Sociedade civil, Estado moderno e a soberania

Resumo: A conceituação de Sociedade Civil, Estado (moderno) e soberania vêm sofrendo diversas alterações em sua concepção, justificação e fundamentação. Assim, merecem ser compreendidas em seus contextos históricos, especialmente sob o aspecto jurídico para efetiva compreensão do tema. Para tanto, busca na literatura clássica tradicional na intenção, se necessário, para contrastá-los, a fim de garantir a legitimidade do exercício do poder do Estado com a manutenção de um estado de sujeição do indivíduo. Com isso, é uma reinterpretação das teorias clássicas em caráter abstrato.

Palavras chave: 1. Teoria geral do Estado. 2. Soberania. 3. Poder.

Abstract: The concept of Civil Society, State (modern) and sovereignty are undergoing several changes in its design, justification and rationale. Thus, deserve to be understood in their historical contexts, especially under the legal aspect for effective understanding of the subject. Therefore, it seeks in traditional classical literature in intention, if necessary, to contrast them in order to ensure the legitimacy of the exercise of state power the maintenance of a state of subjection of the individual. With this, it is a reinterpretation of the classical theories in abstract character.

Keywords: 1 General Theory of the State. 2 Sovereignty. 3 Power.

Sumário: I – Introdução; II- Da sociedade civil; III- O Estado moderno; IV- Soberania.

I – Introdução

"Livre, é o estado daquele que tem liberdade. Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta; que não há ninguém que explique, e que não há ninguém que não entenda". Esta preposição extraída do Filme Ilha das Flores (1989), um marco no cinema nacional, do cineasta gaúcho Jorge Furtado, que bem exprime a situação de sujeição da pessoa ao Poder estatal, que, ao mesmo tempo que garante o exercício de alguns direitos pelo cidadão, limita suas ações dentro do quadro do interesse público.

Para se explicar esta situação de sujeição foram criadas diversas teorias do Poder do Estado, que aqui se pretende tratar brevemente, em especial do Estado moderno, sem a pretensão de esgotamento da matéria. Analisa-se, assim, os elementos constitutivos da sociedade civil, do Estado e do Poder soberano.

Desta feita, na intenção de melhor desenvolvimento do presente trabalho, optou-se por analise das teorias clássicas de justificação do Estado moderno e o seu desenvolvimento histórico, pela ótica jurídica, haja vista que tais teorias refletem seus fundamentos até os dias atuais.

II- Da sociedade civil.

O termo "Sociedade Civil", já foi compreendido ora como povo, ora população, ou até mesmo Estado. Tanto é assim que:

“Num sentido genérico, sociedade é qualquer conjunto de indivíduos em relação de dependência. Porém, num significado mais preciso, apenas se tem como tal uma união moral, na busca do bem comum. Então, só se considera como em sociedade os homens agrupados, sob dada ordem normativa, com a consciência de constituírem um todo, tendo em vista determinado fim, o bem comum, sob um poder que os unifica”. (MELO, 2011, p.1).

Ainda, quando Rousseau definiu os elementos constitutivos do Estado em Pacto Social, disse:

“Quando aos associados, recebem coletivamente o nome de povo, e se chamam individualmente de cidadãos, como participantes da sociedade soberana, e súditos, como submetidos às leis do Estado. Mas estes termos se confundem frequentemente e são tomados uns pelos outros; será suficiente saber distingui-los quando empregados com toda precisão”. (ROUSSEAU, p. 26)

Porém, na visão Bobbio ganha contornos de grandes dicotomias que merecem ser brevemente expostos. Assim, o termo "povo" na sua acepção clássica será tratado novamente quando do estudo dos elementos constitutivos do Estado.

Das grandes dicotomias que permeiam a sociedade civil descritas por Bobbio destaca-se a sociedade de iguais e sociedade de desiguais; A lei e o contrato; Justiça comutativa e justiça distributiva; O primado do privado; O primado do público; Público ou secreto; e, publicidade e poder invisível. Estas dicotomias, em verdade, traduzem a forma de ver a sociedade civil pelo status negativo, onde " […] por 'sociedade civil' entende-se a esfera das relações sociais não reguladas pelo Estado, entendido restritivamente a quase sempre também polemicamente como conjunto de aparatos que num sistema social organizado exerce o poder coativo" (BOBBIO, 2005, p.33). Isto é, a sociedade civil há de ser concebida como aquilo que extrapola a esfera estatal (dicotomia do público/privado) e que se apresentam as diferenças e subjugação do indivíduo.

Nota-se, portanto, as grandes dicotomias têm por objeto esclarecer a "forma direito" para assegurar o poder coativo do governo sobre o governado, qual concorre às ideias do mundo burguês de liberdades, que busca limitar esse Poder, sustentando que as relação interindividuais – à exemplo das relações econômicas – que se autorregulariam, prescinde da presença do Estado. Ou seja, a busca do estado mínimo, vez que o Estado é tido por um mal necessário.

Assim, o significado do termo "sociedade civil" é nitidamente oriunda da confrontação das esferas política e da não política.  Com isso, pode ser identificado como algo não-estatal com o pré-estatal, anti-estatal ou pós-estatal.

No primeiro caso, pautado na doutrina jusnaturalista, concebida como fato social de que antes do Estado há a associação dos indivíduos, de forma consciente ou não consciente, para a satisfação de se seus interesses, onde o Estado surge para a regular tais relações, contudo, sem obstar o seu desenvolvimento. Já no segundo, assinala uma concepção axiológica (positiva ou negativa, dependendo do ponto de vista) de contra-poder, para a modificação das relações de dominação, com o fulcro de emancipação política. Na terceira e quarta acepções haveria a junção das duas primeiras situações, fundamentada no elemento cronológico e axiológico, representada por um ideal de sociedade civil sem Estado.

Chega-se, então, a constatação de que a sociedade civil nos tempos atuais que "é o lugar onde surgem e se desenvolvem os conflitos, sociais, ideológicos, religiosos, que as instituições estatais têm o dever de resolver através da mediação ou através da repressão" (BOBBIO, 2005, p. 35-36)

De outra senda, numa interpretação marxiana, a sociedade civil há de ser cunhada na economia política, por ser o lugar das relações mercantis; relações interindividuais fora ou antes do Estado, na sociedade natural. Isto é, "[…] o homem independente, unido ao outro apenas pelo vínculo do interesse privado e da necessidade natural inconsciente" (Marx e Engels, 1845, apud BOBBIO, 2005, p. 38).

Por sua vez, o sistema hegeliano é construído por um esquema triático, com a eticidade como elemento entreposto entre a família e o Estado, qual se contrapõe ao diático: aristotélico – dicotomia entre Família/Estado, e o jusnaturalista, dicotomia entre estado de natureza/estado civil. Versa uma concepção de um Estado superior e um Estado inferior, onde o Estado superior corresponde aos poderes constitucionais e governativos, enquanto o Estado inferior corresponde aos poderes judiciário e administrativo. Acresce-se, ainda, uma dimensão histórica. Desta feita, atrelando-se à juristas do direito público precedentes, especialmente privativistas, a sociedade civil entrelaça com o próprio conceito de Estado (inferior), na medida em que este se presta a dirimir, através da administração e da justiça, conflitos de ordem privada, e, sucessivamente, garantir o bem estar do cidadão.

 Na ótica jusnaturalista, sucintamente, a sociedade civil se contrapõe à sociedade natural. E, no sentido aristotélico, considerando que a sociedade natural tida por família, a sociedade civil representaria a agrupamento de famílias. Ainda nesta teoria, o termo "Estado" também foi tratada como uma "sociedade artificial".

Ainda, o termo sociedade civil também foi utilizado para qualificar a sociedade como civilizada (evoluída), contrapondo-se ao estado selvagem e bárbaro.

Por fim, "O conceito oferecido de sociedade como união moral de muitos, em busca do seu bem comum, sob uma autoridade, traz em si as causas que especificam qualquer ser. Causa final: o bem comum; causa eficiente: o homem, como ser racional e livre; causa material: o homem, como matéria sociável; e afinal, causa formal: a união moral sob uma autoridade" (MELO, 2011. p. 3). 

Por tudo isso, resta demonstrado que o termo "sociedade civil" possui muitos significados, cujo sentido há de ser aferido conforme o referencial teórico e contexto histórico. Mas, detém como elemento comum o homem coletivo, o poder e a autodeterminação em busca do bem comum.

III – O Estado moderno.

O Estado moderno, entendido como social pelos tradicionalistas é composto de três elementos, sendo eles: o povo, o território e o governo (poder), o que serão objeto de tratamento específico, merecendo, primeiramente, exprimir de forma concisa a gênese do termo "Estado".

O termo “Estado” (do latim status, de “estar firme”) foi utilizado pela primeira vez por Maquiavel na obra "O Príncipe", em seu Capítulo I, que versa:

“Todos os Estados, todos os governos que tiveram e têm autoridade sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados. Os principados são: ou hereditários, quando seu sangue senhorial é nobre há já longo tempo, ou novos. Os novos podem ser totalmente novos, como foi Milão com Francisco Sforza, ou o são como membros acrescidos ao Estado hereditário do príncipe que os adquire, como é o reino de Nápoles em relação ao rei da Espanha. Estes domínios assim obtidos estão acostumados, ou a viver submetidos a um príncipe, ou a ser livre, sendo adquiridos com tropas de outrem ou com as próprias, bem como pela fortuna ou por virtude”. (MAQUIAVEL, [. s.d.], p. 19-20)

Em seguida o termo foi utilizado pelos italianos, para referirem-se à uma cidade independente; e, posteriormente adotada pelos franceses, ingleses e alemães com o mesmo sentido ao longo dos séculos XVI e XVII.

Ressalta, destarte, a organização da sociedade em grupos se trate de uma realidade mais antiga, onde os indivíduos foram se aglomerando e a sua organização político social se dava de forma intuitiva; aqueles que se sobressaiam eram tidos pode líderes. E, no Estado Feudal, qual, em uma descrição simplista, caracterizava-se, em regra, sob o domínio governamental de um príncipe e nobreza, que eram detinham a maior parte das terras de seu território; uma parcela mínima do povo em atividades industriais e comerciais; e, a grande maioria do povo como servo, seja como vassalos, feudatários ou colonos dos senhores das terras.

A partir daí o conceito de Estado começa a ser moldado no século XIII, com as primeiras formulações da noção de soberania.

Nesse sentido:

“Uma tese recorrente percorre como extraordinária continuidade toda a história do pensamento político: O Estado, entendido como ordenamento político de uma comunidade, nasce da dissolução da comunidade primitiva fundada sobre os laços de parentesco e da formação de comunidades mais amplas derivadas da união de vários grupos familiares por razões de sobrevivência interna (o sustento) e externas (defesa). Enquanto que para alguns historiadores contemporâneos, como já se afirmou, o nascimento do Estado assinala o início da era moderna, segundo este mais antiga e mais comum interpretação o nascimento do Estado representa o ponto de passagem da sociedade primitiva, gradativamente diferenciada em selvagem e bárbara, à idade civil, onde "civil" está ao mesmo tempo para "cidadão" e "civilizado"”. (BOBBIO, 2005, p. 73).

Enfim, não há na história qualquer fato objetivo que denote o momento da gênese do Estado como o conhecemos hoje, sendo, pois, uma natural evolução do ser humano na busca do bem comum.

Desenvolveram-se, assim, diversas teorias de justificação do Estado, entenda aqui a justificação do exercício do poder, que, conforme ensinamentos de Sahid Maluf (MALUF, 1993, p. 59-89), sendo estas as de maior relevância:

Teorias Teológico-religiosas baseada no direito divino sobrenatural, qual crê o Estado foi criado por ato concreto divino, sendo o Rei ao mesmo tempo some-sacerdote, representante de Deus na ordem temporal e governador civil.

Teoria racionalista (jusnaturalismo) conhecidas como contratualistas ou pactistas. Funda-se no fato do ser humano se encontrava no estado de natureza e, em uma concepção metafísica do direito natural, conclui-se que a sociedade civil se organizou conforme um acordo utilitário e consciente entre os indivíduos. Dentre os expoentes dessa teoria, entre outros, destaca-se: Hugo Grotius – que conceituou o Estado como uma sociedade perfeita de homens livres que tem por finalidade a regulamentação do direito e a consecução do bem-estar coletivo; Emmanuel Kant – qual afirmou que ao saírem do estado de natureza, submeteram à uma limitação externa, livre e publicamente acordada, surgindo a autoridade civil, o Estado.

Teoria do Contrato Social, fulcrada na afirmação de que o indivíduo abria mão do estado de natureza por interesses comuns de sobrevivência e defesa, pautados especialmente no pensamento de Hobbes e Rousseau.

Escola histórica, que admite que o surgimento do Estado não se trata de uma instituição jurídica artificial, mas uma evolução natural de determinada comunidade. Teve como principal expoente Edmundo Burke.

Teoria da supremacia de classe, sendo "um conjunto de instituições que tem por finalidade assegurar o domínio de uma minoria vencedora sobre uma maioria vencida" (GUMPLOWICZ, apud MALUF, 1993, p. 83).

Enfim, o que há de comum à todas elas é o reconhecimento do exercício do poder conceituado como soberano. Mas, antes de tratar de soberania, concluindo este ponto, necessário conceituar o Estado, para ter melhor compreensão do objeto ora em estudo.

Aqui, Bobbio cita um dos primeiros teóricos estudiosos da soberania, Jean Bodin, que bem esclarece:

“[…], define o Estado como "um governo justo de muitas famílias e daquilo que lhe é comum, com poder soberano" e o poder soberano como "poder absoluto e perpétuo" onde "absoluto" significa que não está submetido a outras leis que não aquelas naturais e divinas, e "perpétuo" significa que consegue obter obediência continua a seus comandos graças também ao uso exclusivo do poder coativo.” (BOBBIO, 2005, p. 81)

Por sua vez, Rousseau:

“Esta pessoa pública, que é formada destarte pela união de todas as outras, e tinha antigamente o nome de cidade e agora o de república ou corpo político, que é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, potência comparando-o a seus semelhantes. Quando aos associados, recebem coletivamente o nome de povo, e se chamam individualmente de cidadãos, como participantes da sociedade soberana, e súditos, como submetidos às leis do Estado. Mas estes termos se confundem frequentemente e são tomados uns pelos outros; será suficiente saber distingui-los quando empregados com toda precisão.” (ROUSSEAU, p. 26)

E, Melo:

“O Estado é a sociedade política maior e perfeita, que visa a coordenar essas atividades, a fim de conseguir-se a harmonia, dentro da complexa vida social, e estabelece as diretrizes do bem-estar da coletividade. Corresponde, à ordenação jurídica de um povo, em dado território, sob poder supremo, para a realização do bem comum dele.” (MELO, 2011, p.7).

Enfim, o que se extrai desses conceitos é que o Estado tem a finalidade de normatizar (aqui no sentido de regrar) as relações interpessoais, subjugando o povo a um poder soberano, no intuito de obter o bem comum, manter a unidade e continuidade da sociedade civil. Ainda, possui como elementos necessários à sua constituição o povo, um território e o poder, que serão analisados com base na acepção jurídica dos termos.

Assim, salienta que o elemento "povo" não deve ser confundido com população, tampouco com nação.

Por população entende-se "Todas as pessoas presentes no território do Estado, num determinado momento, inclusive os estrangeiros e apátritas, fazem parte da população" (BONAVIDES, 2011. p. 72).

Já, o termo "nação" é utilizado para descrever uma realidade sociológica, cujo conceito é ordem subjetiva. É uma entidade de direito natural e histórico. Conceitua-se como um conjunto homogêneo de pessoas ligadas entre si por vínculos permanentes de sangue, idioma, religião, cultura e ideais (MALUF, 1993, p. 15-16). No mesmo sentido, Nogueira afirma que "Nação é o conjunto dos que se originam da mesma cêpa, falam a mesma língua, têm os mesmos usos e costumes, os mesmos sentimentos, as mesmas tradições, as mesmas aspirações, de tal sorte que tudo isto faz nascer a unidade étnica e histórica" (NOGUEIRA, 2011. p. 1) e tem por finalidade "conservar, preservar, transmitir, proteger e desenvolver o patrimônio cultural comum, em benefício da mais completa e perfeita formação da pessoa humana" (NOGUEIRA, 2011. p. 8).

Já o elemento povo, consoante a uma definição kelseniana, é pautada pelo elemento jurídico que liga os indivíduos. Sobre o tema:

“A questão de saber se um indivíduo pertence a determinado Estado não é uma questão psicológica, mas uma questão jurídica. A unidade dos indivíduos que formam a população de um Estado em nada mais pode ver-se do que no fato de que uma e a mesma ordem jurídica vigora para estes indivíduos, de que a sua conduta é regulada por uma e a mesma ordem jurídica. A população do Estado é o domínio pessoal de vigência da ordem jurídica estatal”. (KELSEN, 1996. p. 319 – grifo nosso).

Ou seja, se trata de uma questão legal, tornando-se "povo" àquele definido como sujeito pelas normas do ordenamento do território, não tendo, portanto, que se levar em conta concepções psicológicas, culturais ou sociais, diferentemente do que ocorre com os termos nação e população, respectivamente.

 Quanto ao elemento "território", o mesmo doutrinador acima citado explicita:

“O território do Estado é um espaço rigorosamente delimitado. Não é um pedaço, exatamente limitado, da superfície do globo, mas um espaço tridimensional ao qual pertencem o subsolo, por baixo, e o espaço aéreo por cima da região compreendida dentro das chamadas fronteiras do Estado. É patente que a unidade deste espaço não é uma unidade natural, geograficamente definida. A um e mesmo espaço estadual podem pertencer territórios que estejam separados pelo mar, o qual não constitui domínio de um só Estado, ou pelo território de um outro Estado. Nenhum conhecimento naturalístico, mas só um conhecimento jurídico, pode dar resposta à questão de saber segundo que critério se determina os limites ou fronteiras do espaço estadual, o que é que constitui a sua unidade. O chamado território do Estado apenas pode ser definido como o domínio espacial de vigência de uma ordem jurídica estadual”. (KELSEN, 1996. p. 319).

  Como se vê, da mesma forma, versa sobre questões positiva, devendo a lei efetivamente definir o seu espaço, até porque ele é "é a base geográfica do poder" (BONAVIDES, 2011. p. 94), isto é, o limite espacial onde o sujeito encontra-se sujeitado ao ordenamento jurídico.

E, o último elemento consultivo do Estado é o Poder (governo), que é o liame entre a o corpo político e o Estado, exprimindo a ideia de autoridade. Nas palavras de Bobbio:

“Aquilo que "Estado" e "política" têm em comum (e é inclusive a razão da intercambialidade) é a referência ao fenômeno do poder. Do grego Kratos, "força", "potência", e arché, "autoridade" nasce os nomes das antigas formas de governo, "aristocracia", "democracia", "oclocracia", monarquia, "oligarquia" e todas as palavras que gradativamente foram sendo forjadas para indicar formas de poder, "fisiocracia", "burocracia", "partidocracia", "poliarquia",  "exarquia" etc. Não há teoria política que não parta de alguma maneira, direita ou indiretamente, de uma definição de "poder" e de uma análise do fenômeno do poder.” (BOBBIO, 76-77).

Kelsen assim o define:

“Costuma ver-se no exercício do poder do Estado uma manifestação de força (poder), que é tida como um atributo tão essencial do Estado que até se designa o Estado como poder e se fala dos Estados como “potências”, mesmo que não se trate de uma “grande potência”. O “poder” do Estado somente se pode manifestar nos meios de poder específicos que se encontram à disposição do governo: nas fortalezas e nas prisões, nos canhões e nas forças, nos indivíduos uniformizados como polícias e soldados. Mas estas fortalezas e prisões, estes canhões e forças são objetos inanimados; eles apenas se tornam instrumentos do poder estadual na medida em que sejam utilizados pelos indivíduos de acordo com as ordens que lhes são dadas pelo governo, na medida em que os policiais e soldados observem as normas que regulam a sua conduta. O poder do Estado não é uma força ou instância mística que esteja escondida detrás do Estado ou do seu direito. Ele não é senão a eficácia da ordem jurídica”. (KELSEN, 1996. p. 320-321).

Conclui-se, desta forma, com base na acepção jurídica, que o poder "representa sumariamente aquela energia básica que anima a existência e uma comunidade humana num determinado território, conservando-a unida, coesa e solidária" (BONAVIDES, 2011. p. 113).

Em face dessas definições teóricas, resumidamente, destaca que o Estado moderno, em sua evolução, se estabelece pela despersonalização do poder, deixando este de ser exercido por uma pessoa para o sê-lo pelas instituições, pautado em normas jurídicas, não mais se tratando de uma questão de força (poder de fato), mas sim uma questão de legitimidade (poder de direito) (BONAVIDES, 2011. p. 113). É, de se ressaltar, aqui, tanto mais eficaz a ordem jurídica, mais eficaz será o poder exercido pelo Estado para a manutenção de sua força.

Assim, a política desenvolvida pelo governo, para fortalecer substancialmente a sua legitimidade, também se preocupação da limitação do poderes estatais, a fim de impedir o seu abuso e dar tranquilidade e segurança ao corpo social.

Desta forma, o Estado Moderno foi inaugurado na forma de Estado Liberal, após a Revolução Francesa, 1789, que tinha como lema era Liberté, Égalité, Fraternité. Seu escopo era garantir as liberdades civis e políticas, pretendendo ao mínimo a intervenção estatal nas relações privadas. Tinha como expoente do poder o legislativo.

Posteriormente, no mundo capitalista, e em resposta ao fomento socialista, desenvolveu-se para o Estado Social (marco histórico – Constituição Mexicana, de 1917; Constituição Alemã, de 1919), cujo mote era a garantia dos direito sociais, via constitucionalização das normas trabalhistas, passando a intervir nas relações interpessoais de maneira mais acentuada, para garantir um "mínimo" de direitos tidos por fundamentais. Tinha como poder expoente o Executivo.

Essa evolução culminou no atual Estado Democrático de Direito, que, em observância às atrocidades cometidas na segunda-guerra mundial, passa a dar maior importância aos direitos difusos e coletivos, além de densificar a garantidas consagradas historicamente (direitos fundamentais e direitos humanos), se baseado na dignidade da pessoa humana. Tem como poder expoente o Judiciário.

Tais considerações se prestam a denotar que embora tenha havido evolução da Sociedade Civil e do Estado, as acepções teóricas clássicas ainda mantém a sua pertinência em demonstrar de maneira metodológica a fenomenologia da formação e manutenção do Poder através do Estado.

VI. Soberania.

Uma vez expostos os marcos teóricos dos termos Sociedade Civil e Estado, passa-se a ver como este exerce o seu poder sobre àquele; o que se denomina soberania. O Estado Moderno surge como fruto das aspirações de unidade e poder centralizadas.

Assevera Melo que "O poder público soberano é o elemento especificador do Estado. O poder público compreende a instituição governamental e a soberania consiste na faculdade de autodeterminação em última instância" (MELO, 2011. p. 7). Desta feita, a sujeição do indivíduo se dá pelo reconhecimento de que o Estado detém em si a capacidade de estabelecer a normatividade das relações interpessoais – a força cogente.

Um dos primeiros estudiosos da soberania foi Jean Bodin, em Les six livres de la republique (1583) explicita:

“[…] o poder soberano é considerado, sem discussão possível, como inerente à própria noção, sadiamente compreendida, de comunidade política. […] A soberania é a força de coesão, de união da comunidade política, sem a qual esta se deslocaria. Ela cristaliza o intercâmbio de comando e obediência, imposto pela natureza das coisas a todo grupo social que quer viver. É o poder absoluto e perpétuo de uma república. Só é soberano, por definição, aquele que em nada depende de outrem, nem do Papa, nem do Imperador; que tudo resolve por si mesmo; que não está ligado por vínculo algum de sujeição pessoal; cujo poder não é temporário, nem delegado, nem tampouco responsável perante qualquer outro poder sobre a terr”. (BODIN, apud TAIR, 2009. p. 55).

Ainda:

“É necessário que quem seja soberano não se encontre de modo algum submetido ao império de outro e possa dar a lei aos súditos e anular as leis inúteis; isto não pode ser feito por quem está sujeito às leis ou a outra pessoa. Por isso, diz que o príncipe está isento da autoridade das leis.” (BODIN, apud COSTA, 2011. p. 7).

Alguns pontos relevantes acerca desta afirmação são necessários. O primeiro é de que Bodin utiliza o termo República para exprimir o sentido de Estado. O termo "absoluto", esclarece o autor, que deve ser entendido como incondicionado que não encontre obstes políticos pelos homens, submetido exclusivamente às leis divinas. Já o termo "perpétuo" é disposto de forma de significar que o poder não pode ter limitação temporal prévia, sendo aquele quem o detém seu depositário; logo esta manutenção ocorreria somente nos Estados aristocráticos ou populares; e. se exercido sob o regime monárquico haveria ser hereditário.

Outro expoente do pensamento acerca da soberania foi Jean-Jacques Rousseau, abordando o assunto na obra Do contrato social (1762). Prima pela demonstração do Estado Social legítimo que represente a vontade geral. A principal diferença entre este e o autor antes mencionado é que altera a titularidade da soberania do rei (divino) para o povo, e deverá ser exercida através de um corpo político de cidadãos. Sobre o tema diz:

“A primeira e mais importante consequência dos princípios anteriormente estabelecidos é que só a vontade geral apenas pode dirigir as forças do Estado segundo o fim sua de sua instituição, que é o bem comum, pois se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses mesmos interesses que o tornou possível. É o que há comum nos diferentes interesses forma o vínculo social, e se não houvesse algum ponto no qual todos os interesses concordassem, nenhuma sociedade poderia existir. Ora, é unicamente segundo este interesse comum que a sociedade deve ser governada. Afirmo então que a soberania sendo apenas o exercício da vontade geral, jamais pode ser alienada, e que o soberano, que é um ser coletivo, apenas pode ser representado por si mesmo: o poder pode transmitido, mas não a vontade. […] A soberania é indivisível pela mesma razão pela qual é inalienável; pois a vontade geral, ou não o é, a do corpo do povo, ou apenas de uma parte”. (ROUSSEAU, p. 37-38).

Do colacionado, denota a concepção do contrato social há a troca da liberdade absoluta (estado de natureza), por uma liberdade assegurada na busca da convivência harmônica, adquirindo, assim, a cidadania. 

Outra característica marcante deste teórico é a qualificação da soberania como inalienável e indivisível, na medida em que pertence a todos ao mesmo tempo; o corpo social. Como consequência, nessa idea encontra-se a limitação do poder soberano na vontade geral, pois, o soberano estaria impedido de sobrecarregar os cidadãos com coisas inúteis ou taxá-los de maneira distintas entre si.

Ainda referindo-se aos tratadistas, não se pode deixar de lembrar de Thomas Hobbes, que define assim o pacto social:

“Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, a multidão assim unida numa só pessoa chama-se REPÚBLICA, em latim CIVITAS. É esta a geração daquele grande LEVIATÃ, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus imortal, nossa paz e defesa.” (HOBBES, p. 147).

Porém, diferentemente à fundamentação do autor anterior, a celebração do pacto para Hobbes decorre da necessidade de fazer cessar a situação de conflito (constante estado de beligerância), o contrato social do modo como é concebido por Rousseau pressupõe a celebração de um pacto legítimo em que os homens, que, após terem perdido sua liberdade natural, conquiste em troca do estado natural pelas liberdades civis.

“Em resumo, (em termos hobesianos) a soberania do Estado manifesta-se nos direitos e faculdades do soberano de exercer o poder temporal e também o poder religioso "abaixo de Deus"; de nunca poder ser responsabilizado pela quebra do pacto, quando isto ocorrer; de ter a garantia de reconhecimento dos seus atos por parte dos súditos, mesmo quando denotarem iniquidades; de não ser punido pelos súditos; de ser juiz das opiniões e doutrinas contrárias à paz; de prescrever as regras sobre os bens de que podem os homens gozar; de controlar a propriedade; de distribuir a terra; de determinar os contratos econômicos; de exercer a autoridade judicial; de fazer a guerra e a paz com outras nações e Estados; de escolher todos os seus conselheiros, ministros, magistrados e funcionários; de recompensar e de punir os súditos e de conceder títulos de honra”. (CESÀRIO, 1994. p.7).

Com efeito, do trecho acima transcrito constata-se que para Hobbes a soberania se caracteriza pela efetiva transferência das liberdades para o soberano, centralizando todo o poder, qualificando o pacto com um típico pacto de submissão, sob pena de manutenção do estado de beligerância. Como consequência, o poder do soberano é ilimitado e absoluto.

Também há de se ressaltar Georg Jellinek, cuja obra Teoria general del Estado, enfrenta com propriedade as questões sobre soberania. Resumidamente, expões que na sociedade há o poder dominante (Estado), com características exclusivas, e o os poderes não dominantes (outros tipos de sociedade). Afirma que a noção de soberania surgiria apenas com o Estado Moderno pelo exercício exclusivo do poder pelo monarca em um território sob seu povo. Assim, define que só há Estado se houver poder soberano que o ordene pela autodeterminação.

Mas, em se tratando de Estado de direito, ou seja, submetido ao regramento jurídico, o Estado também se encontra limitado em sua soberania pela Lei, na qualidade de sujeito de direito à unidade coletiva na qual este se consubstancia. Destaca-se:

“Se o Estado é uma unidade coletiva, uma associação, e esta unidade não é uma ficção, mas uma forma necessária de síntese de nossa consciência que, como todos os fatos desta, forma a base de nossas instituições, então tais unidades coletivas não são menos capazes de adquirir subjetividade jurídica que os indivíduos humanos”. (JELLINEK, apud COSTA, 2011, p. 9).

Continuando, Hans Kelsen, na obra Teoria pura do direito buscou sistematizar metodologicamente de forma científica o direito, portanto, também a soberania por ser expressão do poder subordinado ao regramento jurídico. Com isso, ao desenvolver o raciocínio lógico-jurídico de um sistema hierarquizado chega afirmar que a norma fundamental seria a norma de direito internacional (embora a maioria dos estudiosos estabelecem a constituição no ápice da pirâmide). Nesta seara sustenta Kelsen (1996) traz a idea de que a faz a norma ser superior às demais (compreendida aqui como de caráter constitucional) é o fato de ser fonte da qual as demais normas se fundam. No em tanto, considerando a existência de diversos Estados, e há igualdade entre eles, questiona se poderia subsistir a ideia de soberania? Poderia a soberania pertencer a vários sujeitos?

Para solucionar este problema, Kelsen lança mão dos conceitos de monismo (unicidade da ordem jurídica sob o primado do direito internacional) e dualismo (independência do direito interno em relação ao direito internacional), adotando o monismo, já que a base de sua teoria é a afirmativa de que o sistema jurídico é uno.

Ocorre que, acatando a primazia do direito internacional sobre o direito interno haverá dificuldade de aceitar a real soberania; inversamente, a soberania existiria tão somente a cada país em relação a sua ótica, constituindo-se, pois, várias ordens de valores igualmente soberanos, impossibilitando a resolução de conflitos existentes entre normas de ordenamentos diferentes. Em razão disso que Kelsen defendeu o monismo.

Por fim, conclui-se com a conceituação de soberania de Bobbio:

“Quem tem o direito exclusivo de usar a força sobre um determinado território é o soberano. Desde que a força é o meio mais resolutivo para exercer o domínio do homem sobre o homem, quem detém o uso deste meio com a exclusão de todos os demais dentro de certas fronteiras é quem tem, dentro dessa fronteiras, a soberania entendida como summa potesta, como poder supremo: summa no sentido de superiorem non recognoscens, suprema no sentido de que não tem nenhum outro poder acima de si. Se o uso da força é a condição necessária do poder político, apenas o uso exclusivo desse poder lhe é também condição suficiente.” (BOBBIO, 2005, p. 80-81).

Em suma, o que se pretendeu demonstrar são as diversas acepções do termo de soberania e como ele se justifica como instrumento de dominação do corpo civil (povo), perpetuando sujeição ao governo (poder) dentro do espaço territorial.

Conclusão.

Com as exposições acima, denota que a concepção de sociedade civil, Estado moderno e soberania sofreram sensíveis modificações no decorrer da história, com objetivo de legitimar a manutenção, concentração e institucionalização do poder nas mãos do Estado como o único e exclusivo detentor da força coativa. As mudanças se deram em razão dos momentos históricos, que, tendo sido concebido inicialmente o Poder como algo absoluto. Com o passar do tempo foi sendo limitado pela razão, especialmente através do movimento constitucionalista.

Em razão disso estas acepções são reiteradamente suscitadas até os dias de hoje para fomentar e justificar a legitimação do exercício do poder, até porque, em análise do exercício do Poder atualmente se encontra diversos de suas características, notadamente no que concerne ao pacto social. Desta feita, buscou-se organizar os temas pelo âmbito jurídico-histórico no intuito de ser objetivado e pacificado, com o escopo de impedir o retrocesso social e alcançar o tão suscitado bem comum, permitindo o pleno desenvolvimento humano, com a perfeita delimitação das áreas de atuação estatal; sob pena de alienação das liberdades e demais garantias sociais historicamente consagradas.

 

Referências
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Informações Sobre o Autor

Roberto Berttoni Cidade

Mestrando do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Eurípides de Marília-SP


Equipe Âmbito Jurídico

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