SUMÁRIO: Introdução. 1. A questão da igualdade: a não-discriminação e a discriminação positiva. 2. Minorias, grupos vulneráveis e ações afirmativas. 3. O dever do Estado com a educação no ensino superior: a discussão sobre a reserva de vagas. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Muito se discute, na atualidade, sobre a questão da reserva de vagas no ensino superior. Alguns se posicionam favoravelmente, entendendo ser essa a iniciativa necessária para que seja efetivada a igualdade de oportunidades aos “excluídos” na educação. Outros, contrariamente, manifestam aversão a esse “modelo” de inclusão social, alegando haver, no caso, violação ao princípio da igualdade e afirmando que o correto seria a melhoria substancial do ensino médio público do Brasil.
Em que pese esses debates, a realidade é que nosso país está iniciando a
política de ações afirmativas no campo da educação no ensino superior. Primeiro, foram algumas universidades, que de forma ousada, sem que houvesse lei federal que impusesse essa conduta, estipularam reserva de vagas, especialmente para negros, nas seleções para ingresso aos cursos de graduação. Atualmente, o governo federal tem demonstrado empenho no assunto, havendo projeto de lei federal sobre o tema e, também, sua inserção no anteprojeto de reforma universitária.
No que concerne aos critérios adotados para tanto, alternam entre raça e condição econômica. O modo de se comprovar a realidade de quem declara necessitar desse apoio do Estado, dessa “discriminação positiva”, também são muitos.
No presente trabalho discorreremos sobre a relação existente entre a igualdade de oportunidades e as vagas reservadas no ensino superior.
1. A QUESTÃO DA IGUALDADE: A NÃO-DISCRIMINAÇÃO E A DISCRIMINAÇÃO POSITIVA
A Constituição Federal de 1988 prescreve o princípio da igualdade logo no “caput” do artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, (…)”. Celso Antônio Bandeira de Mello frisa que “(…) o alcance do princípio não se restringe a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas que a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a isonomia”[1].
Referido princípio quer significar que, diante de uma lei, todos devem ser tratados da mesma forma, somente sendo admissível distinções que a própria lei regulamente e desde que essas sejam justificáveis.
O problema que surge é a questão de saber quando seria possível a lei estabelecer discriminações e quando essa conduta seria vedada.
A máxima aristotélica que proclama “tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida dessa desigualdade”, não traz a resposta da questão, uma vez que como salientam Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior, a expressão, em que pese ser correta “(…) parece não concretizar explicação adequada quanto ao sentido e ao alcance do princípio da isonomia, porque a grande dificuldade reside exatamente em determinar, em cada caso concreto, quem são os iguais, quem são os desiguais e qual a medida dessa igualdade”[2].
Celso Antônio Bandeira de Mello, discorrendo sobre critérios para identificação do desrespeito à isonomia, assim se manifesta:
“(…) tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles”[3].
Assim, de acordo com o ilustre autor, necessário se mostra a observância cumulativa desses três aspectos para que não haja objeção a uma lei que estabeleça diferenciação.
Porém, nesse ponto, necessário frisar que o princípio da igualdade, prescrito no caput do art. 5º da Constituição Federal exprime o sentido de não-discriminação.
Hédio Silva Júnior, ao escrever o artigo “Ação afirmativa para negros (as) nas universidades: a concretização do princípio constitucional da igualdade”, afirma que igualdade se traduziria por não discriminar, “(…) donde se deduz que o princípio da igualdade seria densificado por um conteúdo essencialmente negativo, uma obrigação negativa, abstencionista, passiva: não-discriminar”. No entanto, ressalta o autor que a história demonstra a insuficiência dessa mera “não-discriminação”, uma vez que não basta “(…) que o Estado se abstenha de praticar a discriminação em suas leis”. Dessa forma, diz que “(…) incumbe ao Estado esforçar-se para favorecer a criação de condições que permitam a todos se beneficiar da igualdade de oportunidade e eliminar qualquer fonte de discriminação direta ou indireta”. A isso, acrescenta, corresponderia a ação afirmativa[4].
Fica, desse modo, demonstrada a insuficiência da igualdade formal, sendo necessário, para a efetiva promoção da igualdade material, possibilitar a igualdade de oportunidades.
Podemos citar, como exemplos, alguns dispositivos constitucionais, trazidos à colação pelo autor supracitado[5], que traduzem essa idéia, de promoção da igualdade: art. 3º, IV (“promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”); art. 23, X (“combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos”); art. 227, II (“criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física…”). Ainda, cita normas que discriminam como forma de compensar a desigualdade de oportunidades: art. 7º, XX; art. 37, VIII, dentre outras.
Gabi Wucher discorre sobre a não-discriminação e a discriminação positiva, afirmando que ambas têm por base o princípio da igualdade[6].
A autora ressalta que o princípio da não-discriminação teve destaque após a Segunda Guerra Mundial, passando a incorporar grande parte dos instrumentos internacionais de direitos humanos da ONU, que cuidam das várias espécies de direitos e pessoas a serem protegidas. Salienta que referido princípio consagrou-se “como princípio universal do direito internacional de direitos humanos e, também, como princípio básico de proteção de minorias (…)”[7].
Dessa forma, seguindo o raciocício da autora, o “princípio da não-discriminação” impede que sejam estabelecidas discriminações gratuitas e, também, que minorias ou grupos vulneráveis sejam diferençados, mediante inferiorização, em relação aos segmentos visivelmente dominantes da sociedade.
Paulo Bonavides, discorrendo sobre a interpretação constitucional do princípio da igualdade, afirma que o Estado social é Estado gerador de igualdade fática, sendo que isto deve, acrescenta, “(…) iluminar sempre toda a hermenêutica constitucional, em se tratando de estabelecer equivalência de direitos”. E salienta: impõe ao Estado, se necessário, a realização de prestações positivas e a adoção de providências com a finalidade de realizar os comandos normativos de isonomia[8].
De todo o exposto até o momento, podemos concluir que o que é vedado é que a lei estabeleça discriminações infundadas, gratuitas. Já a discriminação que tenha “correlação lógica entre o fator de discrímen e a desequiparação procedida”[9] ou, ainda, a “discriminação positiva”, são admitidas pelo nosso ordenamento jurídico-constitucional.
2. MINORIAS, GRUPOS VULNERÁVEIS E AÇÕES AFIRMATIVAS
O pluralismo é característica da sociedade democrática, como é a nossa. A diversidade, portanto, faz parte do meio social em que vivemos, sendo essencial para o desenvolvimento da comunidade. Partindo-se desse raciocínio, podemos observar a importância da proteção das minorias ou grupos vulneráveis.
O Novo Dicionário Aurélio assim descreve minoria: inferioridade numérica; a parte menos numerosa duma corporação deliberativa, e que sustenta idéias contrárias às do maior número; menoridade.
Discorrendo sobre o assunto, Elida Séguin afirma ser complexo conceituar minorias, uma vez que diante das conquistas modernas não poderia haver restrição somente a critérios étnicos, religiosos, lingüísticos ou culturais[10].
Lembra a autora que, em princípio, o termo “minorias” é pensado sob o aspecto de um número inferior de pessoas, “(…) como grupos de indivíduos, destacados por uma característica que os distingue dos outros habitantes do país, estando em quantidade menor em relação à população deste”[11] o que vem de encontro com o significado acima descrito pelo dicionário.
Dessa forma, ressalta ainda que haveria um contra-senso na designação de algumas minorias aprioristicamente, dando como exemplo as mulheres e os idosos[12].
Mais adiante, discorre sobre grupos vulneráveis e chega à conclusão de que o melhor, para o trabalho que desenvolve, é não se apegar a diferenciações:
“Existe certa confusão entre minorias e grupos vulneráveis. As primeiras seriam caracterizadas por ocupar uma posição de não-dominância no país onde vivem. Os grupos vulneráveis podem se constituir num grande contingente numericamente falando, como as mulheres, crianças e idosos. Para alguns são grupos vulneráveis, posto destituídos de poder mas guardam a cidadania e os demais elementos que poderiam transformá-los em minorias.
Na prática tanto os grupos vulneráveis quanto as minorias sofrem discriminação e são vítimas da intolerância, motivo que nos levou, no presente estudo, a não nos atermos a diferença existente”[13].
Gabi Wucher, também discorrendo sobre o assunto afirma:
“O elemento numérico per se não é, sem dúvida, suficiente para caracterizar uma minoria que precise de proteção especial. A situação na África do Sul, durante o regime de apartheid, caracterizada pela dominância exercida pela minoria branca sobre a maioria – a população negra -, é ilustrativa nesse contexto. Para ser objeto de proteção internacional, a minoria precisa imprescindivelmente ser caracterizada por uma posição de não-dominância que ocupa no âmbito do Estado em que vive. No entanto, o elemento de não-dominância per se é o que igualmente caracteriza os chamados ‘grupos vulneráveis’, conceito de abrangência maior que o de ‘minorias’. Grupos vulneráveis podem, mas não precisam necessariamente constituir-se em grupos numericamente pequenos: mulheres, crianças e idosos podem ser considerados ‘grupos vulneráveis’, sem, no entanto, se constituírem em minoria. Mesmo um grupo pequeno em posição de não-dominância ainda pode não ser considerado uma minoria, como, por exemplo, trabalhadores migrantes (por não serem cidadãos do país em que vivem) ou pessoas portadoras de deficiência (por falta de solidariedade com vistas à preservação de cultura, tradições, religiões ou idioma)”[14].
A mesma autora faz distinção entre minorias “by force” e minorias “by will”, dizendo que as primeiras reclamam “a assimilação em relação à maioria”, e as outras “ao reclamarem a integração na sociedade em que vivem, aspiram à concomitante preservação de suas características”[15].
No presente trabalho, não se fará distinção entre minorias e grupos vulneráveis, uma vez que o melhor entendimento, para tratar da temática, parece ser o que considera os dois grupos merecedores de proteção, de uma conduta ativa do Estado.
Joaquim B. Barbosa Gomes, discorrendo sobre a posição estatal nos mais diversos aspectos assim se manifesta:
“A sociedade liberal-capitalista ocidental tem como uma de suas idéias-chave a noção de neutralidade estatal que se expressa de diversas maneiras: não intervenção em matéria econômica, no domínio espiritual e na esfera íntima das pessoas. No campo do Direito, tais idéias tiveram e continuam a ter conseqüências relevantes, especialmente no que diz respeito à postura do Estado em relação aos diversos grupos componentes da Nação, bem como no que concerne à interação desses grupos entre si. De especial importância, nesse sentido, é o tratamento jurídico do problema da igualdade. Na maioria das nações pluriétnicas e pluriconfessionais, o abstencionismo estatal se traduziu na crença de que a mera introdução nas respectivas Constituições de princípios e regras asseguradoras de uma igualdade formal perante a lei de todos os grupos étnicos componentes da Nação, seria suficiente para garantir a existência de sociedades harmônicas, onde seriam assegurados a todos, independentemente de raça, credo, gênero ou origem nacional, efetiva igualdade de acesso ao que comumente se tem como conducente ao bem-estar individual e coletivo”[16].
O autor prossegue lembrando sobre o fracasso que se tem mostrado a idéia de neutralidade estatal. Conclui, então, que apenas proclamações jurídicas não são suficientes para alterar esse panorama social enraizado na cultura dos mais variados países, na mente da coletividade, na compreensão difundida de que uns dominam e outros são subordinados. Salienta, ainda, que a reversão dessa situação somente ocorrerá “(…) com a renúncia do Estado à sua histórica neutralidade em questões sociais, devendo assumir, ao contrário, uma posição ativa (…)”[17].
Essa “posição ativa” do Estado teve início com as políticas de ações afirmativas, planejadas, inicialmente, nos Estados Unidos da América. Em seguida, colocada em prática por diversos países, também no Brasil passou a fazer parte da “agenda estatal”, tendo se iniciado timidamente e, aos poucos, foi conscientizando e conquistando mais adeptos nos mais diversos segmentos da sociedade brasileira.
Dessa forma, parece evidente que o Estado brasileiro não mais pode assumir uma postura neutra. De acordo com Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior, uma análise sistemática da Constituição comprova que muitos dispositivos constitucionais percorreram a direção do Estado do bem-estar social. Assim afirmam os autores: “(…) a busca do bem-estar social permeia toda a Constituição Federal de 1988, de tal modo que esse aspecto não pode ser desconsiderado na tarefa de delimitar o perfil constitucional do Estado brasileiro”. E continuam: “(…) parece inquestionável que a Constituição do Brasil institui um Estado Democrático Social de Direito”[18].
Lenio Luiz Streck também discorre sobre o Estado do bem-estar:
“(…) o Welfare State seria aquele Estado no qual o cidadão, independente de sua situação social, tem direito a ser protegido contra dependências de curta ou longa duração. Seria o Estado que garante tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação, assegurados a todo o cidadão, não como caridade mas como direito político.
Há uma garantia cidadã ao bem-estar pela ação positiva do Estado como afiançador da qualidade de vida do indivíduo. Todavia, algumas situações históricas produziram um novo conceito. O Estado Democrático de Direito emerge como um aprofundamento da fórmula, de um lado, do Estado de Direito e, de outro, do Welfare State. Resumidamente, pode-se dizer que, ao mesmo tempo em que se tem a permanência em voga da já tradicional questão social, há como que a sua qualificação pela questão da igualdade. Assim, o conteúdo deste se aprimora e se complexifica, posto que impõe à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo utópico de transformação do status quo. Produz-se, aqui, um pressuposto teleológico cujo sentido deve ser incorporado aos mecanismos próprios ao Estado do Bem-Estar, construídos desde há muito.
É este o conceito que, vindo estampado no texto constitucional (art. 1º), define os contornos do Estado brasileiro, a partir de 1988 (…)”[19].
Diante disso, podemos afirmar que as políticas de ações afirmativas devem fazer parte do rol de prestações a que o Estado brasileiro está obrigado a realizar.
Joaquim B. Barbosa Gomes assim define ações afirmativas:
“Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. Diferentemente das políticas governamentais antidiscriminatórias baseadas em leis de conteúdo meramente proibitivo, que se singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos de caráter reparatório e de intervenção ex post facto, as ações afirmativas têm natureza multifacetária, e visam a evitar que a discriminação se verifique nas formas usualmente conhecidas – isto é, formalmente, por meio de normas de aplicação geral ou específica, ou através de mecanismos informais, difusos, estruturais, enraizados nas práticas culturais e no imaginário coletivo. Em síntese, trata-se de políticas e de mecanismos de inclusão concebidas por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito”[20].
A Constituição Federal de 1988 tomou algumas iniciativas acerca do assunto quando tratou, por exemplo, das pessoas portadoras de deficiência (Art. 37, VIII), do trabalho da mulher (Art. 7º, XX), dentre outras.
Como já salientado anteriormente, aos poucos o Estado brasileiro foi abarcando maiores possibilidades na admissibilidade de ações afirmativas. A consciência acerca da inclusão social foi se alastrando e hoje já podemos contar com algumas dessas políticas em nosso país, especialmente no campo do trabalho e da educação. Certo é afirmar que ainda estamos engatinhando no assunto. Porém, não podemos deixar de reconhecer os avanços nos últimos anos.
Tema que vem sendo discutido com veemência na atualidade é a questão das quotas no ensino superior, que passaremos a tratar no próximo tópico.
3. O DEVER DO ESTADO COM A EDUCAÇÃO NO ENSINO SUPERIOR: A DISCUSSÃO SOBRE A RESERVA DE VAGAS
A educação, direito social previsto no artigo 6º da Constituição Federal, está incluída no Título II do texto constitucional, do que podemos concluir que se trata de um direito fundamental. Pertence aos chamados direitos fundamentais de segunda geração, os quais requerem uma prestação positiva do Estado.
Regina Maria Fonseca Muniz salienta ser o direito à educação um dos direitos humanos, que possui origem no direito natural. Segundo a autora, a educação “Ínsita no direito à vida, é instrumento fundamental para que o homem possa se realizar como homem”[21].
Paulo Bonavides, discorrendo sobre os direitos fundamentais, assim se
manifesta:
“Os direitos fundamentais não mudaram, mas se enriqueceram de uma dimensão nova e adicional com a introdução dos direitos sociais básicos. A igualdade não revogou a liberdade, mas a liberdade sem a igualdade é valor vulnerável. Em última análise, o que aconteceu foi a passagem da liberdade jurídica para a liberdade real, do mesmo modo que da igualdade abstrata se intenta passar para a igualdade fática”[22].
Passaremos a tratar, especificamente, da educação no ensino superior. Necessário deixar claro, inicialmente, que esse nível do ensino não pode mais ser considerado privilégio de poucos, pois não há mais espaço para essa mentalidade no atual estágio de desenvolvimento de nossa sociedade, que cada vez mais requer melhores qualificações das pessoas para que possam lograr um emprego capaz de prover dignamente a subsistência.
Iniciaremos, então, a discussão acerca dos dispositivos constitucionais que tratam do assunto, para, a partir deles, se comprovar a responsabilidade do Estado na tarefa de proporcionar às camadas menos favorecidas do nosso país o efetivo direito ao acesso aos níveis mais elevados da educação.
O Art. 205 da Constituição de 1988 prescreve que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Nesse ponto resta demonstrado o papel da educação como forma de desenvolvimento da pessoa humana e necessária para lhe proporcionar atributos objetivando o emprego.
O inciso I do Art. 206 traz como um dos princípios do ensino a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”. Aqui, parece explícita a intenção de garantir a igualdade material, igualdade de oportunidades.
Mais adiante, no Art. 208, inciso V, o ensino superior é tratado de forma mais específica: “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: acesso aos níveis mais elevados do ensino (…)”. De acordo com Wilson Donizeti Liberati, esse direito “(…) é a garantia de concretização do pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes que ingressam no Sistema de Ensino”[23].
Esses dispositivos constitucionais supracitados já vêm comprovar, em grande parte, o dever de prestação do Estado na educação de nível superior. Porém, necessário ainda, trazermos à colação outras regras constantes da Constituição de 1988 para que possamos avançar no tema.
O Art. 1º da Lei Maior traz como fundamentos do Estado Democrático de Direito, dentre outros “a cidadania” e “a dignidade da pessoa humana”. A seguir, no Art. 3º, onde constam os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, podemos citar os que aqui nos interessam: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Esses preceitos constitucionais que foram trazidos à colação, relacionam-se, claramente, com a necessidade, para o cumprimento dos ditames da Constituição Federal, de ações afirmativas do Estado no campo do ensino superior. Diariamente nos deparamos com noticiários que comprovam, estatisticamente, que a maior parte dos alunos matriculados no ensino superior, especialmente no público, trata-se de pessoas que pertencem às camadas mais abastadas da sociedade brasileira.
A promoção da igualdade material, nesse setor, somente pode ser efetivada por meio de políticas de ações afirmativas, que visem tanto aos excluídos em razão da raça, quanto aos excluídos em razão da situação econômica.
Parece evidente, tendo em vista as regras acima transcritas do texto constitucional, que deve haver compromisso do Estado e da sociedade no sentido de proporcionar aos “excluídos” socialmente o acesso ao ensino superior, até em razão de, através desse comportamento, não apenas diminuir as desigualdades existentes no nosso país, mas também objetivando o desenvolvimento do Brasil.
Não nos parece plausível que continuemos, tanto Estado quanto sociedade, assumindo uma posição passiva diante das gritantes diferenças sociais existentes. Já passamos muitos anos assistindo a esse “filme”: pais que não tiveram oportunidades de estudar e se qualificar, tendo que aceitar baixos salários por empregos que exigem mínima ou nenhuma qualificação e, os filhos, crescem e passam a fazer parte desse círculo vicioso. E a cadeia se renova, sem nenhuma alteração.
Algumas universidades já implantaram o sistema de reserva de vagas. Ocorre que, não são raras as ações judiciais contra essas instituições em razão da ausência de lei federal que regule o tema.
O Estado brasileiro começa a demonstrar sua preocupação com o problema. Recentemente foi sancionada a Lei do Prouni (Programa Universidade para Todos – Lei nº 11.096/2005). O programa se destina à concessão de bolsas de estudo integrais e parciais para cursos de graduação e seqüenciais de formação específica, em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos.
Há, também, projeto de lei de nº 3.627/2004, que institui Sistema Especial de Reserva de Vagas para estudantes egressos de escolas públicas, em especial negros e indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior. Este prevê que no mínimo 50% das vagas dos concursos para seleção de candidatos para ingresso nos cursos de graduação das instituições públicas federais de educação superior serão reservadas para estudantes que tenham cursado o ensino médio, integralmente, em escolas públicas. Essas vagas deverão ser preenchidas por uma proporção mínima de autodeclarados negros e indígenas proporcionalmente à quantidade destes na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição.
Por último, cabe citar o projeto de lei da reforma universitária, que também trata do assunto e abrange a política de ações afirmativas nos moldes do projeto de lei acima citado.
Temos consciência de que muitas têm sido as críticas a respeito do tema.
Destacamos duas: a primeira que afirma que o correto seria a melhoria do ensino médio público ao invés da reserva de vagas no ensino superior, e, a outra, que diz respeito aos critérios adotados para comprovar a veracidade de quem declara necessitar dessa “proteção” do Estado.
A melhoria do ensino médio público trata-se de esforço que requer muitas mudanças, o que levará décadas para sua efetivação.
No que concerne à segunda crítica, deve ser salientado que, por todos os motivos que já ficaram evidenciados pela presente exposição, existem grupos, e os “excluídos” da educação superior fazem parte de um destes, que para conquistarem a igualdade material necessitam dessa “discriminação positiva”. Assim, o que resta fazer é procurar meios de aperfeiçoar essas ações afirmativas e não, simplesmente pelo fato de possuírem falhas, rejeitá-las.
CONCLUSÃO
No presente trabalho procuramos demonstrar que a reserva de vagas no ensino superior está relacionada com a igualdade material, igualdade de oportunidades.
Uma análise do texto constitucional nos faz verificar que o Estado brasileiro deve constituir um Estado do bem-estar social. Assim, não mais se justifica, que diante das diversas desigualdades presentes no nosso país, o Estado assuma uma posição neutra. Necessário se mostra uma posição ativa do Estado. Aqui entra a questão das políticas de ações afirmativas.
A Constituição de 1988 muito já evoluiu no assunto. Citamos, a título de exemplos, os Arts. 7º, XX e 37, VIII. Porém, outros campos devem ser explorados para que seja possível a integração social de setores desfavorecidos, para, dessa forma, combater as desigualdades.
A reserva de vagas no ensino superior é um deles. Somente com essa conduta ativa do Estado é que o acesso aos níveis mais elevados do ensino será democratizado. Esse comportamento se mostra conveniente, uma vez que a melhoria do ensino médio público no Brasil, para que fosse possível “equivaler os saberes” é tarefa muito mais árdua e demorada para se concretizar. Assim, enquanto o Estado não possuir aptidão para a melhora do ensino médio público, a reserva de vagas continuará sendo a melhor solução para concretizar a igualdade de oportunidades.
Mestre pelo Centro de Pós-Graduação da ITE Advogada militante
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