Resumo: Aborda a controvérsia criada pela edição da Súmula 443 do Tribunal Superior do Trabalho referente à distribuição do ônus da prova no processo do trabalho em processos que envolvam a dispensa discriminatória em razão do empregado ser portador de HIV ou outra doença que cause estigma, analisando o instituto da inversão do ônus da prova e da prova dividida.
Palavras-Chaves: Discriminação. Ônus da Prova. Súmula 443 do TST.
Abstract: Addresses the controversy created by the issue of Precedent 443 of the Superior Labor Court concerning the distribution of the burden of proof in the labor process in cases involving discriminatory dismissal on grounds of employee be carrying HIV or another disease that causes stigma, analyzing the institute reversing the burden of proof and the proof divided.
Keywords: Discrimination. Burden of Proof. Precedent 443 of the Superior Labor.
Sumário: Introdução. 1 Discriminação, AIDS, Doenças Graves e os estigmas que suscitam. 2 Ônus da Prova e Dispensa Discriminatória. 3. As Dificuldades Processuais ao Empregador Criadas Pela Súmula 443 do TST: A Inversão do Ônus da Prova. 3.1. A Inversão do Ônus da Prova. 3.2. A Prova Dividida. Conclusão. Referências.
Introdução
Publicada em 27/09/2012, a Súmula 443 do Tribunal Superior do Trabalho – TST – consolidou entendimento jurisprudencial perfilhado pela referida Corte, no sentido de atribuir a pecha de discriminatória a dispensa imotivada dos trabalhadores portadores de HIV e outras doenças que causam estigmas ou preconceitos.
Os empregadores, em sentido contrário, questionam se a penalização advinda do entendimento jurisprudencial sumulado contraria o ônus probatório da causa da dispensa (em eventual reclamação trabalhista ajuizada), notadamente quanto a uma inversão do ônus probatório e à prova dividida, lhes atribuindo o dever de indenizar o período que o empregado ficou afastado do emprego.
Tem por finalidade este presente trabalho, portanto, analisar a Súmula 443 do TST, no que diz respeito ao ônus da prova, e face ao instituto da inversão do ônus da prova e da prova dividida.
1 Discriminação, AIDS, Doenças Graves e os estigmas que suscitam e Responsabilidade Civil.
A Organização Internacional do Trabalho – OIT – definiu no Artigo 1º, “a” e “b”, de sua Convenção nº 111, o que seria discriminação, nos seguintes dizeres:
“1. Para os fins desta Convenção, o termo ‘discriminação’ compreende:
a) toda distinção, exclusão ou preferência, com base em raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social, que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidade ou de tratamento no emprego ou profissão”;
b) qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidade ou tratamento no emprego ou profissão, conforme pode ser determinado pelo País-membro concernente, após consultar organizações representativas de empregadores e trabalhadores, se as houver, e outros organismos adequados"
Quanto às doenças crônicas[i], elas causam estigmas na exata medida em que, não raras vezes, diminuem a capacidade laborativa do empregado. Mesmo quando readaptado, muitas vezes, é possível que possam ser vistos pelos colegas e patrões como não aptos a acompanhar a dinâmica da atividade empresarial, passando a sofrer perseguições.
Ensina Denise Oliveira dos Santos que:
“Para os acometidos por doença crônica, que estão trabalhando, a discriminação por parte do empregador pode acontecer por este pensar que o trabalhador doente tem seu valor diminuído, por acreditar que ele não está doente de fato (comum nas moléstias psiquiátricas) ou, até mesmo, em forma de pressão para que o doente não suporte exercer suas funções e peça desligamento do emprego. (2012, 239)”
A discriminação por doenças no ambiente de trabalho é uma realidade, a qual é incompatível com o nosso ordenamento jurídico, que prima justamente pela Dignidade da Pessoa Humana e pelos Valores Sociais do Trabalho (Art. 1º, III e IV da Constituição Federal de 1988). Ressalte-se ainda que alberga a Carta Magna a clara proteção ao trabalho em seu artigo 170 (enquanto alicerce da ordem econômica) e artigo 193 (o primado do trabalho é a base da ordem social).
Sensível à dura realidade laboral, o legislador brasileiro, houve por bem editar a Lei 9.029/95, que assim preceitua em seu Artigo 1º:
“Art. 1º Fica proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso a relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade, ressalvadas, neste caso, as hipóteses de proteção ao menor previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.”
Em que pese não haver expressa menção à dispensa ao portador de doença crônica ou estigmatizante, entende a doutrina que estariam elas enquadradas no rol acima apontado (DOS SANTOS, 2012, p. 242), o que é bastante razoável, face à aplicação do Artigo 8º da CLT.
Especificamente quanto à ruptura da relação de trabalho, dispôs a referida lei em seu artigo 4º que, além da reparação por danos morais, faculta-se ao empregado optar entre a readmissão com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente, acrescidas dos juros legais ou a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e acrescida dos juros legais.
Ressalta-se a previsão do Artigo 496 da CLT, que prevê que o magistrado determinará a indenização do período de estabilidade quando a reintegração for desaconselhável, que pode ser analogicamente aplicado a dispensa discriminatória.
O que a Lei 9.029/95 fez foi delimitar precisamente a extensão do dano a ser suportado pelo empregador-discriminador, pelo menos quanto aos danos materiais, sob a espécie de danos emergentes e lucros cessantes. Como sabemos, ele se trata de um dos elementos para a reparação civil. Segundo o Artigo 186 e 927 do Código Civil, para que reste plenamente configurado o dever de indenizar, devem ser provados, além do dano, o ato ilícito e o nexo causal.
2 Ônus da Prova e Dispensa Discriminatória.
Constatada a dispensa por ato discriminatório, faz jus o empregado ou à reintegração ou à indenização do período de afastamento, sem prejuízo de danos morais. Tais reparações, na prática, só acontecem após a intervenção do Poder Judiciário, provocado mediante Reclamação Trabalhista, sujeita às regras da distribuição do ônus da prova.
Para Mauro Schiavi, o ônus da prova é um dever processual, cabendo ao autor provar o fato que constitui seu direito e ao réu os fatos modificativos, extintivos e impeditivos de tais direito. Caso pereça em seu ônus, a parte que o detinha termina por gerar uma situação desfavorável para si e favorável à parte contrária (2010, p. 50)
Isso porque, sem a prova da (in)existência de determinado fato, não pode o magistrado exarar nenhuma motivação que reconheça determinado direito, ante a falta de elemento razoavelmente suficiente para convencê-lo (MARTINS, 2010, p.314), até mesmo sob pena de nulidade da sentença (Art. 93, IX, da Constituição Federal).
Isso porque as regras do ônus probatório, enquanto regras de juízo, ou seja, de julgamento, orientam o juiz quando da prolação da sentença, julgando contrariamente a quem deixou de fazer prova sobre determinado fato (DIDIER JR, 2011, p. 81)
Ganha relevo, dessa forma, a seguinte indagação: a quem compete provar que houve discriminação pelo motivo da doença que causa estigma? De acordo com o artigo 818 da CLT, e com as considerações acima, “incumbe à parte que as fizer”. Caberia, em princípio, ao empregado provar que fora vítima de discriminação, tendo, dessa forma, que provar o ato ilícito e o nexo causal.
Ocorre que o TST, consolidando entendimento jurisprudencial por ele perfilhado, editou a súmula 443, que prescreve que a dispensa sem justa causa do trabalhador portador de HIV ou de doença que cause estigma presume-se discriminatória, cabendo ao empregador prova em contrário. Trata-se, portanto, de presunção relativa.
O que a súmula faz, na prática, embora não mencione, é a inversão do ônus da prova em favor do empregado.
3 As Dificuldades Processuais ao Empregador Criadas Causada Pela Súmula 443 do TST: A Inversão do Ônus da Prova e a Prova Dividida.
3.1. A Inversão do Ônus da Prova.
Como se sabe, em nosso ordenamento jurídico a inversão do ônus da prova foi positivada no Artigo 6º, VIII, da Lei 8.078/90. Para aplicação no processo do trabalho, são necessários requisitos para a sua aplicação, tais como a faculdade oferecida ao juiz, a hipossuficiência da parte e a verossimilhança da alegação (SCHIAVI, 2010, p. 57).
Explicando o procedimento para inversão do ônus da prova, ensina Rizzato Nunes, em sintonia com a doutrina majoritária, que presente apenas um desses requisitos, é cabível a inversão do ônus probatório (2011, p. 841).
Prossegue explicando que, para a constatação da verossimilhança, é necessário observar as regras ordinárias de experiência, tal qual estabelecido no inciso VIII do Artigo 6º do CDC.
Acertadamente, ensina o professor Fredie Didier que a inversão do ônus da prova dá vazão ao princípio constitucional da isonomia, na medida em que trata desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades (2011, p. 85).
Quanto ao momento da inversão do ônus probandi, aponta a doutrina majoritária que é mais indicado e correto que o magistrado o faça antes de prolatar a sentença, a fim de evitar surpresas à parte que teve contra si invertidos os encargos e, dessa forma, manter incólume o Princípio do Devido Processo (DIDIER JR, 2011, p. 88).
Não se nega, é verdade, que o Direito Processual do Trabalho carrega em seu bojo a proteção ao hipossuficiente conferida pelo Direito Material Trabalhista. E isso é tão justo quanto racional. O Princípio da Proteção processual visa justamente compensar a desigualdade existente entre os membros da relação de emprego, também sob o ponto de vista processual.
Tal Princípio já possui vasta aplicação em nosso ordenamento, como bem observa Wagner Giglio:
“Embora muitas outras fossem necessárias, algumas normas processuais de proteção ao trabalhador já existem, a comprovar o princípio protecionista. Assim, a gratuidade do processo, com isenção de pagamento de custas e despesas, aproveita aos trabalhadores, mas não aos patrões; a assistência judiciária gratuita é fornecida ao empregado, mas não ao empregador; a inversão do ônus da prova por meio de presunções favorece o trabalhador, nunca ou raramente ao empregador; (2000, p.67) “
A inversão do ônus da prova quanto a algumas questões laborais já é consagrada em nosso ordenamento. Como exemplo, tem-se a súmula 212 do TST, que atribui ao empregador o dever de provar a causa da ruptura do contrato de trabalho, quando ele nega que despediu o empregado, face ao Princípio da Continuidade da Relação de emprego.
Não se pode esquecer, a bem da verdade, que o trabalhador que sofre discriminação é reconhecidamente hipossuficiente para provar suas alegações, sendo a prova testemunhal uma das poucas modalidades probantes que possui, a qual, nem sempre, termina por ser apta a provar seus fatos, vez que é comum a discriminação ocorrer de forma velada e em momentos pontuais.
Ocorre que a aplicação da referida súmula termina por não levar em consideração aspectos casuísticos, especificidades que por ventura existam em determinada relação de emprego, colocando todos os casos de reclamações trabalhistas que versem sobre dispensa discriminatória numa “vala comum”. Noutras palavras, criou o TST uma generalizada situação de inversão do ônus da prova.
No que diz respeito à súmula 443 do TST, todos esses requisitos já estariam automaticamente preenchidos quando se estivesse diante de uma dispensa sem justa causa de uma pessoa portadora de doença que causa estigma.
Uma grande dificuldade trazida pela súmula diz respeito à defesa processual do empregador, na exata medida em que se lhe dificulta provar que não conhecia o estado de saúde do empregado.
O Artigo 2º da Portaria nº 1.246/2010 do Ministério do Trabalho e Emprego veda a realização de exames admissionais, periódicos ou demissionais para verificação de HIV nos empregados.
Portanto, a menos que o obreiro informe o empregador, este jamais ficará sabendo de tal condição. À evidência a dificuldade de fazer a prova negativa do fato de que não conhecida a doença.
Outrossim, provar que não discriminava seu empregado é justamente fazer prova de fato negativo, o que, pela Clássica Teoria da Prova, é inadmissível.
É importante a ressalva feita por Carlos Henrique Bezerra Leite de que, segundo a moderna doutrina, em verdade, a toda negação corresponde uma afirmação, pelo que estaria superada a impossibilidade da prova do fato negativo. Usando o mesmo exemplo que o renomado autor, “ao alegar o empregador que não dispensou o empregado sem justa causa (negação do fato), estará aquele alegando, implicitamente (afirmação), que este abandonou o emprego ou se demitiu” (2010, p. 614)
Com efeito, seguindo este raciocínio, se o empregador nega ter discriminado, é porque teve conduta diferente da discriminação: sabia da condição, mas tratou igualmente o empregado ou, simplesmente, ignorava a doença.
Ocorre que, ainda assim, caso consiga provar uma dessas condições, se também o reclamante lograr êxito em provar o fato constitutivo de seu direito, em novos apuros estará o empregador.
3.2. A Prova Dividida.
Hipótese que pode claramente surgir em eventual reclamação trabalhista que verse sobre o tema é de ambas as partes produzirem provas de suas alegações. Desincumbindo-se de seus ônus, haverá o empate de prova, tecnicamente chamado de prova dividida.
Bastante elucidativo a ementa de acórdão prolatado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região sobre o que é a prova dividida e suas implicações processuais abaixo transcrito:
“PROVA DIVIDIDA. JULGAMENTO PELO ÔNUS DA PROVA. Havendo prova dividida e não se podendo, do conjunto probatório, decidir pela melhor prova produzida, já que, no caso, ambas se equivalem, julga-se contra quem tinha o ônus de provar e não provou.(TRT da 2ª Região – Recurso Ordinário 00008405920125020373 – Relator: SORAYA GALASSI LAMBERT – Data de Julgamento: 28/11/2013 – 17ª TURMA – Data de Publicação: 04/12/2013)”
Nesses casos, perecerá aquela parte a quem cabia a prova sobre o fato.
Ora, no caso da súmula 443 do TST, havendo prova dividida, mesmo provando que não houve dispensa discriminatória, será o empregador condenado à reparação civil, pois possuía o ônus de provar justamente o contrário.
O que se vê, portanto, é que o TST terminou por criar tormentosa regra processual, dificultando sobremaneira a demonstração de inexistência de discriminação sofrida pelo empregado em razão de HIV ou de doença que causa estigma.
Melhor dicção e aplicabilidade teria se o TST houvesse estipulado que, ante a presença de indícios de dispensa discriminatória, melhor dizendo, havendo fundada verossimilhança, ou ainda, entendendo o juiz, ante a casuística, pela patente hipossuficiência do reclamante, seria devida a inversão do ônus da prova.
Conclusão
Sendo a discriminação no ambiente de trabalho uma amarga realidade, deve ela ser combatida diuturnamente, punindo severamente atos que contrariem a dignidade da relação de emprego.
Contudo, em que pese a preocupação em atender aos Fundamentos Constitucionais de Dignidade da Pessoa e dos Valores Sociais do Trabalho, o que fez a súmula 443 do TST foi criar uma hipótese generalizda de inversão do ônus da prova, dificultando sobremaneira a defesa processual do empregador em reclamação trabalhista que verse sobre a matéria.
Buscando compatibilizar o aspecto processual do princípio da proteção com o devido processo legal, no que tange à distribuição do ônus da prova e a sua possível inversão, a súmula deveria, em verdade, estabelecer que, em havendo indícios de discriminação, autorizar-se-ia a inversão do ônus da prova.
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Especialização em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho em andamento. Advogado Trabalhista
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