No Peru e no Brasil, leis recentes ─ progressistas quanto à busca de promoção de maior igualdade nas relações sociais de gênero ─ sofrem significativas tentativas de inconstitucionalização.[1] No Peru, a mais alta Corte de Justiça do País reagiu confirmando a constitucionalidade da Lei. No Brasil, não ocorreu ajuizamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn): esse procedimento foi desencorajado, com a iniciativa do presidente da República que em dezembro de 2007, representado pelo Advogado Geral da União (AGU), José Antônio Dias Toffoli, ajuizou, no Supremo Tribunal Federal (STF), Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 19). Até abril de 2009, entretanto, o STF não havia julgado a ADC 19, apesar de a AGU ter tido seu pedido de preferência no julgamento dessa ADC, acolhido pelo STF, em fevereiro de 2009.[2]
Onde se inscrevem a Lei 28457,[3] sancionada em 06.01.2005, a busca de inconstitucionalizá-la ─ pelo Primer Juzgado Mixto del Módulo Básico de Justicia, de Condevilla, Lima Norte, em demanda de 18.05.2007 ─ e a recente confirmação de sua constitucionalidade pela Corte Suprema de Justiça peruana? Proponho privilegiarmos a inserção dessas importantes ocorrências legais em um processo social tensionado que busca desconstruir antigos padrões parentais e instituir outras relações entre homens e mulheres.
Lei 28.457 estabeleceu a inversão do ônus da prova da paternidade, significando uma efetiva disposição da sociedade e do Estado peruanos em propiciar uma solução ao não reconhecimento paterno. Sua aprovação não é surpreendente, mas, ao contrário, inteiramente congruente com a trajetória daquele país que inclui a assinatura e ratificação em 23.07.81 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW),[4] que estabelece:
“Os Estados-partes (…), com base na igualdade entre homens e mulheres, assegurarão os mesmos direitos e responsabilidades como pais, qualquer que seja seu estado civil, em matérias pertinentes aos filhos” (Art. 16, inc. d).[5]
Essas iniciativas devem ser inscritas em um processo contraditório que inclui buscas por reduzir e banir o sexismo e a misoginia da sociedade e, simultaneamente, tentativas de desqualificar demandas por uma sociedade mais igualitária e avanços na promoção de Direitos Humanos das mulheres e das crianças.
Em sociedades patriarcais o exercício do arbítrio relativamente ao reconhecimento paterno pelo homem-pai era admitido e visto com benevolência. O patriarcado ─ cultural, histórica e juridicamente construído na América Latina ─ tende a ser amenizado e superado à medida que a sociedade fortalece seu caráter democrático e busca transitar para a instauração de relações sociais de sexo/gênero mais justas. Nesse cenário, a centralidade da questão relacional da paternidade deixa de se situar no homem-pai. Em um horizonte republicano impõe-se a universalização de direitos, neste caso, de todas as crianças ao reconhecimento pelo pai, independente de haverem sido concebidas no casamento ou fora dele, em relações afetivas estáveis ou eventuais.
Interpreto a aprovação da Lei 28457 e a confirmação de sua constitucionalidade pela Corte Suprema de Justiça no Peru, como marcos jurídicos e políticos inovadores na América Latina, no âmbito da construção de uma democracia de gênero, especialmente pelas razões apresentadas a seguir.
1. Contribuem para o enfraquecimento do arbítrio masculino, próprio de padrões patriarcais de paternidade e para o abrandamento de hierarquias entre mães casadas e mães não casadas, entre crianças “legítimas” e “naturais”, entre pais maridos e não maridos da mãe. Um dos poderes fundamentais atribuídos ao patriarca pelo Direito Romano é o poder discricionário de repudiar ou reconhecer filhos, exercendo, desse modo, controle sobre sua descendência. Esse poder foi assim enunciado por Weber: “… los niños se distinguieron, en cuanto sometidos libres, de los esclavos. El capricho del dominus determinaba, ciertamente, la pared divisória. Solo el podia decidir quien era su hijo. Según el derecho romano (..) podia convertir por testamento a sus esclavos em herederos, así como vender su hijo como esclavo”[6] (1944:744).
2. Ao admitirem ao homem-pai indicado estritamente o exame em DNA para negar a paternidade, interditam a utilização de recursos próprios de sociedades sexistas e misóginas, tais como a desqualificação do comportamento da mulher ─ que ao ter um filho fora do casamento já assumiu um comportamento dissidente ─ ou questionamentos a sua moralidade. Portanto, esses novos parâmetros legais retiram a mulher-mãe não-casada da condição de ré para situá-la na condição de cidadã a ser respeitada.
Por outro lado, na perspectiva da criança, devemos admitir com Almeida que “na sociedade contemporânea, o exame em DNA passou a ser história e destino na vida de quem vem ao mundo sem conhecer sua ascendência genética, e desvelá-la torna-se um direito fundamental na construção da identidade pessoal.”[7]
3. Promovem um deslocamento-chave para superar o sexismo e a misoginia e dignificar a mulher cidadã: propõem uma passagem da mentira presumida para a presunção de verdade da palavra da mulher-mãe peruana, que passa a poder declarar o nome do pai de seu filho/a, já no registro civil de nascimento. A presunção de mentira da palavra da mulher-mãe encontra-se ancorada na misoginia como ideologia. Que é misoginia? Gilmore apresenta-a como medo e ódio irracional, sentimento de hostilidade e aversão às mulheres. Um dos pontos de maior relevância na análise do autor é a constatação da passagem de sentimentos e representações em relação às mulheres, a práticas sociais masculinas. Vejamos como ele faz essa articulação: “Quero enfatizar que esse sentimento encontra expressão social no comportamento concreto: nas instituições culturais, nos textos, nos rituais ou outras atividades. A misoginia é um preconceito sexual, simbolicamente partilhado pelos homens, atingindo a praxis.”[8]
Amartya Sen, economista e filósofo, Prêmio Nobel em Economia em 1998, analisando a desigualdade entre os sexos na Índia, acentua o caráter insidioso da misoginia, uma ideologia sexista que, discriminando fortemente a mulher, em última instância, se reverte mesmo contra os homens, não poupando ninguém na sociedade. Eis um fragmento de sua reflexão: “…comportamentos misóginos podem ser tão prejudiciais aos homens quanto às mulheres. (…) com papel-chave na procriação, é claro que carências das quais elas são vítimas terão conseqüências nefastas para todos os seres humanos ─ homem e mulher, criança ou adulto. No fim das contas, a misoginia que pesa tão fortemente sobre a saúde das mulheres se volta contra os homens, como uma terrível vingança…”[9]
4. Promovem a inversão do ônus da prova da paternidade. No Brasil, mesmo com o Código Civil de 2002,[10] a palavra da mulher ─ mesmo casada ─ foi mantida esvaziada tanto para constituir como para excluir a paternidade. Fachin declara sobre o atual Código Civil brasileiro: “… não se preocupou a nova legislação em dar valor jurídico à posição da mulher, permanecendo a ausência de atribuição de sentido à declaração materna.”[11]
Para a análise dos casos peruano e brasileiro, é imprescindível enfatizar alguns princípios, pois, como analisa Pereira, “Os princípios são normas generalíssimas do sistema e contêm o espírito que paira sobre todas as leis.”[12] Destaco, por presidirem a lógica jurídica e política das questões aqui postas, o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade.
O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado ─ princípio geral do Direito ─ é um pressuposto à organização democrática da sociedade, no macro e no microssocial.
O princípio da dignidade da pessoa humana vincula-se ao direito à identidade e à atribuição de valor social à paternidade. Carlos Velloso, Ministro do Supremo Tribunal Federal, afirma: “o direito de conhecer o pai biológico se insere naquilo que a Constituição assegura à criança e ao adolescente: o direito à dignidade pessoal. (…) A conseqüência da não submissão ao exame [em DNA] seria emprestar a essa resistência o caráter de confissão ficta. Isso, entretanto, se tem importância para a satisfação de meros interesses patrimoniais, não resolve, não é bastante e suficiente quando estamos diante de interesses morais, como o direito à dignidade que a Constituição assegura. Ora, não há no mundo interesse moral maior do que este: o do filho conhecer ou saber quem é seu pai biológico”.[13]
Conforme Pereira, o princípio da dignidade da pessoa se constitui em
“um dos esteios de sustentação dos ordenamentos jurídicos contemporâneos. Atualmente, não é mais possível falar de direitos, desatrelados da idéia de dignidade, que funciona também como o vértice do Estado Democrático de Direito, pois é o pressuposto da idéia de justiça humana. (…) É impensável hoje, qualquer julgamento ou concepção em Direito de Família desatrelados ou destituídos da noção ou idéia de dignidade. Ela funciona como um macroprincípio, ou superprincípio que dá a base de sustentação dos ordenamentos jurídicos. No Direito de Família, em particular, é o princípio que sustenta e paira sobre todos os outros princípios. É ele que permitiu incluir todas as categorias de filhos e famílias na ordem jurídica.”[14]
O princípio da igualdade é um princípio jurídico e político que, além da dimensão formal, legal, deve se revestir de uma dimensão material para conferir efetividade às leis. Piovesan e Pimentel assim analisam:
“Se, para a concepção formal de igualdade, esta é tomada como pressuposto [na Constituição Federal], como um dado e um ponto de partida abstrato, para a concepção material de igualdade, esta é tomada como um resultado ao qual se pretende chegar, tendo como ponto de partida a visibilidade às diferenças. Isto é, essencial mostra-se distinguir a diferença e a desigualdade. A ótica material objetiva construir e afirmar a igualdade com respeito à diversidade e, assim sendo, o reconhecimento de identidades e o direito a diferença é que conduzirão a uma plataforma emancipatória e igualitária. Estudos e pesquisas revelam a existência de uma desigualdade estrutural de poder entre homens e mulheres e grande vulnerabilidade social das últimas, muito especialmente na esfera privada de suas vidas. Daí a aceitação do novo paradigma que, indo além dos princípios éticos universais, abarque também princípios compensatórios das várias vulnerabilidades sociais.”[15]
Esses princípios se reforçam entre si e garantem o direito da criança à identidade e ao reconhecimento paterno. Invocar a liberdade do homem-pai declarado pela mulher-mãe a não fazer exame em DNA configura abuso de direito. Uma interdição ao abuso do direito significa uma passagem de uma concepção individualista para uma concepção socializante do Direito. A Lei 28457 e suas exigências não são abusivas. Abusivos são os atos exercidos em contrariedade com a finalidade, o espírito e a função social do Direito. “Abusiva é a recusa do suposto pai à submissão à ordem judicial para comprovação, ou negação, de sua paternidade.”[16]
Nesses casos, práticas masculinas contra o progresso social das mulheres ─ e da sociedade como um todo, em direção a outros padrões civilizatórios ─ manifestam com radicalidade resistência a transformações, procurando reafirmar uma suposta superioridade masculina. Tentando preservar uma antiga ordem sociossexual,[17] investem na inconstitucionalização de iniciativas legais que buscam avançar na direção de uma redução das desigualdades nas relações sociais entre os sexos. Nesse sentido, uma análise acurada das relações sociais de sexo/gênero inclui um exame da construção social da masculinidade e da virilidade e de seu papel na reprodução da dominação masculina e da resistência a mudanças.[18]
Essas experiências latino-americanas tornam visíveis um mesmo fenômeno, semelhante nas dinâmicas das relações sociais de sexo/gênero: avanços que podem beneficiar as mulheres geram reações, tentando estabelecer inconstitucionalidades, seja no Peru ─ diante da Lei 28457 que, inovadoramente, define a inversão do ônus da prova da paternidade ─ , seja no Brasil ─ diante da Lei 11340, a Lei Maria da Penha[19], por meio da qual o Estado brasileiro se posiciona firmemente pelo enfrentamento da violência contra a mulher.
No Brasil, a Lei 11340/06 ─ Lei Maria da Penha ─, aprovada em 07.08.2006 e sancionada pelo Presidente da República em 22.09.2006, tem sofrido fortes ataques. Piovesan e Pimentel apresentam a Lei 11340 como “conquista histórica na afirmação dos direitos humanos das mulheres (…) [com] sete inovações extraordinárias (…): mudança de paradigma no enfrentamento da violência contra a mulher; incorporação da perspectiva de gênero para tratar da desigualdade e da violência contra a mulher; incorporação da ótica preventiva, integrada e multidisciplinar; fortalecimento da ótica repressiva; harmonização com a Convenção CEDAW/ONU e com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher [Convenção de Belém do Pará]; consolidação de um conceito ampliado de família e visibilidade ao direito à livre orientação sexual; e, ainda, estímulo à criação de bancos de dados e estatísticas.”[20] Destacarei duas reações, questionando a constitucionalidade da Lei 11340: no Mato Grosso do Sul e em Minas Gerais.
No estado de Mato Grosso do Sul, a 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça, em 27.09.2007, declarou a inconstitucionalidade da lei, argumentando que desrespeitaria os objetivos da República Federativa do Brasil, pois feriria o princípio da igualdade, violando “o direito fundamental à igualdade entre homens e mulheres”. Ora, a busca da igualdade formalizada pela Lei, cara ao liberalismo moderno, tem se revelado insuficiente para superar desigualdades materiais. Assim, discriminações positivas buscam proteger segmentos vulnerabilizados diante de uma realidade de marginalização social histórica.”[21] O Tribunal de Justiça, de âmbito estadual, não tem competência para decretar a inconstitucionalidade de uma lei federal.
O advogado-geral da União, José Antônio Dias Toffoli, levou ao Supremo Tribunal Federal, em dezembro de 2007, Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) ─ assinada também pelo Presidente da República ─ pois juízes e tribunais vinham resistindo à aplicação da lei por considerá-la inconstitucional. Na ação estão indicadas diversas decisões tomadas por segmentos da Justiça brasileira, contestando a constitucionalidade da lei, como o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS), o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). Cita, também, enunciados aprovados no III Encontro dos Juízes de Juizados Especiais Criminais e de Turma Recursais contra a Lei Maria da Penha. A ação pede a concessão de liminar para suspender os efeitos de quaisquer decisões que, direta ou indiretamente, neguem vigência à lei e a considere inconstitucional e solicita, também, a declaração de constitucionalidade, principalmente dos artigos 1º, 33 e 41, da Lei Maria da Penha. O relator, Ministro Marco Aurélio, em 21 de dezembro de 2007, negou a liminar solicitada. Até abril de 2009, o STF ainda não havia julgado a ADC 19, apesar de a AGU ter tido seu pedido de preferência no julgamento dessa ADC, acolhido pelo STF, em fevereiro deste ano.
No estado de Minas Gerais, Edílson Rumbelsperger Rodrigues, juiz no município de Sete Lagoas, considerou inconstitucional a Lei Maria da Penha e se negou a aplicá-la, alegando constituir-se “um conjunto de regras diabólicas.” Em matéria publicada em edição dominical de um dos jornais de maior circulação nacional, é afirmado: “Segundo a Folha apurou, o juiz usou uma sentença-padrão, repetindo praticamente os mesmos argumentos nos pedidos de autorização para adoção de medidas de proteção contra mulheres sob risco de violência por parte do marido.”[22] Entre esses argumentos estariam, em suas sentenças, frases misóginas como “A desgraça humana começou no Éden, por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem” ou “Ora, para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões.” O caso chegou ao Conselho Nacional de Justiça que, em 20 de novembro de 2007, instaurou processo disciplinar contra o juiz. [23]
O não reconhecimento paterno e a violência contra a mulher são problemas que envolvem desigualdades nas relações sociais de sexo/gênero Constituindo-se em agravos à democracia, estão sendo corajosamente enfrentados no Peru e no Brasil, pela aprovação de leis que têm sofrido resistências até o limite da tentativa de bani-las por meio da inconstitucionalização.
Na América Latina, investimentos para inconstitucionalizar avanços voltados para um progresso nas relações sociais de sexo/gênero ─ relações estruturantes da sociedade ─ revelam um processo em andamento com conquistas e refluxos, no Peru e no Brasil. Em um cenário marcado por um androcentrismo persistente, a ocorrência de resistências a conquistas obtidas não são surpreendentes, pois fazem parte da dinâmica política dessas relações sociais.
Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria, é pesquisadora associada ao Departamento de Sociologia da UnB e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPeM-UnB). Coordena o Projeto Paternidade e Cidadania nas Escolas, parceria UnB e CNTE, que está sendo implementado no Estado do Piauí, com o protagonismo do SINTE-PI.
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