As
execuções e cobranças da dívida ativa de natureza tributária estão reservadas a
órgãos integrantes da administração pública dos entes da federação (Procuradorias
Jurídicas) e também as competências de representação judicial e consultoria (artigos
131 e 132 da CF/1988). Não podem, pois, os municípios delegar a correspondente
competência a órgãos não pertencentes às suas estruturas administrativas, sob
pena de violação ao modelo previsto pelo poder constituinte originário,
afrontando, pois, o princípio da simetria.
A
cobrança da dívida ativa[1]
(definida como tributária ou não tributária) do município não pode, pois, ser
objeto de concessão ou permissão de serviço público, por ser atividade típica
de Estado, prestada uti universi e,
portanto, insuscetível de exploração comercial, pois a delegação de serviços
públicos a particulares, para exploração por conta e risco deles, pressupõe a
possibilidade de obtenção de “lucro”, a partir da gestão da atividade, segundo
postulados de direito privado. A cobrança judicial de dívida consolidada,
portanto, é serviço exclusivo do município, independentemente de existir
disposição legal expressa conferindo essa atribuição à Procuradoria do
Município. É, induvidosamente, atividade plenamente vinculada.
Entrementes,
resolução do Senado recentemente aprovada[2]
autorizou os Estados, Municípios e Distrito Federal a ceder[3] a
instituições privadas a dívida consolidada, para cobrança por endosso-mandato,
mediante a antecipação de receita até o valor de face dos créditos, o que é.
Como se disse, absolutamente inviável, pois afronta o princípio constitucional
da simetria, art. 29 caput e os
artigos 37 XXI (licitação); artigo 146, III; artigo 163 I c/c 165, § 9º, I e
II, da C.F., e violação dos artigos 3º e 7º, do Código Tributário. Deve-se
acrescer, ainda, que a autorização genérica dada pelo Senado aos municípios para
terceirizar a cobrança de sua dívida ativa, seja tributária ou não,
caracteriza-se como norma geral de direito tributário (no que diz respeito à
dívida de natureza tributária) e norma geral de direito financeiro (no que diz
respeito à dívida ativa não tributária), devendo assim ser, necessariamente, viabilizada mediante
lei complementar. A edição dessa resolução implica, também, em invasão pelo
Senado do campo de competências reservado constitucionalmente ao Presidente da
República (artigo 61, § 1º, II, “b” e artigo 66) e à Câmara dos Deputados
(artigo 65).
Igualmente,
veja-se a este respeito que a matéria relacionada à dívida ativa encontra
tratamento em diplomas normativos recepcionados pela Carta de 1988 como leis complementares: a lei nº 5172 de 25
de outubro de 1966(Código Tributário Nacional), artigos 201 a 204 e a lei nº
432, de 17 de março de 1964 (finanças públicas), artigo 39. Uma estabelece
normas gerais de direito tributário e a outra de direito financeiro, sendo que
ambas possuem campo em comum, que é justamente o trato da dívida de natureza
tributária. Assim, não há como omitir que o assunto é de lei complementar, não
podendo ser tratado mediante resolução do Senado. Aliás, já em dezembro de
2003, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional havia se manifestado nesses
termos pela inconstitucionalidade do projeto que resultou no ato questionado.
Notas:
[1] Lei 6830 de 22/09/1980.
[2] Resolução nº 33, de 13 de julho de 2006.
[3] Observamos
a primeira impropriedade da resolução: é que por meio de endosso-mandato os
municípios não “cedem” às
instituições financeiras a sua dívida ativa
para cobrança. O mandato não é mecanismo jurídico adequado para se realizar a
cessão de direitos. A cessão é modo de transmissão das obrigações (veja a
respeito os artigos 286 a 298 do novo Código Civil) e, como vimos, o
endosso-mandato não transmite direitos, transmite apenas o seu exercício que
será feito sempre em nome do titular ou mandante. Assim, a palavra “ceder” contida no art. 1º da Resolução
está equivocadamente empregada.
Advogado (OAB 34438/SP) Procurador do Município (aposentado)
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