Ou seja, cabe ao juiz na fase de pronúncia excluir do julgamento popular aquele que não deva sofrer a repressão penal”.
Pelas mesmas razões, não há mais se aceitar tenha validade o parágrafo único do art. 409 do CPP. À luz da Lei Maior, a sentença de impronúncia há de ter os mesmos efeitos da sentença absolutória, em especial o de fazer coisa julgada material, sob o risco de – outra vez – ser a dádiva constitucional interpretada em favor do Estado e não do indivíduo.
Em suma: quis o Constituinte fosse o plenário do Júri um “plus”, um obstáculo a mais a ser transposto pelo Estado para obter uma condenação num crime doloso contra a vida. Antes disso, no entanto, impõe-se haja uma sentença prolatada por um juiz togado (pronúncia), que tem o objetivo de impedir seja um inocente submetido a julgamento soberano (soberania dos veredictos), cujo resultado não depende de fundamentação – os jurados decidem por íntima convicção – e cujos riscos não merece arrostar.
Não é uma questão de legislar, mas de dar interpretação sistemática aos dispositivos do CPP afetos à matéria e o art. 5º, XXXVIII, “d” da Constituição Federal.
O problema de se pretender adequar a CF à legislação infraconstitucional – o positivismo serôdio dos tribunais e da “comunis opinio doctorum” (não consigo mais repetir a fastidiosa expressão “Doutrina e Jurisprudência) – é elucidado de maneira perfeita pelo Professor Lenio Luiz Streck (Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2ª edição. Rio de Janeiro. Forense. 2004. Pg. 79: “Talvez nas palavras de um Desembargador de Tribunal de Justiça estejam presentes, simbolicamente, os ingredientes que engendram a crise de paradigmas aqui discutida: instado pelo advogado de defesa, em sustentação oral, a aplicar princípios constitucionais, Sua Excelência afastou-os ‘com base no Código de Processo Penal”.
Para terminar: a visão que se combate é ultrapassada; não tem recepção constitucional: o Júri é uma garantia do cidadão, não da sociedade!
Advogado em Porto Alegre. Professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal na ULBRA/Gravataí – RS
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