Resumo: Abordar-se-á neste artigo o personagem “Robinson Crusoé” do escritor inglês Daniel Defoe, decupando o seu significado para o Direito.
Abstract: One will approach in this article the personage “Robinson Crusoé” of the english writer Daniel Defoe, analyzing it’s meaning for the Right.
Palavras-chave: Literatura. Robinson Crusoé. Direito.
Sumário: 1. Intróito; 2. Resumo da história; 3. Idéias gerais; 4. Direito econômico; 5. Ubi societas ibi ius; 6. Conclusão; Bibliografia.
1. INTRÓITO.
Transcorridos mais de duzentos anos após a sua primeira edição, “As Aventuras de Robinson Crusoé”, personagem fictício do romance do escritor inglês Daniel Defoe (1660 ou 1661 – 1731), tornou-se um clássico da literatura mundial encantando leitores de vários países a diversas gerações.
Contudo, essa obra literária também já foi (e continua sendo) usada por ilustres filósofos e doutrinadores para explicar aspectos jurídicos, econômicos e políticos da sociedade.
Assim, através de “Robinson Crusoé”, Defoe foi reconhecido mundialmente e citado por inúmeros filósofos, desde Rousseau até Goethe.
De fato, existem três obras sobre a mesma aventura; a primeira, publicada em 1719, intitula-se “The life and strange surprising adventures of Robinson Crusoe”; a segunda, publicada no mesmo ano, denomina-se “The Farther adventures of Robinson Crusoe”; por fim, mas não menos importante, “The serious reflections during the life of Robinson Crusoe”, datada de 1720.
Isto posto, destina-se o presente artigo jurídico a realizar uma perfunctória análise do significado de “Robinson Crusoé”’ para o Direito.
2. RESUMO DA HISTÓRIA.
O ponto de partida da aventura do herói ocorre com a negação de sua estabilidade social e financeira, não aceitando a proteção paterna. Assim, Robinson Crusoé era um jovem que se rebelando contra a vida pacata, metódica e rotineira da classe média de York, Inglaterra, decide fugir de casa e se tornar marinheiro. Em uma de suas viagens uma tempestade faz o navio onde estava abordo naufragar. Único sobrevivente da tragédia, Crusoé logra chegar a uma ilha deserta, nela permanecendo por quase três décadas As ferramentas, cordas, tábuas e outros utensílios que retira do navio o ajudam a enfrentar o desamparo e a solidão. Enquanto se mete em diversas peripécias e supera inúmeras dificuldades e privações, acaba ficando meditabundo acerca de valores humanos e religiosos. Em decorrência disso, Robinson se encontra em freqüente conflito entre as reflexões morais e religiosas e a sua prudência que o leva a optar por comportamentos que gerem vantagens econômicas (v.g.: quando o capitão português lhe propõe a compra de seu criado Xuri).
Após vinte e cinco anos de solidão na ilha, termina por surpreendentemente salvar a vida de um nativo selvagem fugitivo que iria ser sacrificado por um grupo de canibais vindo do continente, decidindo chamá-lo “Sexta-Feira” numa alusão ao dia da semana em que o encontrou. Em face disso, Crusoé ensina o índio a falar seu idioma, procurando lhe transmitir seus valores éticos e religiosos e, ao retornar à Inglaterra, leva-o consigo. Depois de recuperar sua fortuna, contrai matrimônio e constitui família. Ao enviuvar, já um homem sexagenário, revisita a aludida ilha, onde havia deixado três amotinados do navio que o resgatara e alguns espanhóis que naufragaram perto do local, encerrando o relato falando da possibilidade de registrar novas aventuras.
3. IDÉIAS GERAIS.
O sucesso de “Robinson Crusoé” faz com que suas peripécias e agruras fiquem conhecidas como as famosas “robinsonadas”, sendo elas o meio pertinente de divulgar as idéias contidas no romance, por exemplo, a necessidade de uma lei moral, a justificativa da organização civil, etc.
Eis, pois, em linhas gerais, algumas das idéias centrais tratadas na obra em tela:
· As “robinsonadas” simbolizam a ascensão do individualismo na sociedade moderna;
· Robinson Crusoé retrata, ilustra e exemplifica o pensamento lockeano, uma vez que o personagem principal se encontra em estado natural e, na contingência de produzir sua sobrevivência, seu trabalho vai expandindo suas posses até ele se sentir dono de toda a ilha. Para John Locke, a propriedade é um direito natural e fruto do trabalho, portanto, para evitar a ameaça ao gozo da propriedade, das liberdades e da igualdade, o homem obriga-se a abandonar o estado natural e criar a sociedade política, através do pacto social;
· Em diversas ocasiões, o contrato está presente, a forma possível de relação entre os indivíduos, como um tipo de salvaguarda, dado que se sustenta em leis civis e não mais na subserviência a soberanos (v.g.: quando deixa as terras do Brasil para seus vizinhos administrarem, quando realiza a colonização de sua ilha)[1];
· A superação do estado natural vai ocorrendo gradativamente por meio da conquista e da dominação dos elementos da natureza, pelo trabalho e pelo conhecimento técnico-cultural;
· A dominação do meio natural possibilita a Crusoé realizar a negação do estado natural, que ele completa através de uma regeneração, por intermédio dos princípios morais derivados de suas reflexões;
· Enquanto “sua” ilha esteve no estágio predominantemente não civilizado, mas natural, apesar de toda a luta travada por Crusoé pela dominação da natureza e do selvagem, a relação social encetada foi escravista. No momento, porém, que retorna à ilha com o fulcro de a colonizar, o faz ao modo do regime capitalista, inaugurando a propriedade privada e criando uma sociedade civil (de classes);
· O autor age, igual a Locke e Rousseau, identificando o novo estado – a sociedade civil, em contraposição ao estado natural – à sociedade capitalista;
· A hegemonia do contrato é ressaltada na obra, porque a grande parte das relações de Robinson com outros civilizados se faz contratualmente;
· Além da hegemonia, há o respeito ao que estabelece o contrato – “Pacta Sunt Servanda” (v.g.: quando Robinson nega o pagamento pelo camelo não recebido, vê-se obrigado a cumprir o trato inicial).
· Por fim, em suma, outras idéias abordadas são: a defesa do protestantismo religioso, do regime capitalista, da figura burguesa do “selfmade man” e do Estado político como poder supremo e mediador, em oposição e contrariedade às formas diretas de exercício do poder como no absolutismo e no escravismo (pelos quais o próprio personagem passara na trama).
4. DIREITO ECONÔMICO.
Em percuciente artigo intitulado “Afinal, o que é o Mercado ?”, o professor Pós-Doutor em Direito Econômico Jairo Saddi assevera que:
“Uma das idéias centrais do Direito Econômico é a disciplina dos mercados. Mas afinal o que é mercado? O mercado é uma instituição na qual agentes realizam as trocas econômicas. Não há economia sem direito e sem trocas. No clássico As Aventuras de Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, o náufrago que consegue se salvar em uma ilha deserta tem necessidades básicas de consumo como qualquer um. Como lá não existe um mercado – ou pelo menos uma estrutura econômica ou jurídica digna desse nome – não há com quem trocar nem tampouco quaisquer trocas. Só quando chega Sexta-Feira, o outro náufrago, é que tem início um verdadeiro processo econômico, com a produção de excedentes. Existem produtos excedentes porque as personagens não conseguem consumir tudo o que produzem; os alimentos estragam com facilidade e não servem para mais nada. Uma vez que as necessidades básicas já tenham sido preenchidas, outras surgem. Daí é que decorreria o desenvolvimento da primeira noção de cultura econômica: as trocas dentro do próprio grupo ou com outros grupos com quem o primeiro entrasse em contato. São as trocas dos excedentes que passam a viabilizar o mercado. Se Sexta-Feira não existisse, Robinson Crusoe (sic) não teria com quem trocar o excesso de sua produção”.
Na História da humanidade, o escambo (permuta pura e simples) se constituiu na primeira forma de troca. Contudo, a troca entre elementos distintos trazia a problemática da divisibilidade em pequenas unidades. Desse modo, a moeda exsurgiu na qualidade de um facilitador comum, um meio de pagamento para facilitar a circulação de riquezas partindo de uma prévia atribuição de riquezas.
Nesse sentido, Natalino Irti define o mercado como “uma instituição humana na qual é o Direito que constitui e rege as suas disciplinas, mas é a economia que as juridifica”.
Como se vê, o mercado torna o sistema econômico mais eficiente e assegura a ordenação das trocas econômicas através da moeda.
5. UBI SOCIETAS IBI IUS.
Em frase célebre, John Donne defendia que “nenhum homem é uma ilha” (“no man is an island”). Queria dizer que o ser humano não consegue viver isoladamente, precisando uns dos outros para sobreviver.
Nesse contexto, o Direito é a ciência das normas que regulam as relações entre os indivíduos na sociedade.
Nesse sentido, no artigo “A importância do Direito em nossas vidas”, Edson Luiz Cogo, Coordenador do Curso de Direito da UCP, pondera que:
“Todas as nossas ações diárias são reguladas pelo Direito. A maioria têm previsão legal, ou seja, encontram-se elencadas em um Código. Se assim não fosse, viveríamos em uma anarquia, onde cada um faz o que bem entender. O Direito existe para regular nossas vidas para que sejamos mais felizes. Lembre-se da história de Robinson Crusoé, que após o naufrágio de seu navio, vivia tranqüilo e sossegado na ilha, porém, quando apareceu o amistoso índio Sexta-Feira, tudo mudou. Passaram a ter regras entre eles. Conhecer os nossos direitos é importante, mas também é importante respeitarmos o direito alheio, como já dizia Ulpiano em seu Digesto, o Direito é a forma justa de dar a cada um o que é seu”.
É o mesmo ensinamento que Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco apregoam no livro “Teoria Geral do Processo”, in verbis:
“No atual estágio dos conhecimentos científicos sobre o direito, é predominante o entendimento de que não há sociedade sem direito: ubi societas ibi jus. Mas ainda os autores que sustentam ter o homem vivido uma fase evolutiva pré-jurídica formam ao lado dos demais para, sem divergência, reconhecerem que ubi jus ibi societas; não haveria, pois, lugar para o direito, na ilha do solitário Robison Crusoé, antes da chagada do índio Sexta-Feira”[2].
Nesse diapasão, também é o escólio de José de Aguiar Dias ao tratar do tema da necessidade do direito para o convívio social pacífico:
“Seja dom dos deuses, seja criação dos homens, o direito tem como explicação e objetivo o equilíbrio, a harmonia social. Estivesse o homem sozinho no mundo, como seu primeiro habitante ou seu último sobrevivente, e não haveria necessidade de direito, por ausência de possibilidade de interpretação e conflito de interesses, cuja repercussão na ordem social impõe a regulação jurídica, tendente à pacificação ou, pelo menos, à contenção desses conflitos” [3].
Destarte, o Direito, ao lado de outras ciências, mesmo sob um prisma diferente – o da normatização de regras de conduta – tem como objeto de conhecimento a sociedade.
Todavia, o Direito transcende conceitos herméticos, pois consiste em mais que um mero conjunto de normas coercitivas de condutas; sendo mais que um instrumento pacificador de conflitos sociais ou de controle social, porque por determinado viés ideológico representa igualmente um discurso de poder.
Foi justamente sob essa ótica de poder que Karl Marx desenvolveu uma tese na qual o Direito, na qualidade de conduta coercitiva, encontra sua origem na ideologia da classe dominante, que é precisamente a classe burguesa. Demonstrando que a relação entre capital e trabalho, bem como a luta de classes, é uma eterna “Eris” (a deusa da discórdia), Marx afirmava que existe uma ingerência extraordinariamente forte do poder econômico sobre o Direito, atingindo também a cultura, a história e as relações sociais; sendo o Direito um instrumento de dominação e opressão da classe dominante burguesa sobre o proletariado. Não obstante, essa é uma discussão que já foge do objeto de alcance supra delimitado desse artigo.
6. CONCLUSÃO.
O criador de Robinson Crusoé pertence a uma época na qual começavam a se delinear os contornos do mundo moderno. Assim, Daniel Defoe e seu personagem personificam um pensamento coeso que veio de encontro à velha ordem econômica e social então vigente.
Conclui-se, pois, que a contribuição do romance foi relevante e significativa para diversas searas, inclusive a do Direito, sendo objeto de estudos e análises até os dias de hoje, indo muito mais além do que a superficial depreensão da vetusta máxima ubi societas ibi jus.
Advogado/PA. Bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e pós-graduando em Direito Médico com capacitação para o ensino no magistério superior pela Escola Paulista de Direito (EPD).
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