Por Gabriel Seijo, Felipe Russomanno e Julia Spinardi*
A alteração no tratamento do direito sucessório do cônjuge é uma das maiores novidades do Código Civil de 2002 em matéria sucessória. Porém, apesar da boa intenção do legislador, a redação do artigo 1.829 do Código Civil é demasiadamente objetiva e confusa, seguidamente surgindo dúvidas a respeito.
Primeiramente, é preciso esclarecer que o legislador limitou a possibilidade de testar a 50% dos bens do autor da herança (sucessão testamentária) quando houver herdeiros necessários – descendentes, ascendentes, cônjuge e companheiro[1] não separados de fato ou de direito no momento da morte –, devendo a outra metade dos bens ser resguardada para esses herdeiros (sucessão legítima), o que não diminui a importância de se testar mesmo nesse cenário, a fim de fazer valer a autonomia do dono do patrimônio e organizar a sua sucessão, até porque, na falta de testamento, a integralidade da herança é paga conforme determina a lei. Somente na ausência de herdeiros necessários é que toda a herança pode ser disposta em testamento.
Outra questão a ser delimitada envolve o direito de meação, que não se confunde com herança, embora o seu pagamento ocorra no mesmo momento. A meação, correspondente à metade dos bens comuns, é adquirida por direito próprio durante o matrimônio em que houver comunhão de bens, enquanto o quando o acervo hereditário é delimitado, os sucessores são definidos e os bens são transferidos aos seus novos donos. São direitos diversos, mas apurados em função da morte, e o pagamento, em ambas as hipóteses, ocorre no bojo do inventário.
Assim, em caso de morte, o legislador determina que o cônjuge sobrevivente receba a herança legítima junto com os descendentes do falecido (concorrência sucessória); na falta destes, são chamados os ascendentes em concorrência com o cônjuge; e, por fim, ausentes ascendentes, o cônjuge herda toda a herança legítima.
No primeiro cenário, de concorrência do cônjuge com os descendentes, a regra é de que, onde há direito de meação, não há herança e, onde há herança, não há meação. Tanto é assim que o legislador expressamente previu, no inciso I do artigo 1.829 do Código Civil, que o cônjuge casado pela comunhão universal – no qual, via de regra, todo o patrimônio é de ambos – não é herdeiro quando concorrer à herança com os descendentes do morto.
Nesse sentido, o STJ firmou entendimento de que, na comunhão parcial, a herança do cônjuge em concorrência com descendentes recai sobre bens exclusivos do falecido (REsp 1.368.123/SP), enquanto que, na separação convencional, o direito hereditário do viúvo ou da viúva recai sobre a totalidade da herança legítima do morto, pois não há meação (REsp 1.294.404/RS).
É importante referir que, na comunhão parcial, bens recebidos por doação ou herança e aqueles que os substituírem (sub-rogados) são exclusivos de seu titular, mas os frutos deles gerados (dividendos pagos por sociedades, alugueis de imóveis, juros de aplicações financeiras) integram, via de regra, a meação.
Como exceção à regra, o legislador previu, no artigo 1.829, inciso I, do Código Civil, a ausência de direito de herança do cônjuge casado pela separação obrigatória, a qual é imposta pela lei, como forma de não beneficiar os consortes unidos por esse regime e impedir a transmissão de patrimônio entre o casal.
Em muitos casos, a alteração do regime de bens no curso do casamento é um valioso mecanismo para atender a anseios e expectativas para futura sucessão.
A legislação determina que haja igualdade entre os quinhões hereditários dos herdeiros, além de reservar um quarto da herança ao viúvo ou à viúva, desde que todos os descendentes sejam comuns ao casal. Se houver filhos exclusivos do falecido, a garantia deve desaparecer, segundo o STJ (REsp 1.617.501/RS).
Por outro lado, na concorrência sucessória entre cônjuges e ascendentes, o regime de bens não é levado em consideração. Nesse caso, concorrendo com os genitores, será resguardado um terço da herança legítima ao cônjuge. Caber-lhe-á metade da herança legítima se houver apenas um genitor vivo ou se os avós ou ascendentes de grau mais distante forem chamados a herdar.
Na falta de descendentes ou ascendentes, o cônjuge herda toda a herança legítima.
Independentemente de com quem concorre ou do regime de bens, é assegurado ao viúvo ou à viúva o direito real de habitação sobre o imóvel que serviu de lar conjugal, mesmo que não haja direito de herança, desde que seja o único imóvel residencial, pertença ao finado (REsp 1.273.222/SP) e não haja copropriedade sobre o bem (EREsp 1.520.294/SP). Com isso, é assegurado ao cônjuge o direito de permanecer residindo no bem enquanto for vivo.
Como se pode perceber, as consequências patrimoniais da morte de alguém casado são complexas e reforçam a necessidade de se pensar sobre os aspectos patrimoniais do casamento no âmbito sucessório. É adequado que a herança reflita a vontade de quem trabalhou arduamente para a aquisição de seu patrimônio, daí por que o planejamento sucessório, respeitadas as restrições legais e as particularidades de cada caso, pode contribuir como importante instrumento de reflexão sobre a transmissão patrimonial na morte do titular casado e de preservação da vontade do autor da herança, além de poupar despesas e prevenir litígios.
* Gabriel Seijo, sócio, Felipe Russomanno e Julia Spinardi, associados, do Cescon Barrieu
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