Temos testemunhado o surgimento de um
panorama jurídico-político em nossa sociedade, no qual predomina a retórica
demagógica e insensata a respeito do futuro do Poder Judiciário nacional. E, em
meio a isso, o debate construtivo a respeito das necessárias reformas do
sistema jurisdicional brasileiro tem sido relegado ao segundo plano. Depois de
algumas lamentáveis trocas de farpas – que culminaram com insinuações
pejorativas veiculadas na imprensa entre o Presidente do Senado e Ministros do
Supremo Tribunal Federal- começam a vir à tona as verdadeiras intenções de
nossos “messiânicos políticos”.
Já tive a oportunidade de ouvir
comentários a respeito da extinção de Cortes Superiores, das Justiças do
Trabalho e Militar e, até mesmo, da eleição de juízes. Sem querer adentrar no
mérito de tais questões, por não ser este o objetivo do presente trabalho, é
dever alertar para o fato de que não serão essas
medidas a tábua de salvação que colocará fim à antiga crise do Judiciário. O
problema é mais cultural do que político, depende mais de alteração de
concepções do que de iniciativas legiferantes.
Mas, em meio à ampla gama de opiniões e
propostas lançadas na mídia, nenhuma me causou mais surpresa e me deixou mais
perplexo do que a intenção de reduzir o rol de pessoas legitimadas para
fiscalizar abstratamente o controle dos atos normativos editados em nosso país.
Segundo a minuta original da PEC 96-A, o artigo 103 da Carta Constitucional
passaria a vigorar com apenas cinco incisos, em decorrência da supressão dos
incisos VI a IX. Com isso, o Conselho Federal da OAB, os partidos políticos com
representação no Congresso Nacional, as condeferações
sindicais e entidades de classe de âmbito nacional e, até mesmo, o
Procurador-Geral da República perderiam a prerrogativa.
Sem dúvida, uma notícia de causar
calafrios àqueles que reverenciam e lutam pela construção de um real Estado
Democrático de Direito. Uma nota de dar inveja às velhas e autoritárias
manchetes dos tempos de regime ditatorial.
Como tivemos a
oportunidade de deixar consignado em outra oportunidade em que abordamos o tema
controle de constitucionalidade dos atos normativos no Brasil, “verificou-se
flagrante intenção do constituinte de democratizar o procedimento estipulando
como legitimados ativamente para propô-lo, além de pessoas de cunho
eminentemente político (…), outras representativas de vários seguimentos da
sociedade (…), com especial ênfase para o representante da comunidade
jurídica (Conselho Federal da OAB)” (RT 754/106 – grifamos).
Com certeza, foi um dos avanços mais
significativos que o legislador constituinte imprimiu ao modelo jurídico
pátrio, optando pela extroversão da legitimidade
processual constitucional, com flagrantes intenções democratizantes
do acesso ao controle. O mestre português J.J. Gomes Canotilho,
ao apreciar a legitimatio-actio para a
fiscalização, esclarece que “devem intensificar-se as possibilidades de
intervenção pluralísticas nos processos de controlo. Um processo tendencialmente democrático na criação de normas de acção não é ajustável a um processo estatalmente
monopolizador de dinamização do controlo” (“Jurisdição
Constitucional e Intranquilidade Discursiva”, in
Perspectivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976, Coimbra
Editora, p. 880).
O problema, no entanto, é que as
políticas e práticas governamentais têm denotado pouca ou nenhuma preocupação
com a linha democrática e aberta que caracterizou a elaboração de nosso Texto
Fundamental. O programa claramente delineado no Texto Fundamental tem sido
reiteradamente descumprido pelos administradores públicos nacionais.
A utilização desmesurada do instrumento
legislativo excepcional, com sucessivas e reiteradas reedições de medidas
provisórias, institucionalizando um “ilícito constitucional” é a
maior demonstração disso. Outra prova inequívoca da intenção do “power estabilishment” de
se apropriar das funções estatais é a introdução em nosso sistema jurisdicional
da ação direta de constitucionalidade, através da Emenda Constitucional n.
03/93; com especial ênfase negativa para a restrita legitimidade “ad causam” dessa ação, monopolizada em agentes
políticos (Pres. República e Mesa das Casas do Congresso), com proposital
exclusão das minorias e das entidades de classe representativas da opinião
pública.
Nosso país, infelizmente, está sendo
conduzido por pessoas com más intenções, por administradores que desconhecem o
alcance dos nortes da moralidade e da impessoalidade, que deveriam pautar suas
atuações. E o Poder Judiciário, nesse quadro obscuro, é a única barreira erguida
contra tais desmandos dos detentores do poder. Não é errado dizer, diante
disso, que a submissão dos atos normativos e administrativos ao controle
jurisdicional, nota marcante do Estado Democrático de Direito, tem sido
verdadeira pedra no sapato dos governantes.
Nesse contexto, não é de se estranhar
que a propalada reforma do Poder Judiciário reflita, na verdade, uma tentativa
sórdida de amordaçar o poder contra qualquer tentativa de obstaculizar os atos
governamentais ilícitos. O Conselho Federal da OAB, os partidos políticos
e as entidades de classe, nestes 10 anos de vigência da Carta da República, tem ingressado com ações fiscalizatórias
de alto relevo na defesa das instituições democráticas. A maior parte, é
verdade, contrastando os atos emanados do Sr.
Presidente da República, o que, certamente, serve de motivação à tentativa
arbitrária de suprimir as prerrogativas.
Ninguém mais do que a Ordem tem
combatido, no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade, a
nefasta prática de reedição de medidas provisórias. Foi o Conselho Federal da
OAB, também, quem impugnou, na ADIn
1584-2, a
lei federal que instituiu um programa nacional de desestatização muito amoldado
às exigências e pressões internacionais. A despropositada e desproporcional medida
de aumentar a contribuição social dos funcionários públicos e dos inativos,
determinada pela Lei n. 9.783/99, também é objeto não de uma, mas de três ações
fiscalizatórias propostas pela Ordem, pelos partidos
políticos e pelas entidades sindicais.
Enfim, vê-se que a atuação das pessoas elencadas nos incisos VI a IX do art. 103 da Lex Legum tem sido fundamental à
preservação e construção de um Estado Democrático de Direito efetivo em nosso
país. As iniciativas de tais entes têm-se pautado antes pela independência e
persecução dos objetivos maiores traçados pela Carta Maior, do que pelos fins
políticos que a proposta pretende transformar em motivo único da legitimação.
Revela-se, pois, inadmissível a proposta de redução do rol de pessoas legitimidas ao controle de legalidade dos atos normativos
em nosso país.
Mas, além de inadmissível, a proposta
é, sobretudo, inconstitucional já em sua concepção. Estamos prestes a
testemunhar a edição pelo Congresso Nacional de mais uma Emenda Constitucional
que viola uma série de princípios e regras constitucionais, o que, certamente,
comprometerá ainda mais a debilitada imagem de nosso Parlamento.
As inconstitucionalidades são
flagrantes. Em primeiro lugar, porque a proposta representa evidente afronta ao
Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da CF/88). De outra parte,
porque a real intenção da proposta é diminuir as possibilidades de controle da
atividade estatal pelo Poder Judiciário, ofendendo indiretamente a tripartição
de poderes, cláusula pétrea, nos termos do art. 60, §4º, da CF/88. Afora isso,
esbarra a iniciativa na cláusula “substantive duo process
of law“, insculpida entre nós no art. 5º, LIV, da CF/88, pela falta
de conformação com o princípio da razoabilidade.
No que tange ao Conselho Federal da OAB,
não se pode esquecer que o advogado é essencial à administração da justiça
(art. 133), sendo imprescindível a presença de seu órgão representante entre as
pessoas legitimadas à fiscalizar a constitucionalidade
dos atos normativos.
Com relação ao Procurador-Geral da
República, estão entre suas funções precípuas “zelar pelo efetivo
respeito aos poderes públicos… e aos direitos assegurados na Constituição,
promovendo as medidas necessárias a sua garantia” (art. 129, II,
CF/88). Além do mais, o inciso IV do mesmo art. 129 é claro ao dispor que é
função do Ministério Público “promover a ação de
inconstitucionalidade…”. Como, então, suprimir tal prerrogativa?! Contrariando
a inequivoca vontade do legislador constituinte. Se o
“custos legis” não tiver legitimatio para fiscalizar a constitucionalidade dos atos
normativos, quem terá então?! “Data maxima venia”, beira o surrealismo a proposta(!).
Por fim, o próprio termo “emenda à
constituição” denota, claramente, a impossibilidade de restringir uma
legitimação conferida pelo legislador constituinte. O constituinte derivado,
s.m.j., não pode atuar em contrariedade à intenção do constituinte originário,
transformando um instituto de legitimação marcadamente democrático em algo
introvertido e monopolizado. As “legitimatios”
estatuídas pelo poder constituinte originário são insuprimíveis,
somente podendo o legislador derivado dar continuidade ao processo de abertura,
acrescentando novas pessoas ao rol. O poder reformador pode modificar a
Constituição, mas não destruí-la.
Por tudo isso, esta proposta merece o
repúdio veemente da comunidade jurídica e de toda a sociedade brasileira.
Procurador Autárquico do INSS
membro do IBAP (Instituto Brasileiro de Advocacia Pública).
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