Resumo: a proposta do presente trabalho é apresentar uma visão crítica à denominada constitucionalização do direito privado, que busca aplicar as regras e princípios constitucionais na solução de controvérsias privadas.
Palavras-chave: direito privado; bem de família; penhora
Sumário: 1) as origens da constitucionalização do direito privado; 2) Um caso para análise: o entendimento do STJ acerca da renúncia ao benefício do bem de família; 3) Referências bibliográficas.
1) as origens da constitucionalização do direito privado
1. Inicialmente impõe-se analisar qual a origem da denominada “constitucionalização do direito privado”. Para tanto, precisamos remontar ao direito italiano.
2. A Itália teve seu primeiro código civil em 1865[1], antes mesmo da edição do código civil alemão. Contudo, já a partir de 1906 teve início um movimento pela elaboração de um novo código, com a nomeação de uma comissão revisora. Após a edição da lei 2814, de 30.12.1923, tal movimento toma força na Itália. O novel diploma foi promulgado em partes[2]: a primeira, através do Real Decreto 1852, de 12.12.1938, sobre a aplicação da lei em geral; em 1939 sai o livro das sucessões; em 1941, o da propriedade e das obrigações, sendo que este último somente entrou em vigor em 1942 – ano que ficou marcado oficialmente como o da vigência do novo código.
3. O ainda vigente Código Civil Italiano foi editado em pleno regime facista [3]. A ideologia que o norteava visava a superação do individualismo típico dos códigos derivados do código francês em favor de um alegado interesse social.
4. Acerca do Código Civil Italiano de 1942 afirma Alessandro Somma [4] que:
“Conforme a la óptica descrita, la desvalorización de los intereses individuales constituye, evidentemente, el rasgo característico de la experiencia nacionalsocialista. Esta última identifica la lucha conta la ideologia liberar como un paso obligado en la reconstrucción de un ordenamiento fundado en los deberes del individuo y en el privilegio de las prerrogativas que corresponden al grupo. (…)
Nacionalistas y fascistas se unen en la lucha contra aquellos valores que son considerados expresión del pensamiento juridico de tinte liberal. también en la literatura italiana se critica la estructura individualista del sistema privatista, herdada del pasado y se atacan las codificaciones del derecho civil que tenían en la mira, especialmente, el reconocimiento de intereses individuales, al tiempo que dejaba de lado na consideración de los derechos del trabajo entendido como función social, así como las finalidades colectivas que el intercambio de bienes tambié tiene.”
5. Assim Pietro Perlingieri [5] descreve as características básicas do código civil italiano:
“O interesse do legislador é reforçar o Estado, aumentar a produtividade até fazer do produtivismo a característica precípua do ordenamento. Abandonada a estrada do liberalismo econômico e das construções individualistas, a ênfase é colocada sobre a solidariedade econômica e sobre o interesse superior da nação, considerados os parâmetros mais seguros do merecimento de tutela jurídica dos institutos de direito civil, particularmente na matéria de autonomia negocial e de situações patrimoniais, e entre estas, principalmente a propriedade privada e a empresa.”
6. Mesmo a proteção do contratante economicamente mais fraco – assunto tão em moda nas discussões jurídicas atuais – não fugiu ao nacional-socialismo. Entende-se que “la predominancia del ordenaminento sobre el contrato constituye una mera demonstración del poder del grupo sobre el individuo.” [6] Com isto justifica-se a intervenção estatal nas relações contratuais.
7. Acontece que com o fim da Segunda Guerra e a derrocada dos sistemas nacionais-socialistas houve a redemocratização do estado italiano, que teve seu ápice na edição da constituição de 1946.
8. Não obstante a entrada em vigor de uma constituição de cunho claramente democrático, permaneceu em vigor aquele mesmo Código Civil de 1942. Os poucos anos que separavam a constituição do código civil não impediram que se instaurasse um fosso entre os valores defendidos por tais normas. A partir de então a doutrina italiana passa a defender que a aplicação do Código Civil deve ter em vista os valores inscritos na constituição ou, usando uma expressão de uso corrente no Brasil, a “tábua axiológica” do direito civil deve se inspirar nos valores constitucionais.
9. Este é o motivo da construção doutrinária da tese da constitucionalização do direito civil. A respeito deste momento, afirma Pietro Perlingieri [7] que
“O nosso ordenamento é constituído também por leis e códigos que são expressão de uma ideologia e de uma visão do mundo diversa daquelas que caracterizam tanto a sociedade atual quanto a Constituição republicana. A questão da aplicabilidade das leis formadas na presença de valores diversos (o Código Civil de 1942 pertencia ao ordenamento fascista) resolve-se somente com a consciência de que o ordenamento é unitário. A solução a cada controvérsia deve ser dada não somente levando em consideração o artigo de lei que parece contê-la e resolvê-la, mas à luz de todo o ordenamento, em particular dos seus princípios fundamentais, como escolhas de fundo que o caracterizam.”
10. Como se observa, a “constitucionalização do direito civil” é uma construção italiana para solucionar um problema específico e pontual do ordenamento jurídico italiano.
11. Feita esta breve introdução histórica, fica a pergunta: tal construção doutrinária faz sentido no direito brasileiro ? Teria o nosso Código Civil de 1916 “abandonado a estrada do liberalismo econômico e das construções individualistas”, para usar a expressão de Pietro Perlingieri ? Haveria um choque de valores entre nossa legislação civil – seja o código civil de 1916, seja o de 2002 – e a constitucional ?
12. Entendemos que não. Faça-se a crítica que for ao Código Civil de 1916, mas não se diga que não se trata de uma legislação liberal. A previsão das hipóteses de dirigismo contratual eram mínimas e o direito de propriedade assegurado de forma plena. O fascismo deixou raríssimas marcas no Brasil (em que pese ter a CLT certa visão fascista do Estado). O Código Civil de 1916 foi ampla e democarticamente discutido com a sociedade. Vários juristas, orgãos de classe (como o IAB) e faculdades de direito tiveram a oportunidade de discutir os seus dispositivos. Tamanha era a apreensão pela demora na sua edição [8] que as pautas das reuniões das comissões de revisão chegaram a ser acompanhadas pelos jornais da época.
13. Não obstante, a partir da edição da Constituição de 1988, e de forma crescente, a denominada constitucionalização do direito privado tomou vulto no Brasil. Diversos entendimentos, alguns claramente contra legis, foram adotados em prol de uma denominada supremacia dos valores constitucionais. É interessante observar que o discurso aqui criticado adota em diversos momentos uma perspectiva de solidariedade econômica em desfavor dos interesses individuais, repetindo as teses sustentadas pelo facismo italiano….
14. É chegado o momento de uma análise crítica de tais entendimento, lembrando que o exagero na aplicação das normas constitucionais pode conduzir a uma “‘’sobreconstitucionalización’ del derecho privado, que termina por despojar de toda relevancia e interés la existencia de un orden jurídico escalonado”. [9]
2) Um caso para análise: o entendimento do STJ acerca da renúncia ao benefício do bem de família.
15. Vejamos o entendimento do Eg. STJ acerca da renúncia ao benefício do bem de família instituído pela Lei 8009/90. Entende o STJ que tal tal benefício tem natureza indisponível, eis que a Lei 8009/90 tutelaria a entidade familiar, protegida pela Constituição. Sendo indisponível, o STJ não admite que o devedor voluntariamente indique o referido bem à penhora. Neste sentido é a seguinte decisão:
“Não perde o benefício da impenhorabilidade quem indica bem de família à penhora, pois a proteção da Lei 8.009/90 não tem por alvo o devedor, mas a entidade familiar, que goza de amparo especial da Carta Magna”. (AgRg no Ag 426.422/PR, Rel. Ministro PAULO FURTADO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/BA), TERCEIRA TURMA, julgado em 27/10/2009, DJe 12/11/2009)
16. Diversas outras decisões confirmam tal entendimento, citando genericamente uma “ordem pública” [10] ou tratar-se de uma “norma cogente” [11]. Segundo o STJ, o próprio devedor que indicou o bem à penhora teria legitimidade para suscitar a nulidade do ato[12].
17. Da mesma forma, o STJ afirma – invocando também o princípio da dignidade da pessoa humana – a nulidade da indicação voluntária de bens declarados como indisponíveis pelo art. 649 do CPC. Neste sentido, vejamos a seguinte decisão:
“Inobstante a indicação do bem pelo próprio devedor, não há que se falar em renúncia ao benefício de impenhorabilidade absoluta, constante do artigo 649 do CPC. A ratio essendi do artigo 649 do CPC decorre da necessidade de proteção a certos valores universais considerados de maior importância, quais sejam o Direito à vida, ao trabalho, à sobrevivência, à proteção à família. Trata-se de defesa de direito fundamental da pessoa humana, insculpida em norma infraconstitucional.
Há que ser reconhecida nulidade absoluta da penhora quando esta recai sobre bens absolutamente impenhoráveis. Cuida-se de matéria de ordem pública, cabendo ao magistrado, de ofício, resguardar o comando insculpido no artigo 649 do CPC. Tratando-se de norma cogente que contém princípio de ordem pública, sua inobservância gera nulidade absoluta consoante a jurisprudência assente neste STJ.” (REsp 864.962/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/02/2010, DJe 18/02/2010)
18. O entendimento, com a devida vênia, está equivocado. Vejamos as razões.
19. Nada impede que qualquer devedor se desfaça do seu patrimônio para pagar o que deve. Mais ainda, podemos afirmar que é isto que se espera de um devedor de boa-fé: que ele, voluntariamente, antes mesmo da propositura de qualquer ação de cobrança, aliene seus bens para ter recursos para arcar com suas obrigações.
20. Por outro lado, também nada impede que um devedor contraia um empréstimo bancário para poder pagar suas dívidas, oferecendo ao banco uma garantia hipotecária para tanto – e, ainda que tal hipoteca recaia sobre bem de família, nos termos do inciso V do art. 3º da Lei 8009/90, ela será válida e eficaz. Tal como na situação anterior, tal devedor somente poderia ter seu comportamento elogiado.
21. Pois bem, em que consiste a penhora? Trata-se, grosso modo, da indicação (pelo devedor ou pelo credor, tanto faz) de um bem (em regra) do devedor que será alienado para satisfazer o credor. Ora, se o devedor pode voluntariamente alienar seu bem para pagar o que deve, porque não poderia ele pedir ao juiz que aliene este mesmo bem para pagar ao credor? Se o STJ entende que tal possibilidade de indicação voluntária à penhora é nula por envolver direito indisponível, fruto da tutela dos valores constitucionais do direito à moradia, defesa da família ou dignidade da pessoa humana, pela mesma razão deveria declarar como nula toda alienação feita por qualquer um do seu único bem imóvel. Teríamos aí, então, uma situação por demais absurda: antes de comprar um imóvel, mesmo depois de todas as certidões de praxe, teria o comprador que verificar se não se trata do único imóvel do vendedor.
22. Mais ainda: como a garantia instituída pela Lei 8009/90 alcança “todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis, que guarnecem a casa”, a simples compra de uma televisão [13] de um particular tornar-se-ia um contrato de risco. Como saber se o vendedor da televisão não estaria se desfazendo do seu único aparelho, colocando em grave ameaça a dignidade da sua pessoa humana e a proteção da família?
23. Teria a Constituição de 1988 a intenção de tolher dos indivíduos o direito de livremente dispor do seu patrimônio? É pouco provável que alguém afirme isto de forma direta, mas é isto que se lê nas entrelinhas do entendimento do Eg. STJ. Entendimentos como este apenas agravam os custos de transação na já ineficiente economia brasileira. A segurança jurídica, um dos valores primordiais de qualquer ordenamento, fica também gravemente comprometida.
24. Lamentavelmente, há aqui uma conjunção de dois problemas típicos dos juristas brasileiros: a) a nossa propensão a modismos e inovações, mais ainda quando tais novidades são trazidas do exterior; e b) a tendência a sempre defender o devedor e demonizar o credor (como se este também não tivesse a necessidade da tutela da diginidade da pessoa humana). Não custa lembrar que credores não são apenas os bancos…. Há inúmeros idosos e doentes nas filas dos precatórios dos estados e municípios brasileiros – em boa parte inadimplementes há anos – e nenhuma voz se levanta no Judiciário em defesa da dignidade humana de tais pessoas….
25. E os bancos? A solução para eles é simples. A instituição financeira que não recebe os créditos a que tem direito precifica este custo, o transforma em um risco e passa a cobrá-lo dos demais devedores (inclusive os adimplementes). Assim, o adimplemente paga por ele e pelos inadimplentes. Como dito, é simples.
Advogado, especialista em Direito Privado e em Direito Empresarial, Mestre e Doutor em Direito. Procurador do Banco Central
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