INTRODUÇÃO
Pensar em sexualidade na quadra contemporânea – marcada por discursos variados, mas imbricada por valores com aspirações lineares – é uma necessidade que decorre da reflexão sobre o próprio direito. Uma reflexão que parte da liberdade para se chegar à garantia, da igualdade para alcançar diversidade e da fraternidade para se obter solidariedade.
A reflexão proposta no parágrafo anterior nos apresenta uma visão qualitativa sobre o tripé hermenêutico e estrutural do mundo que sucedeu às Revoluções Burguesas do século XVIII. Uma valoração que aponta, invariavelmente, para a multiplicidade. Aponta para a multiplicidade e, sobretudo, para a necessária agregação.
A partir de uma perspectiva multidimensional, que é a face da contemporaneidade, todas as questões carecem ser repensadas. Entre estas deve ser pensada, também, a sexualidade e o exercício que desta se faz. É preciso se desenvolver vários sentimentos, entre eles, de forma especial, o sentimento republicano. Faz-se necessário que nos voltemos para garantia, diversidade e solidariedade e nos esqueçamos dos dogmas, sobretudo quando estamos a falar em nome do Estado, que é plural e laico. É de se dizer, de uma vez por todas, a que(m) estamos servindo. Isto é fundamental para não sermos meros repetidores do senso comum. Para não contribuirmos para a exclusão e o sectarismo em razão da repetição de dogmas sem qualquer grau de reflexão.
Repensar certas estruturas nos impele a refletir sobre o papel estatal, e nisto se inclui os papéis desempenhados por todos os atores sociais. Atores a que a ordem jurídica empresta máscaras – uma vez que todos seriam iguais perante a lei, portanto, dignos e dotados de direitos correlatos à personalidade –, mas muitas vezes nega voz.
Na música popular brasileira encontramos na obra de Chico Buarque uma canção que denota bem a teoria do papel. Em Geni e o Zepelim, de indelével marca crítica, diz-se que Geni, a maldita, “é feita pra apanhar e boa de cuspir”. A Geni, dama dos detentos, era a excluída, portanto, sem voz no teatro social. Servia a todos, mas não poderia servir a si própria, porque lhe fora dado um papel restrito.
A noção de papel restrito que aqui propugnamos diz pertinência com a vivência do conceito binário de sexo. Um conceito a partir do qual se concebe homem e mulher, que são heterossexuais e realizados em suas sexualidades. Uma concepção que não confere margem para discricionariedade ou variedades de orientações e exercício da sexualidade, salvo para a marginalidade e exclusão, ainda que tácita, do grupamento social.
No afã de se superar qualquer possibilidade sectarista, o questionamento apresentado acerca da conceituação sexual deve ser recobrado. É preciso se sedimentar um conceito de sexo que condiga com um Estado multifacetado e agregador. Um Estado que se pretenda agregador e solidário, no exato sentir do texto constitucional, denominado cidadão.
SEXUALIDADE HUMANA. PARA ALÉM DO CONCEITO GENITÁLICO-CROMOSSÔMICO
Pensar na sexualidade humana, sobretudo a partir do viés freudiano, induz a que enfrentemos o conceito de sexo. Um questionamento, então, se faz premente: qual o “conceito de sexo”[1] se deve adotar? O biológico ou o psicológico? Sabendo-se que há meios de se observar o tema, porque restringir a reflexão ao conceito biológico, como querem muitos?
O viés biológico, apreendido pelo direito como sendo o sexo jurídico, é apenas uma forma de se ver a sexualidade. É de se considerar, por isto mesmo, outras variantes, em especial a psicológica ou psicossocial. Tal consideração é aposta em razão da necessidade de se reforçar, sempre, que o Ser Humano é muito mais que corpo biológico. É racional e sua racionalidade não pode ser mitigada. Do contrário, ter-se-á que o discurso da Dignidade da Pessoa Humana não é mais que papel e tinta. É cláusula vazia que cabe tudo e, por isto mesmo, não comporta nada.
A conceituação jurídica de sexo é feita a partir da observação da genitália externa do recém-nascido, de onde decorrerá o sexo que constará no Registro Civil: masculino ou feminino. Este conceito, cunhado a partir da superação da doutrina do sexo único, ainda se mantém no imaginário de muitos juristas brasileiros. É bastante comum, por isto mesmo, encontrarmos decisões que ressaltem esta conceituação em detrimento dos discursos da psicologia, da medicina e da antropologia, caso da Apelação Cível n. 452.036-4/00, proveniente da comarca de São José do Rio Preto, no Estado de São Paulo:
“Sob tal ângulo, o procedimento cirúrgico a que foi submetido, não implicou em opção por um dos sexos de cujas características era portador, mas em adaptação física, construída artificialmente, do sexo masculino para o sexo feminino, sem que houvesse efetiva alteração de sexo, uma vez que, para todos os efeitos, ainda que, em tese. se admita tenha adquirido artificialmente a aparência da genitália feminina, a natureza de sua concepção não foi alterada.
Nesse aspecto, a adequada colocação feita pelo Procurador de Justiça oficiante “não se trata de esterilidade apenas. Trata-se e uma situação anômala criada artificialmente e não consagrada pelo direito positivo, uma vez que esterilidade pressupõe possibilidade de procriar. E o transexual operado não tinha, não tem e nem terá essa possibilidade Ofende ao bom senso imaginar que algo ou alguém seja estéril sem que ele próprio ou seu semelhante, para que se diga o menos, possa fazê-lo ainda que em tese. E nem em tese o ora Apelado poderia, poderá ou pode procriar” (fIs 121)
Ora, o registro civil espelha a realidade da pessoa, que se projeta, por intermédio de seu nome, para as relações sociais, no campo civil e no campo penal. Bem por isso, a preservação da identidade realiza-se ao longo de toda a vida da pessoa, mantendo uma unidade nas relações que vão sendo estabelecidas ao longo do tempo.”[2] (destacou-se)
Quando se diz que o procedimento cirúrgico não possui o condão de alterar o sexo, está se ressaltando o discurso biológico. Ao mesmo tempo, quando se afirma que “o registro civil espelha a realidade da pessoa”, a pessoa está sendo considerada em acepção limitada. Dizer que o Registro Civil espelha a realidade da pessoa, partindo de um viés meramente biológico, é considerar a pessoa sem qualquer reflexão sobre a Dignidade que a esta se associa, ignorando, inclusive, a construção doutrinária acerca dos Direitos da Personalidade.
O discurso a que o desembargador Grava Brasil chama de científico, já que baseado na biologia, se pretende absoluto e verdadeiro, mas peca por não reconhecer ao Ser Humano o lócus especial que este possui na escala dos seres. Trata-o como um animal, daí a referência cromossômica, e se esquece que é a racionalidade quem confere à espécie humana a condição de diferenciada entre os seres viventes.
Quando se pensa na temática da transexualidade, mostra-se improvável não se pensar nos conceitos de sexo e nome civil. Dizemos isto porque é no Registro Civil de Pessoas Naturais que, em última análise, o “direito se dirá”[3]. Por mais que a Resolução do Conselho Federal de Medicina afirme ser prerrogativa médica diagnosticar a transexualidade, é no direito que os reflexos da cidadania serão pleiteados.
Não se pode pensar transexualidade sem os olhos voltados para o Registro Civil. Esta assertiva se faz clara. As noções de gênero e nome, nesta linha, precisam ser enfrentadas de forma objetiva, pois são meios nos quais será visto o exercício do caráter.
Do que se expôs, não nos restam dúvidas de que a denominação a partir do viés meramente biológico não atende à pessoa em sua plenitude. Como resta evidente, não é em cromossomas[4] que se afere Dignidade. Não é, por óbvio, a presença dos cromossomas xx ou xy na cromátide que define Dignidade, razão pela qual soa absolutamente desarrazoada a proposição que nega a adequação de nome e de sexo com embasamento apenas biológico, ainda mais se se considerar as possibilidades das síndromes determinadas cromossomicamente, como Turner[5] e Klinefelter[6].
Nos casos da Síndrome de Turner não existe cromatina sexual. Desta forma, caso “a” portadora da doença tivesse de se submeter ao teste de cromátide, seria um ser biologicamente assexuado. Não é homem nem mulher, biologicamente falando. Não poderia ser considerada mulher ou homem por não dispor do gene que determina o gênero sob o viés biológico. Ainda que ostente aparência feminina, esta situação é apenas aparente. Qualquer aparência que por ventura possua, é mera aparência, sem qualquer respaldo na própria biologia.
Na síndrome de Klinefelter ocorre exatamente o contrário. Há mais cromatinas sexuais do que o padrão dito normal informa. Neste caso são encontradas cromátides de ambos os sexos. Também neste caso o exame de cromátide é limitado. A multiplicidade cromossômica impede uma identificação aceita como real, já que foge ao padrão normal, que é xx ou xy.
A discussão biológica acerca das síndromes foi trazida para o corpo do texto no afã de se afastar o absolutismo do discurso biológico, de que se valem muitos magistrados, caso do Desembargador Grava Brasil no voto a seguir transcrito:
“Ademais, em linha de registro civil, prevalece a regra geral da imutabilidade dos dados, nome, prenome, sexo, filiação etc Há, portanto, um interesse público de manutenção da veracidade dos registros, de modo que a afirmação do sexo (masculino ou feminino) não diz com a aparência, mas com a realidade espelhada no nascimento, que não pode ser alterada artificialmente.”[7] (destacou-se)
Como se disse antes, não é em cromossomas que se afere Dignidade. Desta forma, se é a Dignidade da Pessoa Humana a base de estruturação da Constituição da República Federativa do Brasil, soa sem propósito a afirmação da verdade biológica. Todos e quaisquer animais possuem genes que determinam aparência. Entre os seres humanos também. Não há dúvidas de tais genes existem. É de se ter, todavia, que o só fato da existência de síndromes cromossômicas põe em xeque o caráter absoluto do discurso biológico-cientifico. Ao mesmo tempo, tendo-se assente que a Dignidade está na racionalidade e na autonomia, não há duvidas de que a verdade da psicologia deve se sobrepor à verdade biológica. Do contrário, reduzir-se-á o Ser Humano a uma realidade animal, e não psíquica.
Tendo-se claro que o Ser Humano possui um grau absolutamente diferente na escala dos seres, pura e simplesmente por ser racional e autônomo, entendemos que o exercício da racionalidade e da autonomia não pode ser negado. Não se pode negar a racionalidade, já que isto importaria em supressão da Dignidade e dos Direitos da Personalidade na parcela que são, verdadeiramente, absolutos.
Assentando-se que o conceito biológico se apresenta limitado para cuidar da realidade humana, chega-se ao conceito de sexualidade psicossocial[8]. Tal conceito é importante por permitir se transpassar as questões genéticas e se chegar à consideração de variáveis pré e pós-natais. Assim, a se assegurar efetividade prática à conceituação psicossocial de sexo, parece sustentável se dizer que o transexual operado é homem ou mulher, não podendo o sistema jurídico lhe impingir qualquer tipo de restrição. O homem ou a mulher que a racionalidade e a autonomia permitiram construir, nesta consideração, têm em si todas as prerrogativas de que gozam todos os cidadãos, afinal, são cidadãos também.
A indagação sobre a conceituação sexual, que em um trabalho acadêmico se mostra dogmática, assume ares de realidade quando o transexual bate as portas do Judiciário com sua demanda. Quando o questionamento sobre sexualidade chega ao Poder Judiciário uma resposta deve ser ofertada pelo Estado-Juiz. Uma resposta que, evidentemente, deve chegar o mais próximo possível da consagração da Dignidade, permitindo a fruição dos direitos básicos.
Retomando a indagação sobre as possibilidades de consideração da sexualidade, uma questão desponta: qual delas se aproxima mais da fruição dos direitos básicos correlatos à cidadania?
O questionamento proposto, sem qualquer dúvida, é de difícil resposta. Deve se considerar, todavia, a reflexão que o espírito republicano e as razões de justificação da Constituição da República nos impõem. A consideração desta imposição constitucional fertiliza a discussão, fazendo crescer e frutificar a Dignidade da Pessoa Humana.
A utilidade do sistema jurídico, de seu sistema valorativo, se consolida na correspondência com as situações fáticas e as necessidades sociais. As situações carentes de proteção jurídicas devem ser solucionadas pelos princípios gerais do direito, pela analogia e pela eqüidade, mas sem se perder de vista o espírito de agregação, rumo norte do trabalho de integração hermenêutica. Haveria, então, apenas uma resposta correta no ordenamento jurídico. A resposta correta é a que permite maior grau de fruição dos direitos básicos pelas pessoas. Permite a fruição de direitos e garantias fundamentais e não alude a qualquer situação de exclusão e sectarismo social.
Com base nas possibilidades integrativas aduzidas, doutrina e jurisprudência podem se manifestar acerca das situações, mesmo as não positivas. Uma integração que, como já se assentou, deve ser efetuada com os olhos voltados para os valores pessoais do indivíduo, independente dos valores ditos normais pela comunidade e pelo grupo social. Uma possibilidade que não se faz pacífica, como se percebe na fala do procurador de justiça oficiante no Apelação Cível Apelação Cível n. 452,036-4/00[9]: “trata-se de uma situação anômala criada artificialmente e não consagrada pelo direito positivo”.
A se ter por válido o argumento do aludido procurador, tão-somente as situações albergadas positivamente pelo Ordenamento Jurídico mereceriam tutela jurisdicional. Esta aspiração, como se assentou anteriormente, já deu provas de sua falibilidade. Por isto mesmo nos parece desprovida de razão de justificação, sobretudo porque não leva em conta nem os elementos integrativos mínimos da Lei de Introdução ao Código Civil, ainda mais da Constituição da República Federativa do Brasil, declaradamente voltada para a promoção da cidadania, daí nominada cidadã.
Pensar nas possibilidades integrativas no seguimento proposto, permite-nos brindar com a obra de Edilsom Ferreira de Farias que, em seu Colisão de direitos à honra, à intimidade, à vida privada, e a imagem versus a liberdade de expressão e informação[10], traz apontamentos que vão na direção defendida no corpo do texto. Uma integração que aspira, em primeiro lugar, a realização das pessoas. Uma realização que se dá como suposto de integridade do sistema e se apresenta valorada em relação à tese do ordenamento, que se contenta com a validade hierárquica, temporal ou de especialidade.
TRANSEXUALIDADE: CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Transexualidade[11] é tema que gera muitas polêmicas. Significa, em síntese apertada, “divergência entre o fenótipo e genótipo”[12]. Consoante a lição de Maria Helena Diniz, aponta para “a condição sexual da pessoa que rejeita sua identidade genética e a própria anatomia de seu gênero, identificando-se psicologicamente com o gênero oposto.”[13]
A discussão sobre transexualidade parte, como regra, do discurso essencialista, onde só tem lugar o “transexual verdadeiro”[14], construído pelo saber médico, e, apenas nesta medida, percebido pelo direito. É de se ter, todavia, que a noção de transexualidade verdadeira precisa ceder em nome das conquistas da antropologia. Do contrário ver-se-á no direito (como, aliás, se tem visto) mera repetição deste discurso legitimante.
A repetição do único discurso capaz de demover do apriorismo os julgadores, que em muitos casos discursam a partir da referência dogmática, resta evidenciada na doutrina de Aracy Klabin, onde se evidencia a existência de duas espécies de transexualidade: a primária e a secundária.
Na transexualidade primária se encontra o transexual verdadeiro, que compreende os “pacientes cujo problema de transformação do sexo é precoce, impulsivo, insistente e imperativo, sem ter desvio significativo, tanto para o transvestismo quanto para o homossexualismo. É chamado, também de esquizossexualismo ou metamorfose sexual paranóica”[15]. Na transexualidade secundária se engloba o transexual secundário, que engloba “os pacientes que gravitam pelo transexualismo somente para manter períodos de atividades homossexuais ou de transvestismo (são primeiro homossexuais ou travestis). O impulso sexual é flutuante e temporário, motivo pelo qual podemos dividir o transexualismo secundário em transexualismo do homossexual e do travesti.”[16]
Pensar em transexual verdadeiro é importante porque nos faz recobrar a mítica da heterossexualidade. Esta espécie de transexual não teria, então, nada que o “desabonasse”. Não é um promíscuo, mas uma pessoa que nasceu em corpo errado. Não é alguém que faz do exercício da sexualidade algo “pecaminoso”, mas uma pessoa que busca realizar sua “alma”. A cirurgia, desta forma, tem como objetivo a implementação da masculinidade ou feminilidade interna. Quer se dizer, com isto, que apenas as pessoas que se sentem em um corpo trocado podem se submeter à cirurgia de transgenitalização e, a partir desta, iniciar um procedimento de comunicação com o direito para que este reconheça a realidade, autorizando, em um segundo momento, a mudança do Registro Civil para que passe a constar a adequação.
Quando se diz que apenas o “transexual primário”[17] pode se submeter à cirurgia de transgenitalização, está sendo dito, ao mesmo tempo, que o secundário não pode contar com esta possibilidade. Em verdade, à luz do Direito Positivo – e da leitura positivista que se faz do tema –, não passa de alguém com intuição para a promiscuidade. Alguém que faz de traços da transexualidade um meio de exercício “desviado” da sexualidade.
Feitas as considerações iniciais sobre o tema, é de se ter que a transexualidade[18] é catalogada como patologia[19] pela Organização Mundial de Saúde. Trata-se de tema agrupado no Código Internacional de Doenças de número 10, classificada sob a rubrica F-64, onde se agrupam as chamadas disforias de gênero[20].
Da chamada disforia total de gênero o saber médico consagra a transexualidade: F-64.0[21]. Esta condição aponta no sentido da existência de um indivíduo cuja condição clínica é biologicamente normal, mas que, segundo sua história pessoal, apresenta sexo psicológico incompatível com a natureza do sexo somático.
Os entendimentos apontados nos parecem bastante elucidativos. Nada obstante, há doutrinadores que apontam ser a transexualidade uma espécie de hermafroditismo hipofásico[22]. Não falam em disforia de gênero, mas sim em uma ambigüidade na hipófise. Não se pode falar em ambigüidade genital, mas sim em ambigüidade na conformação cerebral, especificamente na hipófise, como anuncia a professora Edna Iriguti.
Na lição da professora em comento encontramos a noção de transexualidade como sendo o quadro clínico das pessoas que sobrem de “neurodiscordância de gênero”. Ensina-nos, desenvolvendo seu raciocínio, que a locução transexualidade tem origem nas pesquisas norte-americanas, nas quais se constatou em cadáveres de transexuais do sexo masculino que a hipófise cerebral (parte do cérebro que responde aos estímulos sexuais) possui estrias estreitas, idênticas à de uma mulher biológica.
À noção propugnada pela professora Edna, deve-se associar a lição de Matilde Josefina Sutter nas contribuições que trouxe para o tema em seu Determinação e mudança de sexo. Neste encontramos aposto que:
“a transexualidade se manifesta desde muito cedo. Antes dos três anos de idade, e sem qualquer estímulo, o transexual feminino já se utiliza de roupagem feminina. Prefere brincadeiras femininas na infância e tal tendência também se manifesta, na idade adulta, na sua opção profissional. Suas atitudes são femininas e não efeminadas. Têm ojeriza do órgão masculino, pelo que desejam se operar.” [23]
A contribuição trazida por Josefina Sutter corrobora com a lição de Edna Iriguti ao reforçar a visão essencialista do tema. Uma visão a partir da qual a transexualidade se apresenta como algo inato e indissociável da pessoa, e não como uma referência historicamente construída.
A visão essencialista é recobrada por Ana Paula Ariston Barion Peres, onde se lê que transexuais não são homossexuais, mas pessoas deslocadas do próprio corpo. Pessoas vítimas da natureza e que desejam a adequação sexual por serem “amaldiçoadas pelo aparato sexual errado”[24]. São pessoas que desejam a mudança deste aparato para poderem manter relações heterossexuais.
Em linhas gerais o conceito de transexualidade aponta, então, para a total incompatibilidade entre sexo biológico e a identificação psicológica. Seria, dentro do discurso médico-jurídico, o indivíduo que, anatomicamente de um sexo, acredita pertencer a outro sexo. Uma crença que, de tão forte, impele a pessoa transexual a querer se ajustar ao seu sexo verdadeiro, isto é, o sexo psicológico.
A transexualidade reflete o desejo de se viver e de se ser aceito como pessoa construída social e psicologicamente. Uma construção que vai de encontro ao senso comum por não atender à expectativa de correspondência entre a configuração cromossômica e a psíquica. Uma não-correspondência que, para o transexual, importa em um sentimento de mal-estar e não-adaptação ao sexo biológico.
Transexual é, ou quer fazer parecer ser[25], o indivíduo que repudia o sexo que ostenta anatomicamente. Assim o transexual não se confundiria com o homossexual[26], pois este não nega seu sexo. Embora mantenha relações sexuais com pessoas do mesmo sexo, não repudia sua conformação genitálica.
Quando se pensa na transexualidade, e na leitura que a medicina e o direito fazem do tema, é preciso diferenciá-la das práticas travestis[27]. Transexualidade não se confundiria com o travestismo[28], já que este seria apenas um modo fetichista de se dar vazão à sexualidade, com o qual a pessoa se deixar levar pelo impulso de se vestir com a indumentária do sexo oposto.
Transexualidade não se confunde, ainda, com bissexualidade. Nesta há identificação erótico-afetiva com ambos os sexos, mas não o sentimento de inadequação corporal vivenciado pelos transexuais. Não se confunde, também, com o hermafroditismo[29].
Pode-se concluir, portanto, dentro da visão que o direito se propõe a assimilar, que o transexual é indivíduo que se sente intimamente pertencente ao sexo oposto ao de sua anatomia. Trata-se de alguém que, psicologicamente, sustenta a crença de que sua identidade de gênero não é a mesma do sexo atribuído em seu registro de nascimento.
Do exposto, tem-se que o individuo transexual traz consigo inderrogável convicção de pertencimento a sexo que não o cromossômico ou genético. Sem a menor dúvida é alguém que se sente situado em corpo errado, sendo suas atitudes e ações correlatas às do sexo oposto, caracterizando o que o Conselho Federal de Medicina chama de “desvio psicológico permanente de identidade sexual”.
REFERÊNCIAS HISTÓRICAS
A palavra transexual foi apresentada pela primeira vez em 1910[30] e, no princípio, se confundia com transvestismo, termo que hoje assume acepção diferente, servindo para designar a utilização de vestimenta do sexo oposto. Este termo teria sido empregado pelo médico alemão Magnus Hirshfield, consoante anuncia Suzana de Oliveira Carmo[31]. A utilização ocorreu quando o estudioso usou a locução para designar indivíduos em que há distinção sexual entre corpo e mente. Pessoas que têm sexo psicológico diferente do biológico.
Em 1917 Harold Gillies, um dos pais da cirurgia plástica, realizou em soldados americanos mutilados que apresentavam comportamentos intersexuais a cirurgia de vaginoplastia[32]. O mesmo Harold Gillies realizou em 1919 a primeira cirurgia de faloplastia em Laura Dillon, que, tornada Michael, foi a primeira militante à mudança de sexo do feminino para masculino.
Posteriormente, em 1954, o endocrinologista Harry Benjamin se valeu do termo ao escrever para o Jornal Americano de Psicoterapia[33]. Igual emprego ocorre em 1966, quando este publica O Fenômeno Transexual[34].
A partir de Harry Benjamim e seu O Fenômeno Transexual o termo ganha notoriedade, sendo empregado em profusão. Desta forma, conquanto Benjamin não tenha sido pioneiro no emprego do termo, é comum se creditar a ele a expressão, já que a popularização desta ocorre em razão do reconhecimento de seus estudos.
Harry Benjamin, é de se dizer, traz para o estudo da transexualidade contribuições que ainda hoje são rechaçadas pela comunidade jurídica e sua capacidade de abstrair e sublimar outros campos do saber. Este já dizia, na década de 1960 que: “é evidente que a mente do transexual não pode ser ajustada ao corpo, é lógico e justificável tentar o oposto, ajustar o corpo à mente”.
De fato não se pode ajustar o cérebro. A adequação, então, deve ocorrer no corpo. É de se estranhar, então, que, ainda hoje, vejamos decisões como a do Desembargador Grava Brasil, que em seu voto na Apelação Cível n. 452,036-4/00, proposta no Tribunal de Justiça de São Paulo, mostra-se absolutamente reticente com a possibilidade.
Pierre-Henri Castel[35], recobrando a consideração histórica do termo transexualidade, aduz a proposições esclarecedoras. Propõe uma divisão temporal que delimita quatro fases no enfrentamento do tema, como se percebe a seguir.
A primeira, aponta Castel, nos faz remontar às origens da sexologia. Um momento em que houve uma ambição taxonômica positivista notória. Uma ambição que pretendia, antes de qualquer coisa, a despenalização da homossexualidade.
A segunda fase surge acompanha do desenvolvimento da endocrinologia, fator fundamental a distinguir a medicina científica entre as duas grandes guerras. Nesta fase surge o chamado “behaviorismo endocrinológico”, a partir do qual se estrutura a maior parte das teses sociológicas sobre a identidade sexual sustentadas após 1945.
A terceira fase – de 1945 a 1975 – é rica em acontecimentos. Com a Sociologia Empírica, da tradição americana, passa-se a se sustentar que a influência do meio é determinante para muitas questões, entre elas o hermafroditismo, a situação dos indivíduos geneticamente anormais, dos meninos com órgãos genitais acidentalmente mutilados e dos transexuais.
A ocorrência do caso George Christine Jorgensen[36], na Copenhague de 1952, aponta uma nova diretriz sobre o tema sexualidade, especialmente em matéria de transexualidade.
A quarta fase se abre, no meio dos anos 70, com a reivindicação libertária de uma despatologização radical das variantes sexuais que diferem do padrão heterossexual. Assim o “transgenerismo (transgender), que reúne as aspirações tanto dos transexuais quanto dos transvestistas e de certos homossexuais de apresentação deliberadamente ambígua, cristaliza as aspirações militantes e as teorias culturais do gênero”[37]
Transexualidade, possibilidade para a qual o mundo médico – e a cargo deste o jurídico – começa a se abrir no início do século XX é um fato que parece ser próprio da sociedade contemporânea. É de se destacar, todavia, que há registros de transexualidade muito mais antigos. Neste sentido é o encontrado no Dicionário de Psicanálise, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon:
“O desejo de mudar de sexo existia antes da criação do termo ‘transexualismo’, como bem mostra a história do abade Choisy (1644-1704), que usava roupas de mulher e se fazia chamar de condessa de Barres. Há, ainda, Charles de Beaumont, cavaleiro d´Éon (1728-1810), que serviu à diplomacia secreta de Luis XV vestindo-se de homem ou de mulher conforme as circunstâncias.“[38]
Outro registro histórico da ocorrência da transexualidade é encontrado nas histórias sobre o palácio de Versalhes. Nestas se encontra o relato sobre Jenny Savalette de Lange, que, geneticamente homem, casou-se seis vezes com outros homens, passando-se por mulher. Sua condição masculina só veio a público na ocasião de sua morte, em 1598[39]. Toda a corte, até então, acreditava se tratar de uma mulher.
Por fim é de se dizer que o sentimento de ser do outro sexo, afirmado pelas pessoas transexuais, é, provavelmente, tão antigo quanto qualquer outra expressão da sexualidade. Da mitologia greco-romana ao século XIX, passando pelas mais variadas fontes literárias e antropológicas, encontra-se relatos de personagens que se vestiam como membros do outro sexo, dizendo sentir-se como do outro sexo. O que hoje se nomina transexualidade não é próprio da nossa cultura ou de nossa época. Recente, sim, é a possibilidade da mudança de sexo, possibilitada no plano médico por novas técnicas cirúrgicas e a terapia hormonal.
CONSIDERAÇÕES NORMATIVAS SOBRE A TRANSEXUALIDADE
No Brasil não existe legislação especifica sobre transexualidade. Na área médica há a regulamentação do Conselho Federal de Medicina sobre a cirurgia de transgenitalização, que atualmente deve se pautar pela Resolução n. 1.652[40], de 06 de novembro de 2002. A partir desta resolução – que amplia os conceitos contidos na Resolução n. 1.482, de 10 de setembro de 1997 – são esclarecidos os procedimentos para a redesignação corporal.
Com a criação da resolução de 1997 foi possível se assentar, no plano médico, a não-proibição da cirurgia, que era expressamente vedada até 1996. Desta forma, antes da aprovação da resolução em comento, o médico que praticasse a cirurgia poderia ser punido, sofrendo processos criminais (a partir dos quais poderia ser punido com pena de reclusão) e administrativos. A edição da Resolução n. 1.482/97, todavia, permitiu a superação do regime de proibição.
As resoluções de 1997 e de 2002, anteriormente citadas, apresentam-se valoradas em relação à realidade vivenciada no Brasil da década de 1970, já que nesta época a cirurgia fora considerada mutiladora[41], e não corretiva, conforme se estatuiu no IV Congresso Brasileiro de Medicina Legal, realizado em 1974 na cidade de São Paulo.
Na esfera jurídica, em outro sentir, houve o projeto de lei n. 70-B[42], de autoria do Deputado Federal José Coimbra. A partir deste projeto se incluiria um parágrafo no artigo 129 do Código Penal e se atribuiria nova redação ao artigo 58 da Lei de Registros Públicos.
Conquanto não tenha se tornado lei, parece-nos importante elucidar algumas questões decorrentes do Projeto de Lei n. 70-B, no que apontava essencialmente: modificar a Lei de Registros[43] e o Código Penal[44]. A modificação da esfera penal objetivava a possibilitar a realização da cirurgia sem que esta pudesse ser entendida por lesão corporal. Em relação à Lei de Registros haveria modificação no artigo 58, que trata das hipóteses nas quais a definitividade do prenome pode ser sopesada.
A modificação do Código Penal pretendia conferir a possibilidade de realização da cirurgia sem que esta fosse entendida como lesão corporal. É de se dizer, então, que, mesmo que da leitura do dispositivo ainda se possa aduzir a existência de lesão, é verdade que a convicção social aponta em sentido diferente, tendo havido superação social[45] da regra. A nova redação, nada obstante, seria importante por espancar quaisquer discussões sobre o tema.
A redação atribuída ao artigo 58 da Lei de Registros Públicos, para que passasse a tratar da possibilidade de alteração do prenome quando tenha havido intervenção cirúrgica motivada por transgenitalismo, teria um duplo efeito. Um de caráter solidário (visto no parágrafo segundo) e outro com aspecto segregador, cuja apreensão é feita do que prescrito no parágrafo terceiro.
A porção solidária, pensamos, é percebida quando se determina ao campo de força em que se inscreve o direito a consideração da possibilidade de mudança de nome e de sexo quando tenha havido a intervenção cirúrgica. A nuança sectarista, contudo, é vista na determinação de alusão à transexualidade nos documentos da pessoa.
O parágrafo terceiro, em que percebemos um viés de exclusão, trazia em si mácula de inconstitucionalidade. Assim, justamente por ir de encontro do Direito à intimidade ao expor de forma flagrante o transexual, entendeu parte da doutrina, e aqui destacamos o professor Elimar Szaniawski[46], que se tratava de obrigação constrangedora e discriminatória, constituindo um grave atentado ao Direito à identidade sexual e a Dignidade de todo o Ser Humano. Não resolvia o problema. Apenas agravava a vivência da intimidade de identidade entre os transexuais.
Em razão do disposto no parágrafo em comento, manifestou-se a Comissão de Constituição e Justiça e de Redação de forma contrária ao seu conteúdo, entendendo que este violaria o teor do artigo 5º, X da Constituição da República Federativa do Brasil. Propôs, com isso, redação substitutiva no seguinte sentido: “no caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado no assento de nascimento o novo prenome, bem como o sexo, lavrando-se novo registro”.
A partir da proposição da comissão, o registro passaria a conter o novo nome e sexo do transexual operado. A fim de evitar entendimentos que perpetrassem o preconceito, entendeu por bem apresentar emenda aditiva com a qual se acresceria um parágrafo quarto, cuja redação é a que segue: “é vedada a expedição de certidão, salvo a pedido do interessado ou mediante determinação judicial”.
Embora os comentários tenham sido aduzidos acerca do Projeto n. 70-B, é certo que este não foi tornado lei. Nada obstante, é de se ter que o novo projeto (6.655-B de 2006) pouco avançou na discussão. Conquanto aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania em 13 de setembro de 2007, aponta para a necessidade de alusão à condição de transexual no Registro Civil. Não mais em todos os documentos, como queria o anterior, mas a aposição no Registro de Nascimento foi mantida.
A menção à condição de transexual, determinada pelo direito, aponta em uma só direção. Em última análise é o direito quem diz o que é direito. Sabe-se que a lógica do Estado deve ser a proteção da pessoa. Sabe-se que esta averbação, se ilimitada, poderá contrariar prerrogativas que estão no núcleo dos Direitos da Personalidade. Ainda assim, como é o direito quem diz o que lhe interessa, este tem a possibilidade de determinar tal averbação. Uma necessidade que para nós diz, sobretudo, com o exercício do Poder de Império.
É evidente que aos ouvidos de qualquer pessoa os prenomes Roberto, Adão e Carlos evocam alguém com atributos masculinos. Do mesmo modo são femininos os prenomes Roberta, Eva e Carla. A não-correspondência desta expectativa é, por assim dizer, no mínimo chocante, e, por isto mesmo, capaz de provocar risos e chacotas.
Não-obstante, partindo-se da lógica de que é o direito quem diz direito, pode um juiz entender de forma diferente. Ainda que não deva, “pode” o direito impor a alguém sexo jurídico de um gênero quando faticamente tenha assumido de outro. Na prática uma punição que nada contribui para a preservação da ordem social.
Esta possibilidade existe porque a lógica imperante no Brasil é a do Direito Positivo. Desta forma, como o tema não recebe tratamento legal, os juízes se arvoram da condição de dizer o direito e, até mesmo, ignorar demandas como a dos transexuais.
Ao abordar a questão da transexualidade a professora Maria Helena Diniz, se pergunta: “feita a cirurgia de redesignação sexual ou de mudança de sexo num transexual, o direito, a sociedade e o Poder Judiciário poderiam proibir que leve vida feliz e normal?”[47] Prossegue na indagação questionando se se poderiam “negar efeitos jurídicos oriundos de sua nova condição sexual?” [48] Indaga ainda se “não deveriam admitir direitos ao transexual operado? Não deveria a lei, evitando discriminação, facilitar seu direito à identidade sexual?”[49]
As indagações da professora Maria Helena são absolutamente pertinentes, pois Direitos da Personalidade implicam em direito à conservação, invulnerabilidade, dignidade, reconhecimento da liberdade, assim como dever jurídico de abstenção para todos os membros da coletividade.
Apoiando o entendimento esposado, traz-se para o debate o entendimento da professora Elizabete Lanzoni Alves, onde se lê que não há,
“dentro da ética e da moral o desatendimento à súplica de um Ser Humano que busca conviver em sociedade dignamente sem se expor a situações constrangedoras e humilhantes quando solicitado, por exemplo, os documentos de identificação.”[50]
No mesmo sentido, sustenta Amorim que, “comprovadas judicialmente as condições da pessoa, embora não haja legislação a respeito, somente a jurisprudência o admite, deve o pleito ser acolhido, autorizando-se a modificação do sexo e prenome no registro civil.” [51]
Vê-se que o Brasil não dispõe de tratamento legislativo para a questão do transexualismo. Por outro lado há países que já encontram em estágio bem mais avançado no que se refere ao assunto. Temos, sim, considerações no plano médico e projetos no plano jurídico, mas não leis. Por isto é comum vermos decisões de matizes variados, inclusive em um mesmo tribunal[52].
Enquanto não cuidamos do assunto, há países onde a temática se encontra estruturada, caso da Alemanha, consoante relato de Antonio Chaves em artigo publicado na Revista Forense 276/13:
“A lei alemã de 15.8.1969 sobre a castração voluntária e outros métodos terapêuticos, dispõe, no parágrafo segundo, que a mesma não é suscetível de ser reprimida penalmente, se este tratamento a juízo da ciência médica for indicado para prevenir, sarar ou aliviar a pessoa de doenças, perturbações ou sofrimento psíquicos graves ligados à sexualidade anormal. O interessado deve ter 25 anos e manifestar um consentimento livre e esclarecido sobre o ato terapêutico oferecido, após informação sobre a natureza e gravidade dos ricos inerentes à operação”.
A Suécia possui legislação regulando a retificação do registro do transexual desde 21 de abril de 1972. O fez sob a condição de que tal retificação se adstringisse a pacientes com mais de dezoito anos, desde que solteiros e estéreis. Na Itália, a partir da influência da jurisprudência, foi criada a Lei n. 164, de 14 de abril de 1982.
Carlos Fernández Sessarego, comentando a legislação peruana, acrescenta:
“El derecho a la identidad personal es uno de los derechos fundamentales de la persona humana. Esta específica situación jurídica subjetiva faculta ao sujeto a ser socialmente reconocido tal como ‘él es’ y, correlativamente, a imputar a los demás el deber de no alterar la proyección comunitaria de sua personalidad. La identidad personal es la ‘maneira de ser’ como la persona se realiza en sociedad, con sus características y aspiraciones, con su bagaje cultural e ideológico. Es el derecho que tiene todo sujeito a ‘ser él mismo’”[53].
O mesmo Sessarego, discorrendo sobre a problemática da transexualidade nos Estados Unidos, no Canadá e na África do Sul, pontifica que:
“Estados Unidos es el país donde probablemente por vez primera se legisla en materia de cambio de sexo. En este sentido se recuerda que en Illinois, desde fines de 1961, se permite al registrador transcribir la rectificación de sexo producida luego que el sujeto se somete a una intervención quirúrgica. Esta inscripción se efectúa sobre la base de la correspondiente certificación del hecho formulada por el proprio médico que ha efectuado la operación. Se trata, en secuenzia, de un simple trámite de carácter administrativo el que facilita dicha inscripción. Similar reforma legislativa opera em Arizona desde 1967.[…]
En otros Estados, tales como Louisiana Y California, existem también leyes permisivas del cambio de sexo, aunque a diferencia de los casos anteriormente citados, este hecho supone un previo trámite judicial en base a una intervención quirúrgica. En el primer caso la ley data de 1968 y, en el segundo, se remonta al año de 1977. En el Estado de New York la rectificación de sexo no requiere de una ley sino que se practica en base a una específica reglamentación de 1971.[…]
En diversas provincias canadienses, generalmente sobre la base de una previa legislación se permite, a partir de 1973 y en mérito a un procedimiento administrativo, el cambio de sexo y la consiguiente rectificación del prenombre teniendo a la vista dos certificados médicos. En Sud Africa es suficiente una resolutión del Ministro del Interior que autoriza la rectificación registral del sexo de haberse producido una intervención quirúrgica de adecuación morfológica”[54].
Ainda que no Brasil subsistam lacunas normativas no trato da transexualidade, resta evidenciado que a prática da cirurgia é recorrente. Infelizmente, todavia, o reconhecimento jurídico desta prática não ocorre de forma pacífica. Por isto é comum se seguir ao tratamento (feito de acordo com normas internacionalmente reconhecidas, entre as quais se incluem pelo menos dois anos de acompanhamento terapêutico por equipe multidisciplinar) uma dor maior que a ablação física, já que, além da dolorosa recuperação do corpo são recorrentes os preconceitos, notadamente a negação do Poder Judiciário da nova realidade.
O PROCEDIMENTO MÉDICO DA TRANSGENITALIZAÇÃO
Como se relatou no item 3.3, onde se fez um breve apanhado histórico sobre a transexualidade, Harold Gillies, já em 1917, realizou a primeira cirurgia de transgenitalização. Neste ano realizou a primeira vaginoplastia de que se tem notícia, permitindo, com isto, a que um transexual originariamente portador da genitália externa masculina tivesse configuração feminina.
A primazia de Gillies na transgenitalização “masculino-para-feminino” se repetiu em 1919, ocasião em que realizou a primeira faloplastia[55] noticiada. O procedimento teria sido aplicado a Laura Dillon, que, a partir de então, pode ter a conformação física aspirada. Uma conformação que lhe permitiu assumir o prenome de Michael.
Na realidade brasileira, para que seja diagnosticado a transexualidade (e via de conseqüência possibilitada a cirurgia de transgenitalização), a equipe multidisciplinar deve verificar determinados pressupostos, enumerados aos longo dos incisos que explicitam o teor do artigo 3º da Resolução 1.652 do Conselho Federal de Medicina:
“I) desconforto com o sexo anatômico natural;
II) desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
III) permanência desses distúrbios contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;
IV) ausência de outros transtornos mentais.”
Do que se assenta nos incisos colacionados se estabelece que não basta apenas a vontade do paciente para que seja autorizado o ato cirúrgico. O desejo de se tornar alguém diferente da inscrição cromossômica deve ser tal que, se negado, pode levar a estados de depressão e propensão para a automutilação.
A cirurgia, deve se destacar, somente poderá ser realizada em hospitais, públicos ou privados, que tenham atividades voltadas para pesquisa. Esta imposição nos parece positiva, já que limita a possibilidade de utilização do procedimento por clínicas de apelo meramente estético ou hospitais sem o devido aparato técnico-científico.
Uma vez observados os requisitos para a realização da cirurgia, regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina, passa-se à operação propriamente dita. Neste ponto nos parece producente se trazer para o corpo do texto as lições do professor José Francisco Oliosi da Silveira[56], nas quais se detalha o procedimento cirúrgico por que passa a pessoa transexual no afã de “assumir a identidade”[57] que quer para si.
Para a realização da vaginoplastia segue-se o seguinte procedimento:
“A mudança cirúrgica masculino para feminino é facilmente feita e pode, na maioria dos casos, ser feita em somente um tempo cirúrgico.
O primeiro estágio compreende a amputação do pênis, deixando a glande com seu feixe vásculo-nervoso. A glande necessariamente será preservada e colocada, anatomicamente, no local do clitóris. Dessa maneira, a sensibilidade não sofre alteração alguma, ensejando um resgate do orgasmo mais facilmente.
A uretra é amputada, entretanto, deixando-se um segmento mais longo, de tal sorte que a mucosa fique redundante. Se ocorrer necrose ou infecção em pós-operatório imediato, sempre teremos tecido disponível para novo procedimento. Na eventualidade da uretra profusa, a mesma poderá, em um segundo tempo, ser novamente encurtada.
Uma incisão mediana e longitudinal é efetuada no escroto para a retirada dos testículos e funículo espermático. Todo o escroto, excetuando-se a camada vaginal, será usado para a construção da vagina.
No períneo, entre o ânus e a raiz do escroto, efetua-se uma incisão em cruz ou em “v”, abortando-se o espaço imediatamente cranial ao reto e prosseguindo até a próstata. Este espaço virtual é dissecado, e através de dilatadores de Hegar, é criado um pertuito que será a nova vagina. A ablação pilosa escrotal é efetuada com eletrocautério. Nestas condições, o escroto é invertido e sepultado neste novo espaço, com sutura tão cranial quanto possível.
Um molde metálico ou siliconado é revestido com gaze e introduzido no orifício,de tal sorte a manter hemostasia e prevenir eventual colamento da cavidade. No pós-operatório, o paciente, sistematicamente, dilatará a neovagina com artefato siliconado, até sua estabilização.”[58]
É de se notar no procedimento narrado a intenção de preservação da zona erógena ao máximo possível, daí a preocupação com a mantença das terminações nervosas. Uma preservação que ocorre por se ter assente que o corpo é fonte de prazer e que o procedimento deve se voltar, na medida do possível, para esta possibilidade. Desta forma, conquanto seja comum se dizer que a vagina cirurgicamente construída seja mero arremedo, as técnicas cirúrgicas têm sido desenvolvidas com a aspiração de concederem aos pacientes mais que uma mera imitação.
Visto o procedimento da vaginoplastia, passa-se para a análise da faloplastia, com o qual se busca dar ao transexual que se identifica como sendo homem uma conformação física próxima do corpo masculino. Um procedimento que, segundo a mesma fonte doutrinária, dar-se-ia da seguinte forma:
“O paciente é levado a uma cirurgia de laparotomia, com anestesia geral e bloqueio pelidural, para a retirada do ovário, útero e anexos.
Após a sua total recuperação, em um período de tempo não menor a 30 dias, o paciente é submetido ao segundo tempo cirúrgico. Consiste na retirada da vagina, usando-se a parede anterior para a reconstrução da uretra. A mucosa vaginal tubularizada se adapta excepcionalmente bem, como uretra. A parede posterior da vagina é exteriorizada para fazer parte do escroto. Na hipótese de uma exagerada atrofia da mucosa vaginal o escroto é reconstituído com retalho do músculo Gracilis, tirado da face medial da coxa. O pênis é construído com enxerto de CHANG. O tecido é retirado do antebraço, juntamente com uma artéria radial, duplamente tubularizada, respectivamente para a uretra distal e para acolher futuramente a prótese peniana. Este procedimento, especificamente, requer técnica microcirúrgica. Para a construção do falo também pode ser usado retalho do abdome. Esta técnica não requer microcirurgia, entretanto o aspecto cosmético perde em qualidade para o enxerto de CHANG. O uso do retalho do músculo Gracilis, rotado da face interna da coxa, é reservado para a situação onde o paciente não dispõe de tecido adequado do abdome ou não deseja ficar com cicatriz ampla no antebraço.
O terceiro tempo cirúrgico somente é levado a efeito quando há uma cicatrização perfeita nos tempos anteriores. Demanda aproximada de três meses. Então, através de uma pequena incisão na base do neopênis, é introduzido um tubo siliconado, cujo eixo é composto de uma liga de prata maleável. Esta estrutura denominada prótese é fixada no osso do púbis, através de um procedimento estético denominado Dracon. A fixação estabiliza o artefato evitando a extrução futura. A prótese peniana possui rigidez suficiente para o coito e pode, confortavelmente, ser dobrada para baixo, quando não há interesse em atividade sexual.
No mesmo tempo cirúrgico, são introduzidos um novo escroto, duas estruturas ovóides, com 20 centímetros cúbicos, com silicone gel no seu interior, simulando testículos.
O paciente, nestas condições, está autorizado à atividade sexual, somente 90 dias após o implante das próteses peniana e testicular. Após aproximadamente um ano, a sensibilidade se estabelece em pelo menos 2/3 do falo.” [59]
Os procedimentos cirúrgicos trazidos à colação, conquanto partam de uma perspectiva médica, são importantes. Assim, ainda que o Projeto de Lei n. 6.655-B de 2006 não condicione a mudança de nome e de sexo à feitura da cirurgia, é de se ter que o procedimento não perde sua importância, haja vista a apreensão de muitos julgadores a aspectos citogenéticos, ainda recorrente em muitos julgados[60].
ASPECTOS JURISPRUDENCIAS SOBRE O TEMA
Nada obstante o silêncio legislativo brasileiro sobre o assunto, nosso Judiciário vem se manifestado sobre o tema. É certo que há lacunas, mas, como é sabido, estas não são argumentos que legitimam eventual omissão do julgador, que tem a seu dispor mecanismos de integração.
Nosso Judiciário, no mais rumoroso caso de que se tem notícia, aduziu, “na primeira demanda proposta”[61], entendimento contrário à mudança de nome e de sexo de Luís Roberto Gambine Moreira, que aspirava a se chamar Roberta Gambine Moreira. Na primeira instância a juíza Conceição Aparecida Mousnier (à época titular da 8ª Vara de Família da Comarca da Capital e hoje desembargadora no Tribunal de Justiça) esposou entendimento no sentido da mudança pretendida. Em Apelação Cível, contudo, a 8ª Câmara Cível pugnou[62], em julgamento ocorrido em 10 de maio de 1994, pela manutenção do nome e do sexo constantes do registro de nascimento.
O caso “Roberta Close”, como ficou conhecido, tornou-se público ao ser objeto de diversas matérias. A cirurgia de transgenitalização ocorreu na Inglaterra em 1989. Após o procedimento cirúrgico foi proposta a demanda visando à mudança de nome e de sexo, conforme se comentou no parágrafo anterior.
Não-obstante a decisão desfavorável à parte autora na jurisdição fluminense, o pedido foi repisado no mesmo órgão jurisdicional em 2001, conforme relata Tereza Rodrigues Vieira em seu Direito a adequação do nome e sexo de “Roberta Close”[63]. Uma possibilidade que se abriu por se tratar de um processo de jurisdição voluntária, onde não se fala de Coisa Julgada Material[64].
O processo de 2001 foi julgado em 04 de março de 2005 pela juíza da 9ª Vara de Família da Comarca do Rio de Janeiro, Leise Rodrigues Espírito Santo, podendo se destacar sobre a Coisa Julgada que:
“não-obstante a coisa julgada versar sobre questão de ordem pública já superada, se faz mister registrar que o pedido formulado é referente ao estado de pessoa, e que a ação manejada admite revisão quando presentes os requisitos legais autorizadores da modificação jurídica pretendida, por se encontrar inserida no âmbito da jurisdição voluntária. (…) Não há como afirmar que a coisa julgada foi atingida, primeiramente, como já foi dito, ela sequer foi formada, ademais, a evolução da medicina e precisão dos técnicos da perícia, deixam claro que a presente ação tem novo fundamento” [65].
A sentença em comento nos parece muito feliz porque assevera que o direito deve sempre buscar a verdade. Não apenas a verdade biológica (como querem alguns), mas sim a verdade que está inscrita na intimidade das pessoas, notadamente suas racionalidade e autonomia. Uma verdade que não deve ser buscado apenas no corpo do direito e sua pretensão de completude. Esta busca deve contemplar, sem qualquer dúvida, a interseção do direito com outras disciplinas. Este é um meio de a matéria se fazer autopoiética, no exato sentir do que propugnou a magistrada em exame:
“em face da unanimidade dos pareceres e laudos médicos, resta inequívoco que a parte requerente não possui tão somente perfil psicológico feminino, mas também possui caracteres biológicos próprios de uma mulher, sendo, portanto, indiscutível seu direito de pleitear a alteração de nome civil e sexo.”[66] (destacou-se)
A sentença sob exame é importante porque considera os efeitos que dela própria pode advir. Por isto é precisa ao afirmar que a adequação do prenome e do sexo não prejudicará terceiros, justamente porque, à margem do registro, deverá constar que a modificação se deu por determinação judicial. Verbis:
“julgo procedente o pedido, pelo que determino, a expedição de mandado de averbação da retificação do nome e do sexo no registro de nascimento de Luis Roberto Gambine Moreira, que deverá figurar agora em diante como sendo ROBERTA GAMBINE MOREIRA, do sexo feminino, mantendo-se os demais dados, constantes quanto à naturalidade data de nascimento e filiação. Determino ao fim de resguardar possíveis interesses de terceiros que conste à margem do registro a anotação quanto ao fato de a alteração de nome e de Estado, deu-se por força de sentença“[67]. (destacou-se)
A decisão em comento seguiu o parecer do promotor Marcelo Carvalho Mota, que opinara pela procedência do pedido:
“os pareceres e laudos médicos constantes dos autos são conclusivos no sentido de que a requerente não possui apenas perfil psicológico feminino, como também caracteres biológicos próprios de uma mulher.(…) Ademais, se faz necessário também, eliminar as situações de constrangimento, com intensa dor moral, por que passa a requerente, ao ter que exibir no meio social identidade que não é a sua realidade, mas decorrente de assento de cartório desconforme a sua realidade – hoje diagnosticada como verdadeira pela perícia recente”[68]. (destacou-se)
A decisão de Leise Rodrigues Espírito Santo é importante porque se pauta, sempre, por princípios que estão na base constitutiva da República Brasileira, merecendo destaque a Dignidade da Pessoa Humana. Nesta linha discorre sobre as dimensões positiva e negativa do princípio, assentando que de nada adianta ter direitos se não se pode exercê-los efetivamente. No mesmo seguimento aponta que “o Estado-Juiz deve entender que o homem é o objetivo da existência do direito, assim como da ciência médica”[69], não fazendo qualquer sentido a negação da realidade psicofísica.
Ainda em relação à decisão em comento, destaca-se a referência ao artigo 2º da Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, que foi aprovada em 11 de novembro de 1997:
“todos têm o direito ao respeito por sua dignidade e seus direitos humanos, independentemente de suas características genéticas. Essa dignidade faz com que seja imperativo não reduzir os indivíduos a suas características genéticas e respeitar sua singularidade e diversidade”. (destacou-se)
A citada Declaração é fundamental, pois vai na direção exata do que se quer com a presente dissertação. Dizer que o homem é realidade biológica, mas que não se reduz a isto. Dizer que a marca do Ser Humano é sua racionalidade, a partir da qual se sedimentam a Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos da Personalidade.
O caso “Roberta Close”, em razão da notória exposição na mídia, tornou-se emblemático. É de se dizer, contudo, que há muitas demandas reclamando os mesmo direitos. Algumas alcançando êxito. Outra nem tanto.
Roberta Close, como se assentou anteriormente, só conseguiu proceder à efetiva mudança de nome e de sexo no plano jurídico em 2005. Antes disto, contudo, o próprio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já tinha se manifestado em sentido favorável, precisamente na Apelação Cível n. 2001.001.16591, cujo relato coube ao desembargador Ronald Valladares.
A apelação em comento foi julgada pela 16ª Câmara Cível em 25 de março de 2003. Nesta foi acolhida a pretensão de mudança de nome e de sexo, determinando que no registro civil constasse sexo feminino e, à margem deste, a averbação[70] de que mudança ocorrera por ordem judicial. Trouxe, ainda, outros apontamentos importantes, sobretudo que não deveriam ser feitas referências à condição de transexual nos documentos de identificação, vez que qualquer alusão importaria em supressão do direito à intimidade.
O voto vencedor de Ronald Valladares, pelo caráter paradigmático na justiça fluminense, deve ser colacionado. Diz-se isto porque traz consigo inconteste referência a valores afeitos à Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos da Personalidade. Apontou, inclusive, que a modificação serviria para o encontro da efetiva identificação civil, pressuposto para a harmonia pessoal e para o pleno desenvolvimento da capacidade cognitivo-comportamental:
“passando, a pessoa portadora de transexualismo, por cirurgia de mudança de sexo, que importa na transmutação de suas características sexuais, há de ficar acolhida a pretensão de retificação do registro civil, para adequá-lo à realidade existente. A constituição morfológica do indivíduo e toda a sua aparência sendo de mulher, alterado que foi, cirurgicamente, o seu sexo, razoável que se retifique o dado de seu assento, para ‘feminino’, no registro civil o sexo da pessoa, já com o seu prenome mandado alterar para a forma feminina, no caso concreto considerado, que é irreversível, deve ficar adequado, no apontamento respectivo, evitando-se, para o interessado, constrangimentos individuais e perplexidade no meio social. As retificações no registro civil são processadas e julgadas perante o Juiz de Direito da Circunscrição competente, que goze da garantia da vitaliciedade, e mediante processo judicial regular. A decisão monocrática recorrida não contém nulidade insanável. Preliminares rejeitadas. Recurso, quanto ao mérito, provido, para ficar modificado, parcialmente, o julgado de 1º grau”.[71] (destacou-se)
Em sentido semelhante ao decidido pela 16ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 2003, decidiu a 5ª Quinta Câmara da Seção de Direito Privado de São Paulo em 2005 na Apelação Cível 165.157.4/5-00[72], cujo relato coube ao desembargador Boris Kauffmann.
No processo em exame o autor visava à alteração do assento de nascimento em relação a nome e sexo. Apresentava como fundamento ser transexual que se submetera à cirurgia de adequação do sexo físico ao psicológico, a partir do que entendia ser a utilização do prenome masculino constrangedora. Consignou que, sendo de fato uma mulher, não via razões para a mantença da situação registral. Ademais apresentou argumentos sobre a falibilidade do princípio da definitividade do prenome.
Instada a se manifestar, a Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da procuradora Leila Mara Ramacciotti Vasconcellos, consignou entendimento no sentido de se prover o recurso na íntegra, alterando o nome e o sexo no assento de nascimento do autor, no que foi acolhido na íntegra.
A decisão do Tribunal Paulista demonstra nova possibilidade de entendimento sobre o tema naquele estado. Uma possibilidade completamente divergente do que se decidiu no ano de 1991 na Apelação 148.078[73], na qual se assentou que apenas nas hipóteses de intersexualidade se poderia admitir a alteração do que consta no registro civil, argumento de notória marca biológica[74].
Tanto na corte paulista como na carioca parece ter havido um avanço rumo ao reconhecimento da realidade transexual. Este reconhecimento, contudo, não se faz linear, o que se diz a partir da análise da jurisprudência recente destes tribunais, ainda claudicante.
As divergências jurisprudências são muitas. Assim, conquanto os votos dos desembargadores Ronald Valladares e Boris Kauffmann sejam verdadeiros paradigmas para os tribunais de Rio de Janeiro e São Paulo, estes ainda proferem decisões completamente divergentes.
Exemplo da divergência recente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro são as Apelações Cíveis ns. 2007.001.24198 e 2007.001.14071, votadas nos meses de agosto e setembro de 2007 e cujo relato coube aos desembargadores Mônica Costa Di Piero[75] e Gilberto Dutra Moreira[76].
As decisões referidas foram trazidas em notas por não apresentarem argumentos novos em relação ao que já se discutiu. Ressaltam, em verdade, o discurso da “análise citogenética” e rechaçam a possibilidade de identificação sexual a partir do viés psicológico. Aludem, inclusive, a uma suposta vedação do Código Civil quanto a mudança, que, segundo os relatos, autorizariam o casamento entre pessoas do mesmo sexo, fato proibido pelo artigo 1.604 do Codex.
É de se entender, pelas razões já esposadas ao longo do texto, que as decisões em comento não contribuem em nada para o regime da Dignidade da Pessoa Humana e dos Direitos da Personalidade, já que reduzem o Ser Humano à sua existência biológica. Insistem no fato de que ter a aparência não implica em mudança cromossômica, fato que é absolutamente verdadeiro, mas que, em hipótese alguma, leva em consideração o lócus especial do Homem na escala dos seres. Partem de uma análise citogénetica e findam a discussão nesta mesma análise.
A análise citogénetica, conhecida do grande público por ocasião das Olimpíadas de Atlanta, quando se questionou da condição de mulher da Judoca Edinanci Fernandes da Silva, não considera o Homem no que o difere: racionalidade e autonomia. Reduz a espécie humana a uma realidade biológica. Uma redução que, de tão pequena, não consegue dar conta das síndromes genéticas, especialmente Turner, já que neste caso não há o cromossomo que define caracteres sexuais. Assim, a se entender a sexualidade humana a partir da análise citogénetica, “o portador da Síndrome de Turner não é nada”.
Enquanto se entender a transexualidade como nas últimas decisões que se colacionou, será possível se dizer que o Ser Humano não é nada mais que um animal. Assentar que a “diferença encontrada nos cromossomos sexuais é a chave para a determinação do sexo” é muito pouco se se considerar a multiplicidade do humano. De igual modo soa tacanho se chamar a cirurgia de transgenitalização de mera mutilação. Dizer isto no afã de se negar o reconhecimento de “direitos específicos das mulheres” é dizer que homens e mulheres não são iguais perante a lei. Implicaria dizer, parece-nos, que a Constituição da República Federativa do Brasil vê o homem tão-somente em sua perspectiva biológica, fato que não nos parece poder subsistir, tendo em vista o regime da Dignidade que deve ser o vetor do ordenamento jurídico.
Assim como no Tribunal do Rio de Janeiro, há também no Tribunal de São Paulo decisões que significam retrocesso em relação a decisões paradigmas da corte. Neste caso merece destaque a Apelação n. 452.036-4/00[77], proveniente da comarca de São José do Rio Preto. Uma decisão que retrocede até mesmo em relação ao que se decidiu no primeiro grau de jurisdição, significando, por isto mesmo, uma negação de realidade.
Embora retrocessos possam ser percebidos pelo tecido da jurisprudência brasileira, cabe ressaltar que há também muitas decisões que atendem ao chamado do Ser Humano a partir da Dignidade da Pessoa Humana e dos Direitos da Personalidade, como pensamos dever ser. Exemplos disto são as decisões nas Apelações Cíveis ns. 2006.001.61108, 2005.001.17926 e 2005.001.01910, relatadas pelos desembargadores Vera Maria Soares Van Hombeeck[78], Nascimento Povoas Vaz[79] e Luís Felipe Salomão[80]. Decisões que, infelizmente, dividem espaço com medidas que limitam o Ser Humano.
REFLEXOS JURÍDICOS DA TRANSEXUALIDADE NO ORDENAMENTO BRASILEIRO
Embora o tema transexualidade possa refletir em muitas direções, parece-nos claro que é em matéria de Direito Civil que os reflexos são mais controvertidos. Em matéria penal houve grandes discussões, vide o caso do doutor Farina na década de 1970, mas hoje, em vista da superação social da norma que associava a cirurgia de transgenitalização à lesão corporal, sobretudo após 1997 e a regulamentação do procedimento pelo Conselho Federal de Medicina, subsistem discussões acaloradas apenas[81] no âmbito civil.
Como se disse, é no âmbito do Direito Civil (visto sob o enfoque constitucional dos Direitos Fundamentais) que o tema apresenta traços mais marcantes e as maiores complexidades, fato que decorre da preocupação desta matéria com o que o homem tem de mais próprio: sua Personalidade – onde se inscreve a identificação[82] –, sua Dignidade e sua Relação com a Família.
A questão da Dignidade se mostra essencial, pois a partir desta o homem não mais pode ser pensado sem a matriz que o caracteriza, particulariza e distingue na escala animal: racionalidade e autonomia. Por isto mesmo, nenhuma leitura que se faça do Ser Humano pode se dar fora desta referência.
No que concerne aos Direitos da Personalidade os reflexos da transgenitalização se projetam de modo muito especial na identificação, qual seja, nome e sexo. Fica claro, então, que não se pode pensar em vaginoplastia ou faloplastia sem a correspondente[83] mudança de nome e de sexo, ou, como querem alguns, “adequação de nome e de sexo”[84].
Nome e sexo são essenciais para se compreender a dinâmica dos reflexos civis da cirurgia sob exame. Desta forma, a fim de se ter melhor entendimento sobre o tema, faz-se necessário que nos atenhamos sobre o regime jurídico do nome e sua aspiração de individualização.
O nome, surgido no afã de afirmar a individualidade, é aposto a partir do gênero e da consideração genética deste. Trata-se, portanto, de aposição realizada a partir da realidade da genitália externa[85] do recém-nascido. Um modo de identificação que durante muito tempo se mostrou suficiente, mas que perde seu caráter absoluto de imutável[86] ante a nova dinâmica social.
Entre as primeiras civilizações de que se tem notícia a identificação se dava por um só nome, equivalente ao prenome nos dias atuais. Esta prática foi superada com o adensamento populacional que impôs a adoção de nomes complementares, permitindo uma identificação efetiva e minorando o problema da homonímia.
Os hebreus – conforme o Novo Testamento – foram responsáveis pela agregação de nomes ao prenome, a princípio denotando a origem da pessoa. Disto decorre, por exemplo, Jesus Nazareno, já que nascido na cidade de Nazaré. No mesmo sentido os gregos acresceram ao prenome o nome do pai e o da gens. Um acréscimo que visava, sempre, a permitir que o nome trouxesse em si os reflexos da pessoa. Para que fosse o depositário da imagem pública, transportando as impressões da coletividade sobre o seu portador.
Os romanos, associando ao prenome circunstâncias pessoais, procederam a acréscimos. Publius Cornelius Scipio Africanus[87], por exemplo, denotava o indivíduo de prenome Publius, nascido na Cornelia, da família dos Scipio e notabilizado por feitos em batalhas na África. Os sobrenomes[88], como se percebe, era indicativos de naturalidade, família e um “feito especial”[89], caso houvesse.
Na quadra atual nome e sexo devem se voltar para a real identificação como pressuposto de realização dos Direitos ligados à realização da Personalidade. Esta correlação – que durante muito tempo se limitou ao aspecto biológico – deve se associar a uma visão ampliativa, a partir da qual sexo deixa de ser a mera manifestação cromossômica para ser a configuração antropológica da orientação sexual.
Como não há mais dúvida de que o nome civil da pessoa natural é integrante da personalidade, sendo elemento externo com o qual se individualiza e se reconhece a pessoa na sociedade[90], resta evidenciado que este não pode expor seu titular a situações vexatórias, fato que parece ocorrer na transexualidade quando o direito não reconhece a realidade e impõe ao transexual a mantença de nome que nada tem a ver com o exercício de sua Dignidade. Neste caso nem se tem como falar de reflexos da cirurgia de transgenitalização, já que a prerrogativa de dizer o direito lhe é exclusiva. Por isto, quando o direito abstrai a realidade, nada pode ser feito em outras esferas.
Vê-se que quando o direito ignora a demanda apenas ele próprio pode voltar a considerá-la. Em matéria de transexualidade, então, por se tratar de tema tutelado em sede de jurisdição voluntária, o próprio direito, às vezes no mesmo órgão judicante, pode voltar ao assunto, como ocorreu no caso “Roberta Close”, antes referenciado.
Em relação à mudança de nome as discussões têm caminhado em sentido mais uníssono. Discussão mais acalorada ocorre em relação ao sexo, sobretudo pelas preocupações dogmáticas acerca do casamento. Visto isto é de se dizer mais uma vez: qual o conceito consagrado pela Constituição? Quando a Carta Republicana diz em seu artigo 226 que homem e mulher podem contrair matrimônio, de que conceito está se valendo?
O questionamento é feito mais uma vez por se considerar que a adoção de uma tese ou outra importará em conseqüências distintas, em especial para o ramo especializado do Direito Civil que é o Direito de Família.
Partindo-se do postulado que o sexo legal (aferido na observância da genitália do recém-nascido) é o que melhor se ajusta ao estágio vivenciado pelos Direitos da Personalidade, é de se dizer – como, aliás, fazem muitos julgados – que homem é o Ser Humano que tem na cromatina sexual o cromossomo y e mulher o que possui o cromossomo x[91]. Por outro lado, a se fazer uma leitura antropológica ou psicológica do assunto – reclamada na visão psicossocial, por exemplo – a definição cromossômica se mostrará absolutamente limitada.
As maiores conseqüências no âmbito do Direito Civil em relação à transexualidade se dão quando o julgado acolhe a pretensão de mudança de nome e de sexo. Diz-se se isto porque a pretensão acolhida produz seus efeitos no mundo real quando é levada à averbação no Registro Civil de Pessoas Naturais, momento a partir do qual a pessoa (re)nasce para a sociedade. Um novo registro que lhe permitirá retirar novos documentos e dar seguimento à vida com a conformação física e jurídica que aspirou.
Já se disse em muitas passagens do texto que é o direito quem tem o poder de se dizer. Tendo-se isto por assente, é possível se afirmar que a mulher e o homem reconhecidos pelo direito são diferentes da mulher e do homem configurados pela natureza? A mulher e o homem frutos da faloplastia e da vaginoplastia são verdadeiramente mulher e homem ou são transexuais?
Em nossa Constituição só existem dois espaços de categorização: homem e mulher. Homem e mulher que são iguais em direitos e obrigações. Sendo assim, pertencendo-se à espécie humana, cremos que a pessoa será, necessariamente, homem ou mulher. Não haveria, na leitura constitucional, lugar para um terceiro gênero.
Como não há lugar para a criação de um terceiro gênero, que a nós soaria preconceituoso e sem qualquer fundamento, temos por assente que a mulher e o homem advindos da cirurgia de transgenitalização serão mulher e homem verdadeiros, não podendo sofrer restrições em suas aspirações.
Quando apontamos que o texto constitucional não abre espaços para a criação de terceiros gêneros estamos a sustentar a efetividade prática ao sexo psicossocial, a partir da qual seria sustentável, inclusive, a defesa do casamento do transexual feminino – por decisão judicial chamado mulher – com um homem e vice-versa.
Muitos julgados negam a possibilidade de mudança de sexo justamente porque esta poderia se transmudar em casamento. Esta negação não nos parece sustentável. Pensamos ser razoável, sim, a averbação da mudança, pois neste caso a situação seria trazida à baila em uma eventual habilitação para casamento, fato que permitiria aos nubentes – caso ainda não tivessem ciência, o que nos parece pouco provável – saber da realidade um do outro.
Pensamos ser importante a averbação porque esta obstaria futura alegação de “erro essencial quanto à pessoa”[92] do outro cônjuge baseada na identidade[93] ou honra. Assim, admitido o matrimônio nos casos de transexualidade, desde que conhecida pelo outro parceiro antes da união, não se poderia falar em anulabilidade do ato. Com isto um ato, historicamente chamado de inexistente, poderá ser plenamente válido. Uma validade que se sustém ao se garantir efetividade jurídica ao sexo psicossocial.
À idéia proposta anteriormente é provável seguir vozes dizendo que da união não poderá nascer filhos. Este argumento, conquanto verdadeiro, não é absoluto. É falho porque nem todos os casais “geneticamente heterossexuais”[94] também o podem. Ademais, como já se assentou em outros momentos, o argumento meramente genético possui falhas elementares, vide as possibilidades das síndromes cromossômicas.
Do que se expôs, mostra-se producente se trazer à colação o entendimento do magistrado paulista Ênio Santarelli Zuliani. Um entendimento que nos parece totalmente em dia com a teoria dos acerca dos Direitos Fundamentais, Direitos da Personalidade e com a Dignidade da Pessoa Humana. Embora muitos possam ver em sua fala um local de vanguarda, vemos na construção feita por ele apenas sintonia com a realidade fática e com o espírito constitucional. Uma sintonia que pode contribuir de forma efetiva para a implementação dos valores inscritos na Constituição. Verbis:
“como a função política do Juiz é de buscar soluções satisfatórias para o usuário da jurisdição – sem prejuízo do grupo em que vive –, a sua resposta deve chegar o mais próximo permitido da fruição dos direitos básicos do cidadão (art. 5º, X, da CR), eliminando proposições discriminatórias, como a de manter, contra as evidências admitidas até por crianças inocentes, erro na conceituação do sexo predominante do transexual” [95].
Como restou assentado, deve a resposta do Estado-Juiz chegar mais próximo possível de onde permita a fruição dos direitos básicos pelo cidadão. Retomando a indagação acerca do sexo legal e psicossocial, qual deles se aproxima mais desta fruição? Responder a esse questionamento não é objetivo fácil, mas parece-nos válida a interrogação.
Dando seguimento a seu voto, assevera ainda que: “a medicina poderá aliviar o peso da dubiedade, com técnicas cirúrgicas. O Estado confia que o sistema legal é apto a fornecer a saída honrosa e deve assumir uma posição que valoriza a conquista da felicidade”. Outra questão exsurge: a felicidade é encontrada na mantença de dogmas ou no reconhecimento das diferenças? Trata-se de outro questionamento de difícil resposta, mas que se justifica à luz da Constituição aberta e compromissária que o Estado Brasileiro promulgou, primaziando, logo seu artigo 1º, pela valorização da Cidadania e a Dignidade da Pessoa Humana.
APONTAMENTOS FINAIS
Entre os direitos associados aos Direitos da Personalidade, destacam-se os que se ligam à cidadania, mais reclamados nas situações de transexualidade. Esta consideração é aposta em razão da preocupação dogmático-religiosa de manutenção do conceito binário de sexo. Uma manutenção que pode, inclusive, importar na criação de um gênero que o sistema constitucional não alberga.
O conceito binário de sexo ainda tem por base, predominantemente, a referência biológica. Assim, conquanto possam ser sustentadas outras possibilidades de identificação sexual, é recorrente o discurso biológico de aferição de cromátide (através da análise citogénetica) quando a demanda envolvendo transexualidade chega ao Poder Judiciário.
Nas hipóteses em que se fala de análise citogénetica o caminho percorrido é o de negação da possibilidade de mudança de sexo. Nestes casos, em nome da verdade biológica, nega-se toda a realidade vivenciada pelo transexual, chamando-a de artificial ou de arremedo. Nestes casos o Ser Humano resta limitado ao aspecto animal, esquecendo-se que é a racionalidade que o caracteriza.
Parece producente se considerar que mesmo o discurso biológico, ajustado ao discurso científico reclamado por muitos julgadores, tem suas limitações, notadamente nos casos de síndromes cromossômicas, em que pode haver, inclusive, a ausência da cromatina sexual, como ocorre na Síndrome de Turner. Este peculiaridade da natureza, que inclusive é mais comum que a ocorrência da transexualidade, denota bem a falibilidade do discurso citogenético como meio único de aferição de sexo.
Embora seja comum a utilização do discurso biológico (e nestes casos recorrente a negação de mudanças), é de se sustentar a existência de diversos julgados superando o conceito da biologia para oferecer ao transexual uma resposta que lhe permita fruir de forma efetiva direitos que à sua condição Digna se associam. Nestas ocasiões ocorre o deferimento da mudança de nome e de sexo, havendo divergência, apenas, em relação à necessidade ou não da averbação da condição à margem do registro.
A limitação da discussão ao viés biológico, recorrente nos julgados do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ao longo do ano de 2007, quando já há alguns anos o mesmo tribunal apresentou outros argumentos, faz sobrelevar as proposições de Bourdieu sobre a função do direito, que é se manter. Embora a Teoria Sistêmica tenha defensores ardorosos, não se pode ignorar que a assimilação da irritação não é tão pacífica. Fosse assim, uma vez irritado o sistema e ocorrendo assimilação, não poderiam se detectar tais idas e vindas, mais bem compreendidas na tese do jogo de poder.
A cirurgia de transgenitalização é um fato. Fato também é que no sistema jurídico só há lugar para homem e mulher. Entendemos, por isto mesmo, que a pessoa submetida à vaginoplastia ou faloplastia é homem ou mulher, exatamente como quer sua racionalidade exercida de modo autônomo ao se submeter à intervenção cirúrgica.
Transexual, deste modo, é condição do homem e da mulher, e não categoria própria. Uma condição que não retira da pessoa nenhuma prerrogativa de fruição dos direitos e garantias fundamentais. Em verdade é uma condição que diz com a intimidade da pessoa e que só pode ser trazida à baila em uma eventual habilitação para o casamento.
Esta sustentação tem por base a necessidade de preservação do próprio sistema, haja vista que o desconhecimento desta particularidade poderia ser reclamada a posteriori. Assim, no afã de se evitar reclamações sobre erro essencial, por exemplo, pensamos ser produtiva a averbação da condição transexual à margem do registro de nascimento, fato que não se repetiria em qualquer outro documento.
As hipóteses envolvendo a transexualidade precisam ser entendidas no contexto de consideração que homens e mulheres pertencem à mesma raça: a humana. Ninguém é superior a ninguém, sendo o sexo biológico uma contingência que não autoriza qualquer tipo de discriminação. Sendo contingencial, não subsistem argumentos para que seja meio de se negar a identidade pessoal, que é garantia da Pessoa Humana.
A identidade pessoal, operacionalizada a partir do Registro Civil, é o modo de ser e de estar da pessoa em sociedade, na qual se impregnam qualidades e defeitos, realizações e aspirações externadas, bagagem cultural e ideológica. É, enfim, o Direito que todos os indivíduos têm de se assumirem verdadeiramente. A identidade sexual, a seu turno, é um dos aspectos da identidade pessoal, formada na estreita vinculação com a pluralidade de direitos associados ao desenvolvimento da personalidade.
Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Conferencista do CONPEDI. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis. Concursado da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
O Benefício de Prestação Continuada (BPC), mais conhecido como LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social),…
O benefício por incapacidade é uma das principais proteções oferecidas pelo INSS aos trabalhadores que,…
O auxílio-reclusão é um benefício previdenciário concedido aos dependentes de segurados do INSS que se…
A simulação da aposentadoria é uma etapa fundamental para planejar o futuro financeiro de qualquer…
A paridade é um princípio fundamental na legislação previdenciária brasileira, especialmente para servidores públicos. Ela…
A aposentadoria por idade rural é um benefício previdenciário que reconhece as condições diferenciadas enfrentadas…