Resumo: Estas são notas de uma leitura de Francis Bacon e das idéias que sugere a propósito de Ciência, Conhecimento e Método. Bacon fundamenta alguns dos paradigmas da idéia moderna de conhecimento que ainda persistem e servem de parâmetros para a Educação: A idéia de que o conhecimento é algo que deve progredir; que a melhoria das nossas condições sociais está diretamente vinculada a este progresso do conhecimento; que este avanço deve estar centrado ma pesquisa científica e tecnológica; e que as figuras do investigador e do descobridor devem substituir a do mestre detentor do conhecimento pronto e acabado.
Sumário: 1. Introdução. 2. Técnica, ciência e filosofia. 3. Aranhas, formigas e abelhas. 4. A verdade como construção. 5. “conhece quem faz” e “saber é poder.” 6. O sistema jurídico ou caçando na floresta. 7. O método indutivo 8. Considerações finais
INTRODUÇÃO
Estas são notas de uma leitura que faço de Francis Bacon e das idéias que sugere a propósito de Ciência, Conhecimento e Método. O trabalho foi realizado com o intuito de contribuir com o Grupo de Estudos em Didática, Filosofia e Formação de Professores para um melhor entendimento do conceito de Empiria , e seus possíveis desdobramentos.
Francis Bacon nasceu em 1561 na Inglaterra e na maior parte de sua vida dedicou-se ao serviço jurídico e ao serviço público. Em 1584 foi eleito Deputado do Parlamento Inglês, tornando-se Magistrado, em 1587, e professor de Direito no Gray´Inn, em 1589. Na década de 1590, Bacon foi responsável por várias comissões especiais dos Conselheiros Privados do Parlamento, além de ser nomeado Conselheiro Extraordinário da Rainha, em 1601. Quando Elisabeth I faleceu, foi nomeado Conselheiro Ordinário de Jaime I, que veio a ocupar o trono. Tornou-se Procurador Geral em 1607, Procurador Público em 1613 e Chanceler em 1618, o mais alto posto do reino britânico. Sua carreira terminou em 1621, quando foi processado e destituído de todos os cargos públicos.
Bacon produziu escritos oficiais e políticos ininterruptamente. Tendo se envolvido, principalmente, com propostas e comissões para a reforma do sistema jurídico inglês. Trabalhos científicos, filosóficos e literários foram produtos de seu tempo livre, durante fins de semana e recessos parlamentares e judiciários, até falecer em 1626.
Contrário à Escolástica, Bacon critica também o conhecimento dos alquimistas, dos platonistas. Critica ainda o silogismo aristotélico e a concepção de conhecimento contemplativo defendida pelos gregos. No seu projeto de reforma do conhecimento, propôs o abandono da prática de produção científica até então usada pela realização de uma reforma no modo de fazer ciência. Este projeto, intitulado Grande Instauração ou Instauratio Magna, consistia de seis partes, das quais somente as três primeiras chegaram a ser realizadas por Bacon: De dignitate et Augmentis Scientiarum, Novum Organum e História Natural. Novum Organum, segunda parte da Grande Instauração, publicada em 1620, cujo nome faz referência ao Organum de Aristóteles, é a obra em que Bacon aponta as falhas da metodologia das ciências em vigor na sua época e apresenta um método alternativo de investigação dos fenômenos para reverter em resultados práticos para a humanidade. A aplicação da ciência na promoção do bem-estar social foi retratada por Bacon em Nova Atlântida sua obra inacabada, editada postumamente em 1627. A sociedade perfeita nessa obra seria resultado da dominação do homem sobre a natureza através do conhecimento obtido com os métodos da ciência. Para as notas aqui apresentadas, analisei as obras Nova Atlântida e Novum Organum, detendo-me nos aforismos constantes neste último texto. No referente à Educação, consultei principalmente Bernardo Jefferson de Oliveira, um dos estudiosos de Bacon.
TECNICA, CIÊNCIA E FILOSOFIA
Bacon denomina de “técnicos” os empíricos e de “conhecimento técnico”, o saber que produziram ou propunham. O conhecimento técnico, no Renascimento, se expandia quantitativa e qualitativamente. Novas descobertas, como, por exemplo, a pólvora e a imprensa, surgiram do esforço de artistas e artesãos. No dizer de Oliveira, Bacon “contrasta a estagnação das ciências com o progresso das técnicas, que avançam dia a dia”, [1] Todavia, mesmo enxugando resultados favoráveis, Bacon vê com reservas o conhecimento técnico, já que tais resultados devem-se mais ao acaso e a tentativas do que à ciência. O conhecimento técnico ainda falhava, a seu ver, porque não se reveste de organização e de objetividade. Os técnicos precisam de um método de descoberta e de aperfeiçoamento, capaz de guiar sistematicamente a busca, o aprimoramento e a expansão do que for experimentado.
Bacon aponta uma inutilidade das ciências e o sistema filosófico do seu tempo. As ciências são “inúteis para invenção de novas obras”, [2] e a filosofia, principalmente a lógica, é “inútil para o incremento das ciências”.[3] A lógica, danosa para a indagação da verdade porque serve apenas para “consolidar e perpetuar erros, fundados em noções vulgares”.[4] Na concepção baconiana de ciência, o conhecimento técnico e a filosofia da natureza se complementam. A filosofia natural é a “grande mãe das ciências”.[5] As artes e ciências, desvinculadas da filosofia, poderiam ser utilizadas, mas que não se esperasse muito delas nesse caso[6].
Bacon propõe uma nova forma de investigação, o método indutivo, que consiste em obter, através de observações e experiências, dados que possibilitem a formulação progressiva de leis gerais a respeito do funcionamento da natureza. Ou seja, parte-se de fatos particulares para as leis gerais O investigador acumula e organiza os dados empíricos obtidos e formula, gradualmente, os axiomas, dos pequenos aos intermediários para só então chegar aos mais gerais. Para Bacon, os axiomas de maior valor utilitário para os cientistas são os axiomas médios, pois eles permitiriam o conhecimento para produzir e reproduzir os fenômenos naturais. O método baconiano pressupõe e depende da observação e da experiência: é partindo delas que conclusões a respeito do funcionamento da natureza são formuladas e colocadas a teste. É necessário que o investigador interfira na natureza, a observe, que obtenha dados através da manipulação das variáveis componentes dos fenômenos, que classifique esses dados, que faça generalizações, não ignorando os fatos contrários nas suas formulações, para só então formular suas teorias sobre o funcionamento da natureza. O investigador, segundo Bacon, precisa atentar principalmente para o controle e o rigor a serem estabelecidos durante a realização das observações e experiências para que as leis gerais derivadas sejam seguras e não obtidas de modo precipitado. Tais medidas, adicionadas à possibilidade de replicação da experiência por outros investigadores, garantiriam a validade científica dessas leis.
ARANHAS, FORMIGAS E ABELHAS
Como obstáculo para a difusão e fortalecimento da filosofia natural, Bacon aponta, dentre outros, a interferência da religião. Tal interferência não têm razão de existir porque, a seu ver, a filosofia natural é “a melhor medicina contra a superstição, e o alimento mais substancioso da fé. Por isso, a filosofia natural é justamente reputada como a mais fiel serva da religião, uma vez que uma (as Escrituras), torna manifesta a vontade de Deus, outra (a filosofia natural) o seu poder”.[7] Bacon também aponta a mescla da filosofia com a teologia como um obstáculo. A seu ver, as explicações finalistas sobre operações da natureza transformam a ciência numa teologia e tal mescla provoca uma confusão de objetivos, impedindo a busca das causas físicas que possibilitam o domínio sobre os fenômenos naturais.
A reverência exagerada à filosofia tradicional também se mostra um obstáculo para Bacon. O autor do Novum Organum acredita que, com exceção de alguns pré-socráticos, os filósofos se debatem com abstrações fúteis, sem sentido, estéreis e inúteis para a melhoria da vida dos homens. A filosofia tradicional se equivoca quando têm fins inferiores, como, por exemplo, a tranqüilidade da alma. A filosofia precisa ter como fim o bem-estar da sociedade, o alívio na condição material dos homens, o que pode ser obtido, a seu ver, através do domínio da natureza. Sua postura filosófica, portanto, é uma postura ativa, contrária à estática postura tradicional, meramente contemplativa.
As ciências racionais e dogmáticas, na palavra de Bacon, fazem cessar a invenção de obras úteis[8]. Os racionalistas são como aranhas e seus sistemas, como teias: “os racionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmos extraem o que lhes serve para a teia”.[9] Não havendo um comércio com as coisas, nada sustenta a teia a não ser ela própria, o sistema pronto e acabado que o seu próprio criador sozinho, habilmente, construiu. Utilizando a imagem da formiga que acumula provisões, Bacon critica os empíricos, por se contentarem com a descoberta ou obtenção dos efeitos ao acaso, satisfazendo-se com resultados independentemente da compreensão: “Os empíricos, à maneira das formigas, acumulam e usam as provisões”.[10] Condena, ainda, aqueles que, tendo conseguido estabelecer formulações científicas ou teóricas, a partir de seus experimentos, “demonstram uma disposição intempestiva e prematura de se voltarem para a prática”.[11] Bacon também é contra a estrita prática: “os experimentos, quando corretamente descobertos e constituídos, informam não a uma determinada e estrita prática, mas a uma série contínua, e desencadeiam na sua esteira bandos e turbas de obras”.[12]
No entendimento de Bacon, as várias descobertas que expandiram e desenvolveram o conhecimento técnico não apontam para um avanço no conhecimento principalmente porque não se procura entender as causas que agem por trás das operações técnicas e dos fenômenos por elas forjados. Segundo ele, é a compreensão dos fenômenos que possibilita uma visão mais global, coletiva e produtiva, das diferentes técnicas. Bacon compara os empiristas às formigas e os racionalistas às aranhas. A posição intermediária é representada pelas abelhas, e é a que ele prefere, pois, para ele, a abelha “recolhe a matéria-prima das flores do jardim e do campo e com seus próprios recursos a transforma e digere. Não é diferente o labor da verdadeira filosofia, que não se serve unicamente das forças da mente nem tampouco se limita ao material fornecido pela história natural ou pelas artes mecânicas, conservado intacto na memória”.[13] Assim, a experiência revelada na colheita, transformação e digestão, propiciam continuamente o bem-estar da colônia. Tais experiências, modificadas e elaboradas pelo intelecto, unindo empirismo e racionalismo, podem levar ao progresso da sociedade. É nesse sentido que ele afirma que “muito se deve esperar da aliança estreita e sólida (ainda não levada a cabo) entre essas duas faculdades, a experimental e a racional”.[14]
Oliveira afirma que, na aliança proposta por Bacon entre conhecimento técnico e filosofia da natureza, entre faculdades experimental e racional e entre prática e teoria, ocorre uma complementação: A ciência que Bacon propõe “tanto incorpora a técnica reformada como também depende do engajamento dos mercadores, artesãos, mineradores, agricultores, navegantes, alquimistas, médicos e curadores”.[15] A ciência Baconiana é um empreendimento a ser desenvolvido coletivamente, já que depende da colaboração entre os investigadores. A união dos esforços possibilita superar a limitação da experiência individual. Todavia, para que estes esforços possam se somar é indispensável a reformulação dos objetivos, estilos e práticas cognitivas.
A VERDADE COMO CONSTRUÇÃO
Apesar de estimar os céticos, Bacon desaprova os extremos e as implicações de suas conclusões. As motivações dos céticos são legítimas porque, no combate ao dogmatismo, “alegaram razões dignas de respeito”.[16] Entretanto, mesmo vendo legítimas as motivações, Bacon desaprova os procedimentos, porque os céticos “não deduziram suas afirmações de princípios verdadeiros e, levados pelo partido e pela afetação, foram longe demais”.[17] Os céticos, Bacon critica, conduziram ao “desespero da acatalepsia”,[18] à desesperança, dispensando a investigação, a procura de novas descobertas.
Segundo Oliveira, alguns membros da Royal Society homenageiam Bacon como patrono e se declaram seus seguidores, eles se auto-reputam céticos construtivistas. O ceticismo construtivo ou mitigado, no âmbito da filosofia natural, é denominado mitigado porque aceita com reservas a crítica cética e é denominado construtivo porque propõe um tipo de conhecimento alternativo ao dogmatismo da escolástica e à conformação com a impossibilidade da ciência., “A idéia básica é a de que podemos desenvolver uma ciência empírica independente de qualquer metafísica, que pode ser considerada como um sistema hipotético que descreve seqüências e relações encontradas no mundo fenomênico capaz de predizer seqüência e relacionamentos futuros”[19].
A ciência baconiana não é o tipo de conhecimento puro e absoluto almejado pelos filósofos dogmáticos, mas é isenta de dúvidas ao permitir controle, verificável e progressivo, sobre vários fenômenos naturais. O método proposto por Bacon não garante o acesso à certeza indubitável e sim “pretende”, continuamente, alcançar tal certeza. Bacon, ao lado dos céticos, aponta como algo duvidoso que a inteligência humana possa acessar certezas indubitáveis, pois o conhecimento humano, a seu ver, tem limites e obstáculos a serem continuamente transpostos. Segundo Oliveira, “é justamente em função da preocupação com os limites do conhecimento que Bacon desenvolve sua teoria dos ídolos e que procura resgatar nas artes mecânicas novas referencias epistemológicas”.[20]
A verdade, para Bacon, é construção que demanda contínuo aprimoramento, não é produto acabado de um ser iluminado num instante recortado do tempo: aí se insere sua crítica aos antigos, à veneração da autoridade. Bacon não nega a importância dos antigos. No prefácio do Novum Organun, em várias passagens, isso é dito claramente: “(…) que sejam conservados intactos e sem restrições o respeito e a glória que se votam aos antigos, isso para o bom transcurso de nossos fados e para afastar de nosso espírito contratempos e perturbações”. A idéia de antiguidade e verdade também é reavaliada por Bacon. Os antigos, a seu ver, eram como que jovens e os modernos eram, mais velhos, no sentido que tinham mais anos acumulados e mais experiência do que os antigos. A verdade, é uma questão de tempo e não de autoridade.
“CONHECE QUEM FAZ” E “SABER É PODER”
A verdade, para Bacon, além de ser construção, é construção útil; tal utilidade é representada não pelo domínio do homem sobre o homem, mas pelo domínio da natureza. Sobre identidade entre verdade e utilidade, Bacon afirma: “as coisas, em si mesmas, neste gênero, são verdade e utilidade, e as obras devem ser estimadas mais como garantia da verdade que pelas comodidades que propiciam à vida humana”.[21]
O conhecimento revela-se em atitudes úteis e quem pode bem agir é aquele que tem o conhecimento. Segundo Oliveira, a idéia de “Conhece quem faz” é tema central na fundamentação baconiana da ciência como técnica. Bacon critica a teoria que, desconhecendo a prática, não resulta em obras e defende a prática como forma de conhecimento válida, mesmo sem o domínio teórico absoluto das causas; Bacon “tanto legitima ideologicamente a operação como conhecimento quanto transfere o critério epistemológico de verdade para o processo de produção” [22].
A postulação baconiana da identidade entre verdade e utilidade, alerta Oliveira, possui pluralidade de dimensões: dimensão instrumental, dimensão experimental e finalidade. Bacon oscila entre elas, cuidando para não reduzir a identidade a um único sentido. A dimensão instrumental do postulado refere-se às afirmações do conhecimento técnico progressivamente confirmadas na prática através de resultados úteis.[23]
Bacon valoriza o conhecimento técnico, pois refere-se ao aporte de instrumentos eficazes, engenhos, instrumentos e máquinas como condição para o implemento de afirmações do conhecimento técnico. As obras afirmadas são progressivamente confirmadas na prática com resultados benéficos que possibilitam a operacionalização de novos resultados também benéficos, novas obras. Explica Oliveira que: “O alcance das novidades (…) estaria, portanto, vinculado ao conhecimento de regras operacionais que refletem outros conhecimentos (…). Bacon acredita que “a arte da invenção se fortalece com as próprias descobertas”.[24]
A dimensão experimental refere-se à experiência como experimento controlado. Revela-se na capacidade de reprodução do método e resultados por outro investigador quando este, acessando a sua descrição objetiva, tem a possibilidade de “reconstruir a maneira de forçar a natureza a falar e fazer com que os mesmos efeitos e fenômenos possam ser obtidos e testemunhados. É nesse sentido que se inserem as referências à utilidade das obras como demonstração, como garantia e como segurança para o alcance da verdade”.[25]
A finalidade é o que teria mais acentuadamente o caráter utilitário. Segundo Oliveira, o sentido de finalidade afirmado por Bacon refere-se à “produção de recursos, tecnológicos ou materiais, que aliviem as dificuldades da vida”.[26] Aqui se confirma a verdade, confirmam-se as afirmações do conhecimento técnico: “Com efeito, os frutos e os inventos são como garantias e fianças da verdade das filosofias”.[27]
Bacon demonstra ter uma visão unitária do conhecimento. Oliveira escreve: “tal visão unitária tem o sentido horizontal de que as diferentes áreas de conhecimento tem métodos e causas comuns (ou seja, princípios, meio e fins comuns), e vertical, no sentido de que a capacidade de produção dos efeitos é simultânea à compreensão de suas causas, ou seja, saber é poder”.[28]
Sobre identidade entre ciência e poder, Bacon afirma: “Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece. E o que à contemplação apresenta-se como causa é regra na prática”.[29] O poder que Bacon afirma não é o poder de um homem sobre o outro, subjugação, que ele vê como vulgar e aviltante; nem é o poder de um Estado sobre outros, que ele vê como mais digno, mas ainda cúpido. O poder que ele menciona é o domínio do gênero humano sobre a natureza. Bacon conjuga o poder com obediência, no sentido de agir conforme a natureza.[30]
O SISTEMA JURÍDICO ou CAÇANDO NA FLORESTA
Na época de Bacon, o sistema jurídico britânico era baseado no direito costumeiro e consuetudinário. Os casos passados, ou a jurisprudência, no início do século XVII, era organizada cronologicamente e registrada, em livros de Registros de Direitos e Livros do Ano. As decisões judiciais coletadas e registradas ao longo do tempo forneciam, coercitivamente, as bases decisórias para os julgamentos presentes e futuros. Um problema que se apresentava era que as várias cortes divergiam em seus registros, trazendo uma séria dificuldade para a aprendizagem e para a unificação de condutas das diferentes cortes. A questão da unificação de condutas era importante porque, com a união da Inglaterra com a Escócia, em 1603, novas questões jurídicas foram apresentadas, regras diferentes e às vezes até contraditórias deveriam ser conciliadas. Como Procurador Geral da Justiça, Bacon busca reformar e aprimorar o sistema jurídico, ordenando-o, aumentando-lhe a objetividade e transparência. Pode-se perceber a influência do Direito na experiência de Bacon, as atividades e projetos desenvolvidos por ele na área jurídica, forneceram-lhe o modelo para sua reformulação da experiência científica.
Oliveira escreve que a experiência baconiana tem seus aspectos melhor revelados na imagem do investigador como um caçador: “De fato, assim como certos alquimistas, Bacon expressa em alguns escritos a concepção da ciência como venatio (caça) e da natureza como uma floresta selvagem”[31]. Segundo Oliveira, o modelo jurídico, que Bacon transpôs para a sua reforma do conhecimento, possibilita uma compreensão da dimensão processual e experimental da experiência do tipo exploratório.
Bacon, em seu programa de reforma do conhecimento, utiliza várias metáforas judiciais. Também os elementos básicos da ciência baconiana são vinculados às práticas judiciais. Dentre estes podemos citar a idéia de construção de fatos e de mecanismos de tortura que forcem a natureza a falar. Para Bacon, a experiência jurídica com o levantamento de testemunhos na construção do processo judicial poderia ser transposta para os experimentos da ciência. O levantamento e a confrontação de testemunhos, advindos de depoimentos e/ou de interrogatórios, que podiam ser obtidos através de mecanismos de tortura, era um modo de forçar a natureza a falar, “torcer a cauda do leão”. Saliente-se que naquela época, em países como a França, as confissões derivadas da prática de tortura eram consideradas evidências maiores e admitidas como inteiramente confiáveis. Na Inglaterra, as declarações derivadas desse meio não eram consideradas como depoimentos verdadeiros, e sim como elementos que faziam parte da investigação porque reveladores de fatos componentes do processo; todavia, podiam ser investigados e analisados em conjunto com as demais partes do mesmo. Independentemente de sua posição quanto à legalidade e conveniência da tortura em processos jurídicos, Bacon acredita ser indispensável na investigação da natureza o constrangimento à força.
O estabelecimento de fatos, na área jurídica, refere-se à ação de coleta de indícios e provas capazes de tornar claro um acontecimento. É uma etapa do processo, segundo Oliveira, “para o qual são convocados testemunhos fidedignos, que em geral são bem mais importantes por sua qualidade do que pela quantidade”.[32] Nesta etapa, segundo ele, são necessárias estratégias de objetivação. A coleta, realizada com acuidade e imparcialidade, faz com que os fatos, corretamente estabelecidos, ganhem independência, objetividade e status de verdade. O que Oliveira denomina de estratégias de objetivação são as formas de descrição objetiva que estavam presentes tanto nos protocolos jurídicos como nos livros técnicos e dos livros de receitas renascentistas e cuja “padronização de termos, medidas e procedimentos facilitava a compreensão das experiências, sua reprodução e conseqüentemente o progressivo aprimoramento de artifícios e aparatos”.[33] As estratégias de objetivação tiveram início com o movimento de divulgação dos livros técnicos e dos livros de receitas renascentistas e se tornaram necessárias no sistema jurídico inglês, carente de organização, como visto anteriormente. Bacon concorda com tais estratégias e as vê como necessárias também para o progresso do conhecimento.
O MÉTODO INDUTIVO
Bacon propõe uma ordem diversa da usada no seu tempo para a constituição de axiomas, afirma ele que “a indução que precede por simples enumeração é uma coisa pueril, leva a conclusões precárias, expõe-se ao perigo de uma instância que o contradiga. Em geral conclui a partir de um número de fatos particulares muito menor que o necessário e que são também os de acesso mais fácil”.[34]
A primeira etapa do método proposto por Bacon é denominado “experientia literata”, ou experiência instruída, quando se procura direcionar e ordenar a experiência. Oliveira explica que, nessa etapa, se apresentavam os “procedimentos de aperfeiçoamento e invenção de novas técnicas que, embora já fossem utilizadas de forma inconsciente ou não deliberada, poderiam vir a ser melhor usados para o desenvolvimento tecnológico”[35], ou seja, nessa etapa ocorre o recolhimento, organização e consideração dos experimentos de todas as artes. Pode-se durante essa experiência, simplesmente transferindo os conhecimentos de uma arte para a outra, “chegar a muitas novas descobertas úteis à vida humana e às suas condições”.[36] Bacon adverte que tais resultados são de menor importância, o investigador não deve satisfazer-se somente com os resultados obtidos durante a experiência instruída, ele tem de avançar.
A segunda etapa consiste na organização e disposição dos resultados durante a experiência instruída em “tábuas e coordenações de instâncias”.[37] Uma primeira tábua é denominada “tábua de essência e de presença”, e consiste em “fazer uma citação perante o intelecto de todas as instâncias conhecidas que concordam com uma mesma natureza, mesmo que se encontrem em matérias dessemelhantes”.[38] Uma segunda tábua é denominada “tábua de desvio (ou declinação)” e consiste em “fazer uma citação perante o intelecto das instâncias privadas da natureza dada”.[39] Oliveira explica que se trata de “reunir os casos análogos aos da primeira tábua que correspondem sucessivamente a eles e que, em circunstâncias semelhantes, não se afiguram à característica estudada”.[40] A terceira tábua é denominada “Tábua de Graus ou de Comparação”, consiste em “fazer-se citações perante o intelecto das instâncias cuja natureza, quando investigada, está presente em mais ou menos, seja depois de ter feito comparação do aumento e da diminuição de um mesmo objeto, seja depois de ter feito comparação em objetos diversos”.[41]
Na terceira etapa do método de indução baconiano é realizada a “Primeira Vindima” e tem início a verdadeira indução. Explica Oliveira que, nas primeiras colheitas, “o método de exclusão desempenha um papel fundamental, servindo para eliminar algumas correlações acidentais entre os fatos”.[42] Eliminando-se o acidental, permanece o essencial, a primeira colheita. A primeira vindima apresenta as hipóteses que devem ser testadas experimentalmente, sendo “necessário passar aos outros auxílios do intelecto na interpretação da natureza, bem como à indução verdadeira e perfeita”.[43] Confirmando-se as hipóteses, o axioma é construído; a partir dele podemos deduzir particularidades e fazer predições. Assim sendo, o movimento na indução baconiana ascende do particular para o geral e depois descende até o particular: “Nosso caminho não é plano, há nele subidas e descidas. É primeiro ascendente, em direção aos axiomas, é descendente quando se volta para as obras.”[44]
Bacon afirmava que a aplicação de seu novo método deveria ser precedida necessariamente pela correção e abandono das ilusões e preconceitos presentes nas formas de conhecimento até então adotadas, chamadas por ele de “Ídolos”. Na teoria dos ídolos Bacon tenta analisar, classificar e tratar as fraquezas do intelecto e dos sentidos, que são, a seu ver, obstáculos ao conhecimento correto da natureza e à descoberta dos meios de tornar eficazes tais descobertas; ele enumera quatro ídolos: “ídolos do teatro”, relativos à tradição filosófica com suas regras como que irreais; “ídolos da tribo”, inerentes à própria natureza humana social; “ídolos da caverna”, referentes ao aspecto psicológico individual; “ídolos do mercado”, implicados na linguagem, na comunicação entre os homens[45]. Só com o reconhecimento dos ídolos e contenção dos seus efeitos sobre a ação do investigador seria possível adquirir um conhecimento útil da natureza
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Bacon fundamenta alguns dos paradigmas da idéia moderna de conhecimento que ainda persistem e servem de parâmetros para a educação: A idéia de que o conhecimento é algo que deve progredir; que a melhoria das nossas condições sociais está diretamente vinculada a este progresso do conhecimento; que este avanço deve estar centrado ma pesquisa científica e tecnológica; e que as figuras do investigador e do descobridor devem substituir a do mestre detentor do conhecimento pronto e acabado. Todavia, os historiadores não costumam considerar o papel de Bacon na formação da educação moderna nem suas propostas educacionais costumam ser abordadas na historiografia da ciência moderna.
Consequência da reforma do conhecimento, a reforma educacional baconiana tem seus pontos dispersos pelas suas principais obras. Oliveira conta que as obras que tratam prioritariamente da Educação, ou escritos educacionais, “tratam em geral da educação moral, na qual Bacon prega o decoro, a modéstia, a dignidade, a caridade e a prudência. Esta última em geral aparece conciliada com um realismo político e com o ponderado “saber viver”.[46] Em um desses escritos, In Praise of Knowledge, Bacon afirma que nas universidades encontravam-se grandes espíritos, mas que “não aprendem senão a crer: primeiro a crer que os outros conhecem coisas que na realidade desconhecem, e depois a crer que eles mesmos saibam coisas que de fato não sabem”.[47] Na obra The Advancement of Learning, Bacon desenvolve uma proposta de ensino que alia saberes das artes liberais com os das artes mecânicas a fim de promover o intercâmbio, reunião e difusão de informações, além de promover experimentos. Tais inovações, a seu ver, não eram incompatíveis com as universidades cuja resistência, ele acreditava, poderia ser vencida através do conhecimento e da autoridade do Rei para reformar as instituições existentes.
Ao invés do método magistral, que predispõe o estudante a seguir um padrão já sistematizado, Bacon propõe os aforismos, que, a seu ver, levariam o estudante, no processo de aprendizagem, a lutar para conectar as informações breves. O estilo aforístico não é novidade, já era utilizado pelos primeiros e antigos investigadores da verdade; conta Bacon que esses investigadores costumavam consignar em aforismos e “o saber que recolhiam da observação das coisas e que pretendiam preservar para uso posterior, e nunca simularam nem professoraram haver-se apoderado de toda a arte“.[48] Os aforismos também eram utilizados nas coleções de máximas legais. Outro método educativo divulgado por Bacon é a utilização da narrativa utópica tendo como ponto central as viagens de exploração. No entendimento de Bacon, “o conhecimento a ser apreendido não se encontra no passado, mas no futuro, ou seja, está para ser descoberto, colaborativa e progressivamente”.[49]
Oliveira informa que no escrito Filum labyrinthi, Bacon observa que o professor, por razões de “conveniências e demandas da vida civil”, “emite seu discurso na forma em que seja melhor acreditada, e não na que possa ser melhor examinada, ao passo que o aluno se preocupa mais com o não errar do que com o duvidar. Assim, “se glorifica mais um autor por não abrir sua fraqueza e fazer o discípulo, preguiçosamente, não conhecer sua força”. No prefácio do Novum Organon Bacon adverte que o caminho que ele propõe demanda calma e paciência e não é um caminho fácil a ser seguido cegamente. A proposta pedagógica de Bacon, assim como sua metodologia de investigação, explica Oliveira, “longe de ser o caminho seguro como foi muitas vezes entendida, demanda riscos e compromissos com o avanço do conhecimento”.[50]
O progresso do conhecimento é resultado do trabalho cooperativo de muitos, para o seu avanço, segundo Bacon, são necessários mecanismos de institucionalização da cooperação na descoberta e no uso dos conhecimentos. Ele acreditava que o Estado, na figura do Rei, era o único que poderia dar suporte e direção à instituição de educação-investigação, favorecendo e legitimando a cooperação entre os investigadores. A cooperação na experiência se encontra, explica Oliveira, “tanto na reorganização de práticas – investigação como um processo contínuo e fruto de diferentes atividades; e divisão de trabalho; objetivação na investigação; no discurso e criação de instituições – como também na redefinição do ideal de conhecimento, isto é, sua finalidade”.[51] O trabalho colaborativo pregado por Bacon não implica uma verdadeira nivelação, pois “pelo que se pode ver em Nova Atlântida, a divisão de trabalho baseia-se numa organização hierárquica na qual os esforços de muitos contribuintes possam ser coordenados e dirigidos. Traços de uma hierarquia rígida, burocrática e com concentração de poder podem ser entrevistos facilmente (…)”.[52]
Professora Coordenadora do Curso de Direito da UNYAHNA – BA, Mestre em Educação pela UFMT/IE Cuiabá – MT
Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo em 2004. Atualmente é professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso atendendo os Cursos de Pedagogia, Filosofia e Psicologia. É professor do Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto de Educação da UFMT.
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