Direito Penal

Sobre a Revogabilidade de Uma Prisão Preventiva Decretada Para a Garantia da Ordem Pública

José Raimundo da Silva[i]

Resumo: Praticada a infração penal, o jus puniendi emerge como direito-dever do ente político de impor uma sanção ao violador da norma jurídica protetora de certos bens indispensáveis ao convívio em sociedade. Todavia, esse direito penal exige para sua aplicação que o fato seja antes discutido em um processo judicial no qual direitos e garantias fundamentais do indivíduo deverão ser observados. Sem prejuízo do respeito a tais direitos e garantias, poderá o juiz aplicar ao investigado ou réu medidas cautelares visando à eficácia do processo, a exemplo da prisão preventiva. A presente pesquisa centrou-se na análise da custódia cautelar decretada para a garantia da ordem pública e sua revogabilidade. Concluiu-se que, embora seja a garantia da ordem pública um conceito vago, de sentido bastante amplo, há que se ter mente que mesmo a prisão preventiva decretada para o aludido fim é medida sujeita ao princípio da proporcionalidade, marcada pela provisoriedade e regida por cláusula de imprevisão (rebus sic stantibus), de modo que, revelando-se, posteriormente, desproporcional a causa indicadora da necessidade da constrição para a garantia da ordem pública, a medida deverá ser revista pelo juiz para fins de revogação ou substituição por outras cautelares diversas do encarceramento.

Palavras-chave: Direito de punir. Direitos e garantias fundamentais. Medidas cautelares. Prisão preventiva. Garantia da ordem pública. Revogabilidade.

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Abstract: Practicing the criminal offense, jus puniendi emerges as a right-duty of the political entity to impose a sanction on the violator of the protective legal rule of certain goods indispensable to socializing in society. However, this criminal law requires for its application that the fact be first discussed in a judicial process in which fundamental rights and guarantees of the individual must be observed. Without prejudice to respect for such rights and guarantees, the judge may apply to the investigated or defendant precautionary measures aimed at the effectiveness of the process, such as pre-trial detention. This research focused on the analysis of the precautionary custody decreed for the guarantee of public order and its revocability. It is concluded that, although the guarantee of public order is a vague concept, of a very broad sense, it should be borne in mind that even the preventive detention decreed for this purpose is a measure subject to the principle of proportionality, marked by provisionality and governed by (rebus sic stantibus) clause, so that as the cause of the need for constriction to guarantee public order later proves disproportionate, the measure should be reviewed by the judge for the purpose of revocation or replacement by other precautionary measures. different from incarceration.

Keywords: Right to punish. Fundamental rights and guarantees. Precautionary measures. Pre-trial detention. Guarantee of public order. Revocability.

 

Sumário: Introdução. 1. Direito de punir e direito a um processo judicial no qual sejam observados direitos e garantias fundamentais do individuo. 2. Aplicação de medidas cautelares para tutela do processo. 3. Proporcionalidade, excepcionalidade, provisoriedade e revogabilidade da prisão preventiva. 4. Prisão preventiva decretada para a garantia da ordem pública. 5. Insubsistência das razões que motivaram a imposição da custódia cautelar para a garantia da ordem pública. Conclusão. Referências.

 

Introdução

Praticado um fato definido em lei como infração penal, o jus puniendi emerge como direito-dever do ente político de impor uma sanção ao violador daquela norma jurídica protetora de certos bens e valores indispensáveis ao convívio em sociedade.

Todavia, diversamente do que ocorre com outros ramos da ciência jurídica, o direito penal exige para sua aplicação que o fato delituoso seja antes discutido em um processo judicial no qual direitos e garantias fundamentais do réu deverão ser observados, mormente para que o ato final do procedimento, que reconheça a procedência do pedido acusatório, seja dotado da necessária legitimidade para sujeitar o indivíduo à reprimenda imposta.

Não é por outra razão que a doutrina define o processo penal como o caminho a ser necessariamente percorrido para a legítima imposição da pena.

Por falar nos aludidos direitos e garantias do réu, que se acham em grande número previstos de maneira explícita na Constituição da República, dentre os quais merece destaque a dignidade humana, o devido processo legal, a isonomia, o contraditório e a ampla defesa, o tratamento de não culpado até o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória etc, é certo que não impedem a ingerência estatal na liberdade do indivíduo para fins de tutela do processo, tendo em vista o anseio social por uma prestação jurisdicional eficaz, efetiva.

Logo, no curso da persecução penal, conquanto seja vedada a aplicação antecipada de uma sanção, é possível que o juiz imponha ao investigado ou réu medidas cautelares como, por exemplo, a prisão provisória, a qual pode ser temporária (por prazo certo e quando imprescindível à investigação de determinados crimes) ou preventiva.

A respeito desta última, decerto trata-se de excepcional providência a ser adotada pela autoridade judiciária competente, a requerimento ou ex officio, sempre que, em vista do preenchimento dos requisitos do art. 313, CPP e da presença dos motivos autorizadores elencados no art. 312 do CPP, um juízo de proporcionalidade aponte no caso concreto para a inadequação ou insuficiência das cautelares diversas do encarceramento.

Sendo comumente decretada como “garantia da ordem pública”, fundamento este bastante criticado pela doutrina em razão de sua vagueza, de sua indeterminação conceitual, há que se ter em mente que a custódia preventiva decretada para o aludido fim também se sujeitará ao princípio da proporcionalidade, terá como característica a provisoriedade e será regida por cláusula de imprevisão (rebus sic stantibus), motivo por que, mesmo fundada na indelimitada garantia da ordem pública, é de se perquirir em quais circunstâncias a segregação cautelar deverá ser revista pelo juízo para fins de revogação ou substituição por medidas diversas do cárcere.

 

  1. Direito de punir e direito a um processo judicial no qual sejam observados direitos e garantias fundamentais do indivíduo

Para Luiz Regis Prado (2002, p. 34): “o homem, por sua própria natureza, vive e coexiste em comunidade (relatio ad alterum). O Direito regula o convívio social, assegurando-lhe as condições mínimas de existência, de desenvolvimento e de paz. Tanto assim é que sociedade e Direito se pressupõem mutuamente (ubi societas ibi jus et ibi jus ubi societas). Como ordem jurídica, é importante fator de estabilidade e de harmonia nas relações sociais, enquanto soluciona os conflitos individuais e sociais, impondo, por assim dizer, uma ratio à própria realidade humana. O conjunto ou sistema de normas jurídicas vigentes em determinada sociedade dá lugar ao ordenamento jurídico. […] O Direito Penal é o setor ou parcela do ordenamento jurídico público interno que estabelece as ações ou omissões delitivas, cominando-lhes determinadas consequências jurídicas – penas ou medidas de segurança. […] A função primordial desse ramo da ordem jurídica radica na proteção de bens jurídico-penais – bens do Direito – essenciais ao indivíduo e à comunidade”.

Consequência disso (do direito penal), como bem expõe Renato Brasileiro de Lima (2017, p. 37), é que: “quando o Estado, por intermédio do Poder Legislativo, elabora as leis penais, cominando sanções àqueles que vierem a praticar a conduta delituosa, surge para ele o direito de punir os infratores num plano abstrato e, para o particular, o dever de se abster de praticar a infração penal. A partir do momento em que alguém pratica a conduta delituosa prevista no tipo penal, este direito de punir desce do plano abstrato e se transforma no ius puniendi in concreto. O Estado, que até então tinha um poder abstrato, genérico e impessoal, passa a ter uma pretensão concreta de punir o suposto autor do fato delituoso”.

É certo, porém, que o exercício do jus puniendi não dispensa a anterior discussão do fato delituoso no âmbito de um processo judicial, haja vista não ser uma característica do direito penal a coação direta, mas como observa Aury Lopes Jr. (2018, p. 34): “o Direito Penal, contrariamente ao Direito Civil, não permite, em nenhum caso, que a solução do conflito – mediante a aplicação de uma pena – se dê pela via extraprocessual. O direito civil se realiza todos os dias, a todo momento, sem necessidade de processo. […] O direito penal não tem realidade concreta fora do processo penal, ou seja, não se efetiva senão pela via processual. Quando alguém é vítima de um crime, a pena não se concretiza, não se efetiva imediatamente”.

De se notar, conforme ensinamento de Lopes Jr. (2018), que há uma íntima e indispensável relação entre a infração penal, a pena e o processo, de modo que são complementares, logo não existindo delito sem pena, também não existindo pena sem delito e sem processo. Para o autor, o processo penal é o caminho a ser necessariamente percorrido para a imposição da pena.

Logo, tem-se que “a finalidade precípua do Direito Processual Penal é, portanto, garantir a efetiva e justa incidência ao caso concreto das leis penais objetivas” (MASSON, 2019, p. 5).

Mas, para uma justa incidência das leis penais incriminadoras ao caso concreto, o processo penal também deverá ser justo, “ser devido”, respeitando diversos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, os quais em sua maioria se encontram entalhados na Constituição Cidadã, a exemplo da dignidade humana, do devido processo legal, da isonomia, do contraditório e da ampla defesa, do tratamento de não culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória etc. Isso porque, como bem pontua Lopes Jr. (2018, p. 35): “o processo não pode mais ser visto como um simples instrumento a serviço do poder punitivo (direito penal), senão que desempenha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena”.

Prestigiando uma leitura constitucional do processo penal brasileiro, Eugênio Pacelli de Oliveira (2011, p. 8) argumenta que: “o devido processo penal constitucional busca, então, realizar uma Justiça Penal submetida à exigência de igualdade efetiva entre os litigantes. O processo justo deve atentar, sempre, para a desigualdade material que normalmente ocorre no curso de toda persecução penal, em que o Estado ocupa posição de proeminência, respondendo pelas funções investigatórias e acusatórias, como regra, e pela atuação da jurisdição, sobre a qual exerce o monopólio. Processo justo a ser realizado sob instrução contraditória, perante juiz natural da causa, e no qual seja exigida a participação efetiva da defesa técnica, como única forma de construção válida do convencimento judicial. E o convencimento deverá ser sempre motivado, como garantia do adequado exercício da função judicante e para que se possa impugná-lo com maior amplitude perante o órgão recursal”.

Dessarte, vê-se que é através de um processo judicial no qual foram respeitados os direitos e garantias fundamentais do réu que o ato final do procedimento, caso reconheça a procedência do pedido acusatório, será dotado da necessária legitimidade para sujeitar o indivíduo à reprimenda imposta.

Contudo, no que concerne aos referidos direitos e garantias, tem-se que a observância deles não impede eventual intromissão do Estado na liberdade do indivíduo para fins de tutela do processo, razão por que, no curso da persecução penal, embora não se permita a aplicação de forma antecipada do direito punitivo, é possível que o juiz, mediante providências de natureza instrumental, restrinja, por exemplo, o jus libertatis do suposto autor da conduta delitiva.

 

  1. Aplicação de medidas cautelares para tutela do processo

A respeito das providências referidas anteriormente, adotadas pelo Juiz na persecução penal, vê-se, conforme exposto por Lima (2017, p. 829), que: “apesar de não ser possível se admitir a existência de um processo penal cautelar autônomo, certo é que, no âmbito processual penal, a tutela jurisdicional cautelar é exercida através de uma série de medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal e na legislação especial, para instrumentalizar, quando necessário, o exercício da jurisdição. Afinal, em sede processual penal, é extremamente comum a ocorrência de situações em que essas providências urgentes se tornam imperiosas, seja para assegurar a correta apuração do fato delituoso, a futura e possível execução da sanção, a proteção da própria coletividade, ameaçada pelo risco de reiteração da conduta delituosa, ou, ainda, o ressarcimento do dano causado pelo delito”.

Assim, pode-se afirmar que “as medidas cautelares de natureza processual penal buscam garantir o normal desenvolvimento do processo e, como consequência, a eficaz aplicação do poder de penar. São medidas destinadas à tutela do processo” (LOPES JR., 2018, p. 583).

Interessando ao presente trabalho os provimentos cautelares de natureza pessoal, são estes, como ensina Lima (2017, p. 830): “medidas restritivas ou privativas da liberdade de locomoção adotadas contra o imputado durante as investigações ou no curso do processo, com o objetivo de assegurar a eficácia do processo, importando algum grau de sacrifício da liberdade do sujeito passivo da cautela, ora em maior grau de intensidade (v.g. prisão preventiva, temporária), ora com menor lesividade (v.g. medidas cautelares diversas da prisão do art. 319, CPP)”.

De se ver então que o juiz, zelando pela efetividade do processo penal, poderá impor ao investigado ou réu medidas cautelares que no caso se mostrem proporcionais, como, por exemplo, a prisão provisória, que pode ser temporária ou preventiva. A propósito, segundo Lima (2017), cuida-se esse carcer ad custodiam de medida de natureza excepcional, decretada antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória a fim de assegurar a eficácia das investigações ou do processo criminal. É prisão obrigatoriamente comprometida com a instrumentalização do processo criminal, não podendo ser utilizada como cumprimento antecipado de pena, haja vista que o juízo que se faz, para sua decretação, não é de culpabilidade, mas de periculosidade.

Sendo assim, é correto afirmar tratar-se a prisão preventiva de excepcional providência a ser adotada pela autoridade judiciária competente, a requerimento ou ex officio, sempre que, em vista do preenchimento dos requisitos do art. 313, CPP e da presença dos motivos autorizadores elencados no art. 312 do CPP, um juízo de proporcionalidade aponte no caso concreto para a inadequação ou insuficiência das cautelares diversas do cárcere.

“Como qualquer medida cautelar, a preventiva pressupõe a existência de periculum in mora (ou periculum libertatis) e fumus boni iuris (ou fumus comissi delicti), o primeiro significando o risco de que a liberdade do agente venha a causar prejuízo à segurança social, à eficácia das investigações policiais/apuração criminal e à execução de eventual sentença condenatória, e o segundo, consubstanciado na possibilidade de que tenha ele praticado uma infração penal, em face dos indícios de autoria e da prova da existência do crime verificados no caso concreto” (AVENA, 2019, p. 996).

 

  1. Proporcionalidade, excepcionalidade, provisoriedade e revogabilidade da prisão preventiva

Afirmar que a prisão preventiva decorre de um juízo de proporcionalidade implica dizer que deve se mostrar no caso concreto, além de adequada, necessária e proporcional em sentido estrito, a medida que melhor atende aos fins perseguidos no processo penal. Sobre isso, leciona Humberto Ávila (2005, p. 114) que um: “fim significa um estado desejado de coisas. Os princípios estabelecem, justamente, o dever de promover fins. Para estruturar a aplicação do postulado da proporcionalidade é indispensável a determinação progressiva do fim. […] O postulado da proporcionalidade exige adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito de uma medida havida como meio para atingir um fim empiricamente controlável”.

Quanto à aplicação do referido princípio à prisão preventiva, esclarece Gustavo Henrique Badaró (2015, p. 956) que: “qualquer medida cautelar não é um fim em si mesma, mas um instrumento para atingir a finalidade de assegurar a utilidade e eficácia de um futuro provimento principal. Justamente por isso, a cautelar é sempre provisória, vigorando enquanto não se profere o provimento principal que irá substituí-la. […] Há, pois, um princípio de proporcionalidade que governa as medidas cautelares e, em especial, a prisão cautelar. Consequência disso é que o juiz não deve se limitar a analisar prova da existência do crime e indício suficiente de autoria para a decretação da prisão preventiva (CPP, art. 312). Esses critérios são indicadores do denominado fumus commissi delicti, isto é, da probabilidade, baseada em uma cognição sumária, de que o acusado seja o autor de um delito. São elementos necessários, mas não suficientes para a prisão cautelar”.

Assim, para o autor, é possível observar, por exemplo, que: “sob um enfoque da regra da proporcionalidade em sentido amplo, é possível afirmar que prender cautelarmente quem ao final do processo, segundo a pena provável a ser aplicada, não será sancionado com pena privativa de liberdade implica uma restrição à liberdade de locomoção que viola o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito. Não haverá ponderação entre a importância da realização do fim (assegurar o cumprimento de uma pena não privativa de liberdade ou mesmo a instrução de um processo cuja condenação não será cumprida em regime de encarceramento) e a intensidade de restrição ao direito fundamental da liberdade de locomoção pela prisão cautelar. A vantagem produzida pela prisão cautelar não supera as desvantagens advindas da sua utilização no caso de penas concretas não privativas de liberdade (BADARÓ, 2015, p. 958)”.

Ademais, além de proporcional, a prisão preventiva também é marcada pela excepcionalidade, sendo certo, de acordo com o previsto no art. 282, § 6ª do CPP, que será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar. A esse respeito, Avena (2019, p. 910) ensina que: “o atributo da excepcionalidade deve ser visto sob dois ângulos: excepcionalidade geral, significando que, assim como as demais cautelares, deve ser decretada apenas quando devidamente amparada pelos requisitos legais, em observância ao princípio constitucional da presunção de inocência, sob pena de antecipar a reprimenda a ser cumprida quando da condenação; e, ainda, excepcionalidade restrita, isto é, aquela relacionada a sua supletividade diante das demais providências cautelares diversas da prisão”.

Já no tocante às características da provisoriedade e da revogabilidade da custódia cautelar, cristalino é o ensinamento de Lima (2017, p. 855), que destaca o seguinte: “como desdobramento de sua natureza provisória, a manutenção de uma medida cautelar depende da persistência dos motivos que evidenciaram a urgência da medida necessária à tutela do processo. São as medidas cautelares situacionais, pois tutelam uma situação fática de perigo. Desaparecido o suporte fático legitimador da medida, consubstanciado pelo fumus comissi delicti e pelo periculum libertatis, deve o magistrado revogar a constrição. Por isso é que se diz que a decisão que decreta uma medida cautelar sujeita-se à cláusula rebus sic stantibus, pois está sempre sujeita à nova verificação de seu cabimento, seja para eventual revogação, quando cessada a causa que a justificou, seja para nova decretação, diante do surgimento de hipótese que a autorize (CPP, art. 282, § 5°, c/c art. 316). Enfim, como toda e qualquer espécie de medida cautelar, sujeita-se a decisão que decreta as cautelares de natureza pessoal, inclusive a própria prisão cautelar, à cláusula da imprevisão, podendo ser revogada quando não mais presentes os motivos que a ensejaram, ou renovada se acaso sobrevierem razões que a justifiquem”.

 

  1. Prisão preventiva decretada para a garantia da ordem pública

Consoante previsto no art. 312 do CPP, “a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”. São estes os motivos ou fundamentos autorizadores desta medida constritiva da liberdade.

Importando a compreensão da expressão “garantia da ordem pública”, primeiramente cumpre salientar tratar-se de um conceito vago, que carece de delimitação, porquanto “ordem pública” possui um sentido bastante amplo. Criticando o fundamento sob análise, Lopes JR. (2018, p. 637) argumenta que a garantia da ordem pública: “por ser um conceito vago, indeterminado, presta-se a qualquer senhor, diante de uma maleabilidade conceitual apavorante […]. Não sem razão, por sua vagueza e abertura, é o fundamento preferido, até porque ninguém sabe ao certo o que quer dizer”.

Por falar nisso, para Badaró (2015, p. 977): “a expressão “ordem pública” é vaga e de conteúdo indeterminado. A ausência de um referencial semântico seguro para a “garantia da ordem pública” coloca em risco a liberdade individual. A jurisprudência tem se valido das mais diversas situações reconduzíveis à garantia da ordem pública: “comoção social”, “periculosidade do réu”, “perversão do crime”, “insensibilidade moral do acusado”, “credibilidade da justiça”, “clamor público”, “repercussão na mídia”, “preservação da integridade física do indiciado” … Tudo cabe na prisão para a garantia da ordem pública. […]Quando se prende para “garantir a ordem pública”, não se está buscando a conservação de uma situação de fato necessária para assegurar a utilidade e a eficácia de um futuro provimento condenatório. Ao contrário, o que se está pretendendo é a antecipação de alguns efeitos práticos da condenação penal. No caso, privar o acusado de sua liberdade, ainda que juridicamente tal situação não seja definitiva, mas provisória, é uma forma de tutela antecipada, que propicia uma execução penal antecipada”.

Como se vê da crítica feita pelo autor supra, a custódia cautelar decretada para garantia da ordem pública seria carecedora de instrumentalidade, não servindo como medida cautelar, mas funcionando como uma verdadeira antecipação de tutela no âmbito do processo penal. Sem embargo dos olhares críticos comumente lançados sobre este fundamento autorizador da medida constritiva, cumpre reconhecer que tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm se empenhado em apontar situações/causas nas quais o decreto de prisão se acha embasado no aludido fim.

A esse respeito, tem-se defendido que o afastamento do suposto autor do delito do meio social em razão de sua periculosidade concreta (e não presumida), por exemplo, atende à garantia da ordem pública, prestando-se a evitar que o agente cometa novos delitos relacionados com a infração penal praticada. Mas não é só isso, haja vista que, segundo Lima (2017), a prisão preventiva para a garantia da ordem pública, além de poder ser decretada com o objetivo de resguardar a sociedade da reiteração de crimes em virtude da periculosidade concreta do agente, também poderá servir para acautelar o meio social, garantindo a credibilidade da justiça em crimes que provocam clamor público.

No intuito de estabelecer critérios para a decretação da custódia preventiva com base na garantia da ordem pública, identificando elementos concretos indicadores de tal necessidade, Guilherme de Souza Nucci (2014) afirma que a garantia da ordem pública pode ser visualizada por vários fatores, dentre os quais: gravidade concreta da infração + repercussão social + periculosidade do agente. Mas salienta o autor que outros dois elementos vêm sendo considerados pela jurisprudência, quais sejam, o modus operandi do agente na execução do crime e o seu envolvimento em organização criminosa. Sobre este último, por oportuno, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, firmada no julgamento do HC 108.834, sustenta que: “reveste-se de fundamentação juridicamente idônea a decisão que decreta (ou que mantém) prisão cautelar de possíveis integrantes de organizações criminosas, desde que o ato judicial, apoiado em dados concretos, tenha por suporte razões ditadas pela necessidade de preservar-se a ordem pública”.

Portanto, segundo Nucci (2014), cabe ao juiz verificar todos os pontos de afetação da ordem pública, buscando encontrar, pelo menos um binômio para a sua decretação (ex: gravidade concreta do crime + péssimos antecedentes do réu; envolvimento com organização criminosa + repercussão social; particular execução do delito + gravidade concreta da infração penal etc).

 

  1. Insubsistência das razões que motivaram a imposição da custódia cautelar para a garantia da ordem pública

Uma vez imposta fundamentadamente a prisão preventiva para a garantia da ordem pública, tendo sido invocadas pelo juiz umas das causas indicadoras da necessidade da constrição para o aludido fim (ex: gravidade concreta do crime + péssimos antecedentes do réu; envolvimento com organização criminosa + repercussão social; particular execução do delito + gravidade concreta da infração penal etc), surge interessante questão consistente em saber em quais circunstâncias é possível atestar a insubsistência das razões concretas que fundamentaram a medida, notadamente para fins de revogação desta ou substituição por outras diversas do encarceramento.

Isso porque, em se tratando de providência adotada com base no princípio da proporcionalidade, pode ser que no caso concreto outras medidas cautelares (dotadas de preferencialidade) se mostrem, posteriormente, mais adequadas e suficientes para a contenção do suposto autor do delito e eficácia do processo. Sobre este ponto, Badaró (2015, p. 994) acertadamente afirma que “se a proporcionalidade é requisito implícito para a decretação da prisão preventiva, a desproporcionalidade autoriza a sua revogação”.

Logo, para se falar na desproporcionalidade que autoriza a revogação da prisão cautelar é preciso que esta tenha sido legalmente decretada, vindo, porém, a se tornar inadequada, desnecessária, desproporcional em sentido estrito. Assim sendo, segundo o autor, “não se deve confundir o relaxamento da prisão preventiva com a sua revogação. A prisão preventiva ilegal será relaxada. É mandamento constitucional que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária” (art. 5, LXV). Coisa distinta é a revogação da prisão preventiva que foi legalmente decretada, mas no curso da persecução penal tornou-se desnecessária” (BADARÓ, 2015, p. 993).

E como se está diante de uma prisão provisória, regida pela cláusula rebus sic stantibus (cláusula de imprevisão), é certo que a modificação do suporte fático legitimador da medida resultará na desproporcionalidade dela, razão por que a sua revogação/substituição é dever do juiz. A esse respeito, pertinente é a lição de Pacelli (2011, p. 545/546): “como toda medida cautelar, também a prisão preventiva tem a sua duração condicionada à existência temporal de sua fundamentação. Em outros termos: a prisão preventiva submete-se à cláusula da imprevisão, podendo ser revogada quando não mais presentes os motivos que a ensejaram, bem como renovada quando sobrevierem razões que a justifiquem (art. 316, CPP). Que não fique dúvida: a prisão preventiva pode ser revogada quando não mais estejam presentes as razões que determinaram a sua decretação; no entanto, quando ainda for necessário manter-se um grau menos gravoso de proteção ao processo, nada impede que ela, a preventiva, seja substituída por outra cautelar, desde que e somente se ainda estiverem presentes as hipóteses do art. 282, I, CPP”.

Sobre a revogabilidade de uma custódia preventiva decretada legalmente, mas que se tornou, posteriormente, desproporcional, colhe-se da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal os seguintes entendimentos: ● se a custódia cautelar foi decretada apenas com fundamento na conveniência da instrução criminal, o encerramento desta torna desnecessária aquela (HC 100.340, rel. min. Cezar Peluso, j. 10-11-2009, 2ª T, DJE de 18-12-2009); ● o fato de o paciente turbar o andamento processual, ocultando-se para não ser citado, além de reprovável, justifica a decretação da prisão preventiva para garantir a aplicação da lei penal. A posterior citação do paciente conjugada com a falta de elementos indicativos de risco à aplicação da lei penal induz à superação dos motivos da segregação cautelar do paciente (HC 115.907, rel. min. Rosa Weber, j. 3-9-2013, 1ª T, DJE de 18-10-2013); ● o julgamento pelo tribunal do júri que confere novos rumos à ação penal, desclassificando a conduta de tentativa de homicídio para lesão corporal, esvazia a premissa atinente à periculosidade derivada do modus operandi (HC 108.431, rel. min. Cármen Lúcia, j. 4-10-2011, 1ª T, DJE de 20-10-2011).

De se ver, pelo exposto, que a revogação da prisão preventiva legitimamente imposta pressupõe uma alteração ou cessação da causa que serviu ao juiz para a invocação de fundamento previsto no art. 312 do CPP, revelando-se a medida constritiva, à vista disso, desproporcional.

No tocante à garantia da ordem pública, a propósito, por certo é possível falar na insubsistência das causas que a embasaram (gravidade concreta do crime + péssimos antecedentes do réu; envolvimento com organização criminosa + repercussão social; particular execução do delito + gravidade concreta da infração penal etc) quando da análise do caso concreto restar evidenciada a superveniente ausência da necessidade, da adequação ou da proporcionalidade em sentido estrito da segregação preventiva.

Isso porque, tratando-se, como predito, de uma providência de natureza cautelar, marcada pela provisoriedade (não tem o intuito de ser definitiva) e regida por cláusula de imprevisão (rebus sic stantibus), é possível que no curso da persecução penal uma custódia decretada para a garantia da ordem pública, que tenha considerado a gravidade concreta do crime e o envolvimento com organização criminosa, deixe de ser necessária e/ou adequada e/ou proporcional stricto sensu quando, por exemplo, a atuação do custodiado na organização criminosa de tráfico de drogas se resumia à lavagem de dinheiro e, atualmente, ache-se a ORCRIM desmantelada (impossibilitada de dar continuidade à atividade ilícita) em razão da prisão dos integrantes responsáveis diretamente pelo tráfico.

Por sinal, trata-se de entendimento firmado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, divulgado no Informativo nº 594, o de que: “na hipótese em que a atuação do sujeito na organização criminosa de tráfico de drogas se limitava à lavagem de dinheiro, é possível que lhe sejam aplicadas medidas cautelares diversas da prisão quando constatada impossibilidade da organização continuar a atuar, ante a prisão dos integrantes responsáveis diretamente pelo tráfico” (HC 376.169-GO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Rel. para acórdão Min. Sebastião Reis Júnior, por maioria, julgado em 1/12/2016, DJe 14/12/2016).

 

Conclusão

Vedada pelo ordenamento a aplicação antecipada do direito punitivo, ao juiz se permite, no curso da persecução penal, visando à efetividade da prestação jurisdicional, impor medidas cautelares ao investigado ou réu, a exemplo da prisão preventiva.

Esta modalidade de prisão cautelar se vê disciplinada nos arts. 311 e seguintes do CPP, podendo ser imposta pela autoridade judiciária competente, a requerimento ou ex officio, sempre que, em vista do preenchimento dos requisitos do art. 313, CPP e da presença dos motivos autorizadores elencados no art. 312 do CPP, um juízo de proporcionalidade aponte no caso concreto para a inadequação ou insuficiência das cautelares diversas do encarceramento.

São motivos (ou fundamentos) que autorizam o decreto prisional a garantia da ordem pública, a garantia da ordem econômica, a conveniência da instrução criminal e a garantia da aplicação da lei penal.

A respeito do primeiro fundamento, malgrado seja a garantia da ordem pública um conceito vago, de sentido bastante amplo, que tem servido à imposição da custódia preventiva por diversas razões, não se pode perder de vista que mesmo a prisão preventiva decretada para o aludido fim é medida sujeita ao princípio da proporcionalidade, também marcada pela provisoriedade (não tem o intuito de ser definitiva) e regida por cláusula de imprevisão (rebus sic stantibus), de modo que, revelando-se, posteriormente, desproporcional (inadequada, desnecessária ou desproporcional em sentido estrito) a causa indicadora da necessidade da constrição para a garantia da ordem pública (ex: a gravidade concreta do crime + péssimos antecedentes do réu; o envolvimento com organização criminosa + repercussão social; a particular execução do delito + gravidade concreta da infração penal etc), por certo a medida deverá ser revista pelo juiz para fins de revogação ou de substituição por outras cautelares diversas do cárcere.

 

Referências

AVENA, Norberto. Processo Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019.

 

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[i] Graduado em Direito pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca – UNIFAVIP/WYDEN. Pós-graduado em Direito pela UNINASSAU e pela UCAM. Serventuário do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Assessor de Magistrado.

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