Resumo: Este artigo irá expor as principais discussões que permeiam o Estatuto de Roma, ao qual o Brasil manifestou adesão, aderindo à jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Assim, discutirá as disposições que atentam, aprioristicamente, contra os direitos fundamentais do ser humano (como o principio da legalidade penal, da vedação à prisão perpétua, da imprescritibilidade de crimes, da segurança jurídica nas relações sociais e a própria dignidade da pessoa humana) e, por conseguinte, contra a própria soberania do Estado brasileiro, uma vez que, aparentemente, despreza algumas disposições constitucionais, sendo, por tais razões, necessário que se promova uma discussão a partir da produção doutrinária existente acerca da matéria, agregando reflexões críticas oportunas.
Palavras-chave: Estatuto de Roma. Tribunal Penal Internacional. Inconstitucionalidade aparente.
Abstract: This article will explain the main discussions about Rome Statute, to which Brazil expressed accession, adhering to the jurisdiction of the International Criminal Court. Therefore, the discussions will address the provisions that attempt, a priori, against the fundamental rights of human beings (as the principle of criminal legality of the fence to life imprisonment, the imprescriptible crimes, legal certainty in social relations and the very dignity of the person human) and, therefore, the very sovereignty of the Brazilian state, since supposedly undermines the constitutional provisions, and, for such reasons, necessary to promote a discussion of production from existing doctrine on the matter, adding critical reflections timely.
Keywords: Rome Statute. International Criminal Court. Unconstitutionality apparent.
Sumário: Introdução. Introdução. 1. Breve Histórico. 2. Das Inconstitucionalidades Aparentes. 2.1. Da entrega de brasileiros ao Tribunal Penal Internacional. 2.2. Da possibilidade de prisão perpétua. 2.3. Do possível desrespeito à coisa julgada. 2.4. Da imprescritibilidade dos crimes. 2.5. Da ofensa ao princípio do juiz natural. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O Tribunal Penal Internacional foi instituído em 1998 pelo Estatuto de Roma, tendo, no entanto, iniciado suas atividades em março de 2003. No Brasil, a Corte Penal Internacional ingressou no mundo jurídico com a promulgação do Decreto nº 4.388 de 25 de setembro de 2002. Na Constituição Federal de 1988, a Emenda Constitucional nº 45/04 atribuiu ao Tribunal o § 4º do art. 5º, integrando-o ao sistema de direitos e garantias fundamentais. Com a sua criação, buscava-se julgar e punir os indivíduos provenientes de países que ratificaram o tratado e que cometessem crimes de maior gravidade contra o ser humano (genocídios, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes de agressão de um país contra outro – art. 5º do Estatuto de Roma, Decreto nº 4.388 de 25 de setembro de 2002). Deste modo, a Corte Penal Internacional mostrava-se, já na sua criação, afinada com as tendências jurídico-sociais contemporâneas, uma vez que os atentados aos Direitos Humanos (objeto jurídico do Estatuto de Roma) ultrapassam as fronteiras de qualquer nação, na medida em que maculam toda a coletividade, expondo as vulnerabilidades do ser humano, fazendo-se necessário mitigar, até certa medida, a soberania dos países para que se possa, senão coibir, ao menos punir os déspotas violadores do Direito Comum.
Atualmente, mais de cem países já ratificaram o Estatuto de Roma, submetendo as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade e de alcance internacional (normalmente aqueles que atentam contra os Direitos Humanos) à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, com atuação de maneira complementar à jurisdição de cada país. Apesar das boas intenções que possivelmente nortearam a assinatura do Tratado pelo Chefe do Executivo e sua posterior aprovação pelo Congresso Nacional, é fato a existência de previsões de constitucionalidade questionável, carecedoras de um maior debate pela comunidade jurídica. Alguns doutrinadores já levantaram vozes pela inconstitucionalidade de diversos dispositivos, ressaltando-se: (i) a entrega de brasileiros para julgamento pela Corte Penal Internacional; (ii) a falta de uma tipificação precisa dos crimes e das penas; (iii) a previsão da imprescritibilidade dos crimes de competência desse Tribunal; (iv) a possibilidade de aplicação de pena de prisão perpétua; (v) desrespeito à coisa julgada material; e (v) ofensa às imunidades jurisdicionais e do foro por prerrogativa de função e, por conseguinte, ao princípio do juiz natural.
Valendo-se de tais aparentes inconstitucionalidades como norte, abordar-se-á o conteúdo de tais dispositivos constantes do Estatuto de Roma em cotejo com a Constituição Federal e a mais abalizada doutrina, sem olvidar de uma análise reflexiva sobre o tema.
1. BREVE HISTÓRICO
Durante a Idade Moderna, prevalecia, doutrinariamente, a ideia da irresponsabilidade do governante pelos atos praticados[i] (the king can’t do nothing wrong), baseada, sobretudo, na obra de Maquiavel, segundo o qual “um príncipe, e especialmente um príncipe novo, não pode observar todas as coisas a que são obrigados os homens considerados bons, sendo freqüentemente forçado, para manter o governo, a agir contra a caridade, a fé, a humanidade e a religião.”[ii] Tal ideia esteve cristalizada no seio estatal durante toda a Idade Moderna, quando foi construída uma noção de soberania baseada na independência que, no plano interno, visava neutralizar as forças existentes do Estado feudal, a partir da ascensão da burguesia e de alguns reis, e no plano internacional a partir da limitação do poder da Igreja Católica e do Sacro Império Romano Germânico, que pretendiam deter a hegemonia do poder espiritual e político.[iii]
A partir de tal noção de soberania, surgiu a “cláusula de jurisdição doméstica”[iv], a qual consagra o principio da não-intervenção nos assuntos internos dos demais Estados que, em sua feição mais absoluta, impede repressões contra os direitos humanos cometidos por Estados ou alguém em seu nome, premissa deixou vestígios até hoje.
Com este conceito arraigado, pouco se fez no plano internacional para coibir e responsabilizar os autores de massacres, genocídios e outras formas de violação aos direitos humanos até o término da Primeira Guerra Mundial. Faltava uma construção teórica condizente com os novos tempos que permitisse o surgimento de institutos e instrumentos legais que justificassem e ponderassem a criação de um órgão supranacional e independente, que não se curvasse aos interesses de qualquer país. Com o término da Primeira Guerra Mundial, os vencedores (Grã-Bretanha e França) discutiram a intenção de punir aqueles que praticaram atos ofensivos à humanidade, o que culminou com o Tratado de Paz de Versalhes de 1919. Porém, tal punição resumiu-se a uma indenização a ser paga pelos vencidos.[v]
Eis que, neste contexto, e mormente após as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, pensou-se, em definitivo, vencer a resistência à vetusta concepção da irresponsabilidade dos agentes estatais. Foi, então, que surgiram os Tribunais de Nuremberg e de Tóquio com o objetivo de punir os crimes contra a humanidade cometidos pelos países vencidos. Entretanto, não intimidaram outras atrocidades contra os direitos humanos, que viriam a ser cometidas na segunda metade do século XX, notadamente na ex-Iugoslávia e em Ruanda, tendo sido criados tribunais ad hoc para julgar os responsáveis pelos graves abusos.
Foi, então, motivado pela necessidade de coibir abusos aos direitos humanos, que, no final da década de 1990, passou-se a discutir de forma mais veemente a instalação de um tribunal pena internacional permanente, vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU), alheio a interesses dos países membros, uma vez que os tribunais ad hoc dependiam da decisão do Conselho de Segurança da ONU, no qual cinco potências tinham o poder de veto, fato este que já impediu a investigação e punição dos massacres perpetrados no Camboja nos anos 1970, conforme ressalta o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Enrique Ricardo Lewandowski.[vi]
O Tribunal Penal Internacional foi criado na “Conferência Diplomática de Plenipotenciários da Nações Unidas sobre o estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional” realizada em julho de 1998 na cidade de Roma. O estatuto que instituiu o Tribunal recebeu o nome de Estatuto de Roma em razão de ter sido discutido e aprovado na capital italiana. O próprio estatuto previu, em seu art. 126, que entraria em vigor após o consentimento de sessenta Estados.[vii]
O Brasil ratificou o tratado referente ao Estatuto de Roma em 7 de fevereiro de 2000, através do Ministro das Relações Internacionais que teve carta de plenos poderes outorgada pelo Presidente da República, sendo posteriormente aprovado pelo Congresso Nacional e promulgado pelo Presidente da República em 2002 quando, em 1º de setembro de 2002, ingressa no ordenamento jurídico nacional, conforme orientam o art. 84, VIII e art. 49, I da Constituição Federal de 1988.
A partir de sua aprovação pelo Congresso Nacional e sua posterior promulgação e publicação pelo Presidente da República, prevalece o pacta de sunt servanda, devendo ser respeitado sob pena de responsabilização do Estado internacionalmente. Ao ingressar no ordenamento jurídico nacional, o Estatuto de Roma concretiza o que já dispunha o art. 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988, que prevê que o Brasil lutaria em defesa da formação de tribunal internacional dos direitos humanos.
Apesar de quase dez anos do seu ingresso no ordenamento jurídico, até hoje se discute a constitucionalidade de alguns dispositivos do referido Estatuto, cujas reflexões e argumentos serão ora expostos.
2. DAS INCONSTITUCIONALIDADES APARENTES
Diversos são os dispositivos do Estatuto de Roma cuja constitucionalidade é questionada pela comunidade jurídica. As principais discussões cingem-se aos seguintes pontos: (i) a entrega de brasileiros para julgamento pela Corte Penal Internacional; (ii) a falta de uma tipificação precisa dos crimes e das penas; (iii) a previsão da imprescritibilidade dos crimes de competência desse Tribunal; (iv) a possibilidade de aplicação de pena de prisão perpétua; (v) desrespeito à coisa julgada material; e (v) ofensa às imunidades jurisdicionais e do foro por prerrogativa de função e, por conseguinte, ao princípio do juiz natural.
2.1 Da entrega de brasileiros ao Tribunal Penal Internacional
O artigo 89, item 1 do Estatuto de Roma (Decreto nº 4.388 de 25 de setembro de 2002) prevê:
“O Tribunal poderá dirigir um pedido de detenção e entrega de uma pessoa, instruído com os documentos comprovativos referidos no artigo 91, a qualquer Estado em cujo território essa pessoa se possa encontrar, e solicitar a cooperação desse Estado na detenção e entrega da pessoa em causa. Os Estados Partes darão satisfação aos pedidos de detenção e de entrega em conformidade com o presente Capítulo e com os procedimentos previstos nos respectivos direitos internos.”
A entrega, segundo se extrai do mencionado dispositivo, trata-se de instituto que prevê a apreensão e oferecimento ao Tribunal daquele que se encontra em território nacional acusado de cometer grave violação aos direitos humanos, na forma do estatuto. Em uma leitura superficial, logo se confronta com o instituto da extradição, disposto no art. 5º, incisos LI e LII da Constituição Federal, os quais preveem:
1. O brasileiro nato nunca será extraditado.
2. O brasileiro naturalizado somente será extraditado em dois casos:
a) Por crime comum, praticado antes da naturalização;
b) Quando da participação comprovada em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei, independentemente do momento do fato, ou seja, não importa se foi antes ou depois da naturalização.
3. O português equiparado, nos termos do § 1º do art. 12 da CF, tem todos os direitos do brasileiro naturalizado; assim, poderá ser extraditado nas hipóteses descritas no item 2;
4. O estrangeiro poderá, em regra, ser extraditado, havendo vedação apenas nos crimes políticos ou de opinião. Observe-se que o caráter político do crime devera ser analisado pelo Supremo Tribunal Federal, inexistindo prévia definição constitucional ou legal sobre a matéria.
Acerca da extradição, Hildebrando Accioly define como sendo “o ato pelo qual um Estado entrega um indivíduo, acusado de um delito ou já condenado como criminoso, à justiça do outro, que o reclama, e que é competente para julgá-lo e puni-lo”.[viii] Logo se nota a semelhança entre os institutos da extradição e da entrega. Ocorre que, em razão da vedação à extradição de brasileiros natos, discute-se se o dispositivo já mencionado do Estatuto de Roma não confrontaria com a Constituição Federal, uma vez que o dispositivo que consagra tal vedação integra o rol dos direitos fundamentais, logo é protegido pelo art. 60, § 4º da Constituição Federal, que veda a tentativa de abolição do referido rol.
Valério de Oliveira Manzzuoli salienta que:
“A entrega de uma pessoa ao TPI é um instituto ‘sui generis’ nas relações internacionais contemporâneas, em todos os seus termos distinto do instituto já da extradição, que tem lugar entre duas potencias estrangeiras visando a repressão internacional de delitos. Não obstante os procedimentos nacionais para a prisão continuarem sendo aplicados, eventuais normas internas sobre privilégios e imunidades referentes a cargos oficiais, bem como regras sobre não extradição de nacionais, não serão causas válidas de escusa para a falta de cooperação por parte dos estados-membros do Tribunal.”[ix]
Na opinião do autor, a entrega constitui-se em um instituto peculiar no ordenamento pátrio, distinto, portanto, da extradição. Logo, não haveria incompatibilidade entre os institutos, não havendo que se falar em inconstitucionalidade.
“Na condição de órgão internacional, que visa a realizar o bem-estar da sociedade mundial, porque reprime crimes contra o próprio direito internacional, a entregar do tribunal não pode ser comparada à extradição.”[x]
Para eliminar quaisquer dúvidas que viessem a pairar, o próprio Estatuto de Roma tratou de distinguir os institutos em seu art. 106:
“Para os fins do presente Estatuto:
a) Por "entrega", entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nos termos do presente Estatuto.
b) Por "extradição", entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno.”
Assim, logo se percebe que não há que se falar em inconstitucionalidade em razão da diferença entre os institutos, não havendo motivos para o descumprimento por parte do Brasil, na medida em que um Estado que não entrega um nacional quando emitida ordem de prisão contra o mesmo, será tido como não-colaborador, o que poderá causar-lhe enormes prejuízos tendo em vista existir no estatuto todo um processo que pode ser levado à assembleia dos Estados signatários do Estatuto de Roma e até mesmo ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, para que possam ser tomadas medidas de enquadramento de conduta em relação a tais estados não colaboradores, o que lhe acarretaria prejuízos internacionais.[xi]
2.2 Da possibilidade de prisão perpétua
O estatuto, em seu art. 77, prevê a prisão perpétua nos seguintes termos:
“Sem prejuízo do disposto no artigo 110, o Tribunal pode impor à pessoa condenada por um dos crimes previstos no artigo 5o do presente Estatuto uma das seguintes penas:
a) Pena de prisão por um número determinado de anos, até ao limite máximo de 30 anos; ou
b) Pena de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem.”
A Constituição Federal veda, a seu turno, penas de caráter perpétuo em seu art. 5º, XLVII, b, também protegido pelas cláusulas pétreas, que impedem a abolição dos direitos que são abarcados. Além da previsão clara e expressa do referido dispositivo constitucional, Erica Adriana Costa também ressalta a inconstitucionalidade sob o argumento de que o Estado não poderia delegar poderes que não possui.[xii]
Entretanto, conforme ressaltam Renato Mantovini e Mariana Martins, tal pena é excepcional, só sendo aplicada em casos extremos, além de haver previsão de revisão da pena após 25 anos de seu cumprimento para ver a possibilidade de redução. O art. 80 prevê que os estados não aplicarão tal pena quando não haja previsão nos respectivos direitos internos. Assim, se um nacional for entregue ao TPI não lhe será submetida a prisão perpetua, em razão da vedação na Constituição brasileira e a previsão no art. 80 do Estatuto de Roma[xiii]:
“Artigo 80
Não Interferência no Regime de Aplicação de Penas Nacionais e nos Direitos Internos
Nada no presente Capítulo prejudicará a aplicação, pelos Estados, das penas previstas nos respectivos direitos internos, ou a aplicação da legislação de Estados que não preveja as penas referidas neste capítulo.”
Argumenta-se, também, que a vedação a prisão perpétua é limite imposto apenas aos legisladores internos, não restringindo os legisladores estrangeiros. Ademais, o STF tem admitido extradição para países que admitem pena perpétua (Ext. 426 – RTJ 115969), embora haja vedação no estatuto do estrangeiro (art. 91 da lei nº 6.815/80). Ressalte-se que o art. 7º da ADCT, conforme já mencionado, prevê a criação de tribunal internacional de direitos humanos com o fito de concretizar o principio da prevalência dos direitos humanos que, na qualidade de principio, possui prevalência em relação às normas.[xiv]
“A pena de prisão perpétua não pode ser instituída dentro do Brasil, quer por meio de tratados internacionais, quer mediante emendas constitucionais, por se tratar de cláusula pétrea constitucional. Mas isso não obsta, de forma alguma, que a mesma pena possa ser instituída fora do nosso píis, em tribunal permanente de jurisdição internacional, de que o Brasil é parte e em relação ao qual deve obediência, em prol do bem estar da humanidade.”[xv]
Por derradeiro, conclui-se que a inconstitucionalidade suscitada por alguns autores não é fundada, haja vista que a pena não seria aplicada em território nacional e, ao aderir à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, o Brasil estaria cumprindo princípio-regra plasmado em sua própria Constituição (art. 7º – ADCT).
2.3 Do possível desrespeito à Coisa Julgada
O art. 20 admite que o TPI traga para si o julgamento quando na iminência do julgamento ou da concretização de um processo por um estado. Refere-se aos casos em que o julgamento local tenha por objetivo a impunidade ou quando não conduzido de forma imparcial e independente.
“Art. 20, 3. O Tribunal não poderá julgar uma pessoa que já tenha sido julgada por outro tribunal, por atos também punidos pelos artigos 6o, 7o ou 8o, a menos que o processo nesse outro tribunal:
a) Tenha tido por objetivo subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal; ou
b) Não tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial, em conformidade com as garantias de um processo eqüitativo reconhecidas pelo direito internacional, ou tenha sido conduzido de uma maneira que, no caso concreto, se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça.”
A Constituição Federal em seu art. 5º, inciso XXXVI, veda a ofensa à coisa julgada e, também, emendas constitucionais tendentes a abolir, uma vez que é cláusula pétrea.[xvi]
A coisa julgada material é conceituada no Código de Processo Civil com o seguinte teor:
“Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.”
Hodiernamente, entretanto, a coisa julgada é flexibilizada, mormente com a previsão da ação rescisória (art. 485-495 do CPC) e, para alguns, também poderia ser relativizada diante dos princípios da CF, como prevalência dos direitos humanos.[xvii]
O art. 17 do Estatuo também contém previsão que violaria a coisa julgada, ao permitir que a Corte Penal avaliasse as condições de admissibilidade do processo, determinando se há ou não capacidade e vontade do estado competente em proceder à investigação e inquérito. Poderia o TPI interferir nas questões já deliberadas pelo judiciário nacional.
“Art. 17, 1. Tendo em consideração o décimo parágrafo do preâmbulo e o artigo 1o, o Tribunal decidirá sobre a não admissibilidade de um caso se:
a) O caso for objeto de inquérito ou de procedimento criminal por parte de um Estado que tenha jurisdição sobre o mesmo, salvo se este não tiver vontade de levar a cabo o inquérito ou o procedimento ou, não tenha capacidade para o fazer;
b) O caso tiver sido objeto de inquérito por um Estado com jurisdição sobre ele e tal Estado tenha decidido não dar seguimento ao procedimento criminal contra a pessoa em causa, a menos que esta decisão resulte do fato de esse Estado não ter vontade de proceder criminalmente ou da sua incapacidade real para o fazer;
c) A pessoa em causa já tiver sido julgada pela conduta a que se refere a denúncia, e não puder ser julgada pelo Tribunal em virtude do disposto no parágrafo 3o do artigo 20;
d) O caso não for suficientemente grave para justificar a ulterior intervenção do Tribunal.”
Para Renato Mantovini e Mariana Martins, o referido dispositivo não afronta a Constituição, na medida em que, dado o caráter universal dos direitos humanos, diz-se que há cooperação entre o país e a Corte Internacional, uma vez que esta protege valores compartidos com toda a sociedade.
“O Tribunal Penal Internacional só atuará quando o julgamento local tiver sido forjado para absolver o autor dos crimes definidos no estatuto, ou então quando a investigação e o processamento desses acusados demorar injustificadamente. Havendo conflito positivo entre a jurisdição penal interna e a jurisdição do Tribunal, será o próprio Tribunal penal Internacional – segundo o Estatuto de Roma (arts. 17 a 19) – que irá decidir tal conflito; caso decida a favor de sua competência, mandará o Estado entregar à corte o acusado, ainda que este tenha sido ‘absolvido’ perante a justiça penal interna”.[xviii]
2.4. Da imprescritibilidade dos crimes
A previsão da imprescritibilidade dos crimes encontra assento no art. 29 do Estatuto de Roma, nos seguintes termos: Artigo 29. Os crimes da competência do Tribunal não prescrevem.
O dispositivo estatutário é por demais claro e objetivo em sua previsão da imprescritibilidade dos crimes previstos no próprio estatuto, o que suscitou dúvidas acerca da inconstitucionalidade de tal previsão na medida em que está ampliando o rol de imprescritibilidades penais previstos no art. 5º, XLII e XLIV da Constituição Federal:
“Art. 5º, XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; (…)
XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;”
Em razão de a Constituição Federal só ter fixado como imprescritíveis os crimes de racismo e de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático é que gerou dúvida acerca da constitucionalidade da previsão do Estatuto. Salientam Renato Mantovinni e Mariana Martins que a Constituição não tratou se os demais seriam prescritíveis. A prescrição de crimes visa proteger os direitos fundamentais do autor e a imprescritibilidade protege a vitima e a sociedade. Portanto, se o norte para a definição da imprescritibilidade foi a proteção à dignidade da pessoa humana, sob o mesmo manto poderia o estatuto (com status de norma infraconstitucional) aumentar tal rol, até por que estão em consonância com os princípios e fundamentos nela consagrados.[xix]
Desse modo, resta claro que não há razão para sustentar a inconstitucionalidade da previsão para imprescritibilidade para estes crimes.
2.5. Da ofensa ao principio do juiz natural
O Estatuto de Roma despoja-se, em seu art. 27, de qualquer foro privilegiado ou imunidade a autoridades. Eis o teor do dispositivo:
“Irrelevância da Qualidade Oficial
O presente Estatuto será aplicável de forma igual a todas as pessoas sem distinção alguma baseada na qualidade oficial. Em particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo, de membro de Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou de funcionário público, em caso algum eximirá a pessoa em causa de responsabilidade criminal nos termos do presente Estatuto, nem constituirá de per se motivo de redução da pena.”
Tal dispositivo possui constitucionalidade questionada quando em cotejo com o princípio do juiz natural, plasmado no art. 5º, LIII da Constituição Federal e em diversos dispositivos que prevêem a prerrogativa de foro para crimes cometidos por algumas autoridades. Nota-se, de fato, um choque entre o dispositivo estatutário e a Constituição Federal, entretanto, a tese da inconstitucionalidade do dispositivo, embora respeitável, não merece prosperar.
Atualmente, propugna-se entre os teóricos dos Direitos Humanos uma maior flexibilização dos conceitos que, até então, eram tidos como dogmas, a exemplo de soberania. Era impensável, em tempos atrás, imaginar um país submetendo-se a outro órgão em razão da rigidez conceitual que era dada à soberania. Hodiernamente, prevalece a tese de uma maior flexibilidade da noção de soberania. Do mesmo modo que fazem com a noção de soberania, faz-se em relação a outros dispositivos constitucionais, entre eles os que preveem foro por prerrogativa de função e imunidades.
“O conceito clássico de soberania estatal em função da realização do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, ou seja, deverá ser empregado de forma instrumental para alcançar a proteção da dignidade da pessoa humana. E o meio para se atingir essa finalidade é a proibição dos institutos da imunidade da jurisdição e do foro por prerrogativa de função”.[xx]
Assim, na busca por efetivar os direitos fundamentais do homem, vetor das relações internacionais, é que se afastariam tais prerrogativas.
CONCLUSÃO
Pelo exposto, percebe-se, claramente, que as inconstitucionalidades suscitadas por setores da doutrina, a exemplo de André Ramos Tavares, são meramente aparentes, a despeito do renome das autoridades e do brilhantismo dos argumentos.
Indubitavelmente, a discussão merece ser feita em razão da contribuição acadêmica que o tema permite e do fenômeno da mutação constitucional, em que um mesmo dispositivo constitucional recebe outra conotação em razão das transformações sociais e culturais por que passa o povo. Basta observarmos o que ocorre com conceitos constitucionais como o da coisa julgada e da soberania que, embora incólume na Carta Magna, já não dispõe do mesmo conteúdo de outrora.
Assim, espera-se ter oferecido, ainda que minimamente, contribuição ao engrandecimento da ciência jurídica e ampliação dos debates acerca do tema.
Advogado. Especialista em Direitos Humanos pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
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