As anunciadas descobertas de mega-campos de petróleo na chamada camada pré-sal, trouxeram para a ordem do dia fascinantes questões de Direito do Mar, tema de Direito Internacional que costuma ficar longe da mídia.
A soberania nacional e outras questões de Direito Internacional são agora invocadas em relação a conceitos básicos de Direito do Mar e aspectos técnicos atinentes a localização e distância da costa brasileira das acumulações na camada pré-sal.
Na arena internacional, há disputas entre Estados envolvendo a exploração de reservas que ficam na confluência de suas Zonas Econômicas Exclusivas que desaguaram em tratados internacionais ou conflitos. Entre os casos resolvidos pelos tribunais internacionais e os tratados assinados para a solução de disputas, podemos verificar a emergência deste assunto na América Latina, merecendo destaque: o caso que envolveu Trinidad & Tobago vs. Barbados, no qual a Corte Permanente de Arbitragem decidiu unanimemente redesenhar a delimitação marítima dos dois países, atendendo aos interesses dos mesmos quanto à pesca e à exploração de outros recursos; e, o Tratado Marco para la Unificación de Yacimientos de Hidrocarburos de 2007, que pôs fim a disputas entre a Venezuela e Trinidad & Tobago.
No caso do pré-sal brasileiro, questiona-se, entre outros aspectos, a localização de tais reservas e a possibilidade de sua exploração. Será possível que estas reservas se estendam por áreas como a zona dos fundos marinhos além da jurisdição nacional (“Área”), a qual é considerada herança comum da humanidade (common heritage of mankind) pela Convenção de Direito do Mar de 1982 (1982 Law of the Sea Convention – LOSC), e que tem sua exploração extremamente restrita e submetida à Autoridade Internacional do Fundo do Mar (Sea Bed Authority)?
Alguns esclarecimentos são necessários sobre conceitos e questões de Direito Internacional Público e Direito Marítimo. Em 1972, o conceito de soberania já havia sido reconhecido através do Princípio 21 da Declaração de Estocolmo (Principle of Sovereignty over natural resources and the responsibility not to cause damage to the environment of other states or to areas beyond national jurisdiction).
Já a Convenção de Direito do Mar de 1958, denominada (United Nations Convention on the Law of the Sea) UNCLOS I, produziu documentos separados sobre os seguintes temas: Mar territorial, Plataforma Continental e Alto Mar. A Convenção UNCLOS II não produziu consenso, e alguns países emergentes da África, apoiados pela América Latina e Caribe, passaram a exercer controle sobre os recursos oceânicos até 200 milhas.
Estamos diante de um pano de fundo que explica o contexto do surgimento das tensões latentes na convocação da conferência seguinte, a United Nations Convention on the Law of the Sea (UNCLOS) UNCLOS III, que resultou na mais longa negociação de Direito Internacional, de 1973 a 1982, quando afinal almejou-se a redação de uma constituição para os oceanos, a Convenção dos Direitos do Mar de 1982. Durante os dois anos em que esteve aberta à assinatura, 159 países a assinaram, mas alguns países industrializados como EUA, Alemanha e Reino Unido não o fizeram. Os dois últimos somente aderiram à Convenção depois de 1994, quando foi negociado um anexo de implementação, que modificava a parte XI, relativa aos recursos do fundo marinho localizado além das jurisdições nacionais.
Para uma compreensão mais precisa das questões envolvidas, o conhecimento básico de conceitos atinentes aos espaços marítimos é crucial. A soberania tem seu alcance definido de forma diversa em relação a cada uma dessas zonas, sendo regra geral que, quanto mais perto da costa do Estado, maior o grau de controle por parte do Estado Costeiro. Assim, o desfecho de uma controvérsia envolvendo o Direito do Mar pode estar centrado na localização precisa do local de certos eventos críticos.
Por outro lado, o panorama do Direito do Mar contemporâneo está se desenvolvendo em uma abordagem funcional, mais do que zonal, das linhas demarcatórias de cada um dos espaços. Não vamos comentar em detalhes cada uma das zonas, mas apenas alguns pontos principais. Quanto à primeira, Águas Interiores, não há dúvidas quanto ao fato de que são submetidas à soberania do Estado Costeiro “de modo pleno”.
O Mar Territorial é a zona de mar localizada entre as águas interiores e o Alto Mar. A Convenção de Genebra sobre Mar Territorial e Zona Contígua (1958) consagrou, da mesma forma que outras conferências internacionais sobre o Direito do Mar, o princípio da soberania estatal sobre o solo e o subsolo do mar territorial.
Após intensos debates em relação à definição da Plataforma Continental (PC) e da Zona Econômica Exclusiva (ZEE), sendo a ZEE área de 188 milhas a partir do Mar Territorial, totalizando 200 milhas, finalmente a Convenção do Direito do Mar de 1982 trouxe uma nova definição de PC, estabelecendo um critério para o caso de a PC exceder as 200 milhas da ZEE. Dessa forma, a extensão legal da PC passou a ser a parte externa da margem continental, ou seja, a distância de 200 milhas náuticas, a partir da linha de base do Mar Territorial (art. 76), ficando certo que se a margem continental excedesse 200 milhas, o limite externo máximo seria de 350 milhas náuticas de largura.
Em relação à PC, ambas as convenções da ONU prevêem direitos soberanos para o Estado Costeiro com o propósito de explorá-la e explotar os recursos naturais do leito do mar e subsolo (art. 2º (4) da Convenção de 1958 e art. 77 (4) da Convenção de 1982). No caso da ZEE, além de poder explorar os recursos vivos e não-vivos do leito do mar, subsolo e águas subjacentes, há também, o direito-dever de conservação e gerência destes recursos (art. 56 da Convenção de 1982), “a fundamental shift from power to duty”, para citar tradicional doutrinador de Direito Internacional, Alan Boyle.
A compreensão destas definições e este histórico são fundamentais para entendermos as controvérsias envolvidas na definição destas áreas e na delimitação de competências, direitos e deveres dos Estados. Certo é que o Brasil já obteve sucesso no sentido de, após dez anos de estudos e de submissão da matéria à Comissão de Limites de Plataforma Continental das Nações Unidas, obter o reconhecimento da extensão de sua PC até o limite de 350 milhas, comentado acima, acrescendo, destarte, mais de 700 km2 de “território líquido”, e consolidando a chamada “Amazônia azul”.
Em relação a “Área” (fundo do mar e o seu subsolo localizado além dos limites sob jurisdição nacional, de acordo com a classificação trazida pela LOSC), vale ressaltar que a exploração dos recursos minerais aí localizados está sujeita às regras, regulamentos e procedimentos específicos da Autoridade Internacional do Fundo do Mar. Na prática, na Área, há somente atividades de prospecção e pesquisa, e tais atividades adstringem-se a minerais polimetálicos, e devem servir ao benefício da humanidade.
Não há qualquer discussão, normativa ou regra específica para petróleo & gás. Pode ser que a Área não seja de relevância para a exploração de hidrocarbonetos, eis que as teorias geológicas, que não nos cabe aqui analisar, não parecem apontar para a prospectividade petrolífera nestes fundos oceânicos, além das jurisdições nacionais.
Todas estas questões reforçam a relevância do Direito Internacional para as decisões de negócio envolvendo “depósitos petrolíferos comuns”. Há um corpo de opinião em desenvolvimento, bem como uma “prática” em processo de consolidação entre os Estados envolvidos com a exploração e o desenvolvimento de petróleo, os quais têm convergido para a celebração de diversos tratados, entre dois ou mais Estados, para regular esse desenvolvimento conjunto.
O Brasil, que não teve de enfrentar este tema até o momento, por dispor de gigantesca costa sem questões de vizinhança, como países recentemente envolvidos em controvérsias que resultaram na redefinição do traçado divisório de suas fronteiras no mar, deverá preparar-se, por todas as razões, para o enfrentamento técnico e jurídico de uma possibilidade, sujeita à confirmação de sua viabilidade geológica, que se avizinha: reservatórios contíguos às áreas além da PC ou da ZEE.
Sócia responsável pela área de Petróleo e Gás do escritório Doria, Jacobina, Rosado e Gondinho Advogados Associados, é Doutora em Direito Internacional pela USP e Professora de Direito Internacional da UERJ.
advogado das áreas de Direito Ambiental e de Petróleo e Gás do escritório Doria, Jacobina, Rosado e Gondinho Advogados Associados, é Mestre em Direito (LL.M. in Environmental Law) pela University College London e Professor Convidado da Faculdade de Direito da UERJ.
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