Vida. Liberdade. Empatia. Elementos que circundam os mais diversos entendimentos acerca da relação entre seres humanos e animais (silvestres ou domésticos).
Há quem compreenda que, bradar defender os direitos dos animais e adotar dieta e conduta que não sejam veganas, soa contraditório. Afinal, na visão da pessoa que tem tal consciência, é um comportamento que configura uma atitude hipócrita e salienta um desalinhar entre discurso e prática.
No Brasil, independentemente de ser vegana, ovolactovegetariana, lactovegetariana, ovovegetariana ou consumidora irrestrita de produtos de origem animal, é consensual que a pessoa estará sujeita ao que preceitua o ordenamento jurídico do país no tocante à proteção do meio ambiente e do cuidado com os animais.
1 – Tradução livre para: “Veganism is a philosophy and way of living which seeks to exclude—as far as is possible and practicable—all forms of exploitation of, and cruelty to, animals for food, clothing or any other purpose; and by extension, promotes the development and use of animal-free alternatives for the benefit of animals, humans and the environment. In dietary terms it denotes the practice of dispensing with all products derived wholly or partly from animals.”
O animal não humano é senciente. Isso significa afirmar que ele tem sentimentos e pode vivenciar sensações de toda ordem, mostrando-se suscetível ao medo, à raiva, à fome, ao frio, à tristeza, à dor, à alegria e etc.
Contudo, segundo Thaise Santos da Rosa (2017, p. 398)2[2], “a caraterística mais usada para reconhecer a senciência, portanto, é a dor, fazendo com que o conceito da mesma seja cada vez mais utilizado em defesa dos animais não humanos, o que leva ao questionamento de o animal não humano ter direitos de proteção”.
Embora o Código Civil Brasileiro (CC/2002), por força do artigo 82, entenda os animais enquanto bens móveis semoventes, a aprovação – “em revisão e com emenda” – do Projeto de Lei da Câmara nº 27, de 2018 (PLC nº 27/2018), pelo Senado Federal, no ano de 2019, traz dispositivos que servirão como sustentação argumentativa para a mudança da alcunha em destaque.
O PLC nº 27/2018 atribui natureza jurídica sui generis[3] aos animais e altera a percepção legal quanto ao modo como são compreendidos no cenário jurídico. Ou melhor, de um mero bem, eles passam a ser reconhecidos como “seres sencientes” e “sujeitos de direitos despersonificados”, conforme aponta o texto extraído do projeto em questão:
Art. 2º Constituem objetivos fundamentais desta Lei:
I – afirmação dos direitos dos animais não humanos e sua proteção;
II – construção de uma sociedade mais consciente e solidária; I
II – reconhecimento de que os animais não humanos possuem natureza biológica e emocional e são seres sencientes, passíveis de sofrimento.
Art. 3º Os animais não humanos possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos de direitos despersonificados, dos quais devem gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação, vedado o seu tratamento como coisa.
(grifo nosso)
Além das proposições elencadas nos artigos supracitados, o PLC nº 27/2018 objetiva agregar um artigo à Lei dos Crimes Ambientais: o 79-B. Tal dispositivo, em seu âmago, busca resetar do campo civilista, a concepção dos animais como bens móveis. Atente:
Art. 4º A Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 79-B:
“Art. 79-B. O disposto no art. 82 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), não se aplica aos animais não humanos, que ficam sujeitos a direitos despersonificados.”
Ainda que o PLC nº 27/2018 não tenha virado lei vigente no país, ele gerou frutos positivos na jurisprudência no que se refere aos direitos dos animais em caso de dissolução da união estável dos tutores. É o que destaca, na sequência, a ementa do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS):
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. PEDIDO DE REFORMA DA DECISÃO QUE INDEFERIU O DIREITO DE VISITAÇÃO AO PET. VIABILIDADE, NO CASO. REFORMA DO DECISUM. Ainda que os animais estejam enquadrados no Direito das Coisas, é necessário do julgador, um olhar atento às particularidades do caso em apreço, tendo em vista a condição do animal de estimação, como ser senciente que é, assim como sensíveis as partes litigantes. Evidenciado, in casu, o vínculo formado entre a ex-cônjuge e o pet, devendo ultrapassar as diferenças entre o extinto casal, possibilitando o direito de visitação ao animal de estimação. Recurso provido. (Apelação Cível, Nº 70083757823, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Antônio Daltoe Cezar, Julgado em: 12-03-2021)
(grifo nosso)
Na seara familista, a decisão anteriormente exposta, permite uma quebra de paradigma nas situações de divórcio: ser aplicada, em prol dos animais não humanos, na recognição do direito à guarda, à visita e ao provimento dos alimentos (o que engloba, inclusive, os cuidados pertinentes à saúde).
A Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei nº 9.605/98), no artigo 32, caput, trata como crime, “[…] abuso, maus-tratos […]”. e os atos de “[…] ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. A pena para quem praticar essas condutas é a de “detenção, de três meses a um ano, e multa”, sendo que ela poderá sofrer aumento de “um sexto a um terço” caso o animal venha a falecer, tal qual alude o parágrafo 2º do item em discussão[4].
Com fulcro no cercear os maus-tratos aos animais domésticos, a Lei nº 14.604, de 29 de setembro de 2020, introduziu o parágrafo 1º-A ao artigo 32 da Lei nº 9.605/98. De maneira específica e com caráter menos brando, ele versa sobre a punição para a pessoa que abusar, maltratar, ferir ou multilar, cão ou gato. Aqui, o regime que será adotado é o “[…] de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos […]”, incluindo “[,…] multa e proibição da guarda”.
Do ponto de vista da defensora dos animais, Luisa Mell, a Lei nº 9.605/98 “não é clara sobre o que deve ser considerado maus-tratos”. Por conta disso, ela enumera alguns episódios que podem ser enquadrados como posturas que empreendem “crueldade” aos bichos:
Não raras vezes, animais que vivem em um lar definitivo, acabam abandonados em via pública… à própria sorte. Um procedimento que, além de desumano, causa intenso sofrimento e é um crime. Nesse caso, se for identificado quem executou essa atividade ilícita, a parte autora responderá pelo feito, nos termos legais pertinentes.
Destarte, na observância de abandono ou de quaisquer das situações mencionadas pela ativista Luisa Mell, por exemplo, é indispensável comunicar à autoridade policial competente, os fatos ocorridos a fim de que, constatados os maus-tratos, sejam tomadas as providências necessárias para cessá-los.
Fonte: Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado de Alagoas
Arara-azul: ave característica da fauna brasileira que, frequentemente, é capturada da natureza e vendida no mercado ilegal interno e de países do exterior.
Fonte: Alastair Rae on Visualhunt
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), no artigo 23, inciso VII, diz que, “preservar as florestas, a fauna e a flora”, é manifesta “competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
Mais adiante, em seu Capítulo VI, a CRFB/88, exalta o direito ao “meio ambiente equilibrado” (sob o qual, expressamente, repousa a acepção de proteção da fauna). Vejamos o que diz o artigo 225, parágrafo 1º (inciso VII) e 7º, do referido documento legal:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
[…]
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
[…]
(grifo nosso)
A relativização suscitada no parágrafo 7º, do artigo 225, da CRFB/88, é alvo de constantes questionamentos na sociedade.
Em uma Ação Civil Pública, o Movimento Gaúcho de Defesa Animal pleiteou tutela jurisdicional para preservar os direitos dos animais que eram submetidos a provas durante os Jogos Germânicos promovidos pela Prefeitura Municipal de Estrela, no Rio Grande do Sul.
No decorrer do processo, como resposta a um recurso de Apelação movido pela entidade, o TJRS enalteceu o estado de senciência inerente aos animais e, através do voto da desembargadora Lúcia de Fátima Cerveira, condenou “o Município de Estrela a se abster de autorizar, realizar e promover eventos, jogos ou disputas aptas a causar sofrimento físico e/ou psicológico em animais sencientes como porcos, javalis e galinhas na festividade ʽJogos Germânicosʼ, ou outro nome que se venha a dar ao evento”.
Contemple, abaixo, a ementa do Acórdão proferido:
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FAUNA. DIREITO DOS ANIMAIS. DIREITO À CULTURA. CONFLITO. MUNICÍPIO DE ESTRELA. JOGOS GERMÂNICOS. UTILIZAÇÃO DE ANIMAIS SENCIENTES EM JOGOS. PORCO. GALINHA. JAVALI. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. Pedido liminar deferido em sede de tutela provisória que não se deu em caráter antecedente, mas sim incidental, tendo natureza cautelar assecuratória baseada na urgência. Nestes termos, por ser deferida tutela provisória de urgência, cautelar e incidental, com fulcro no artigo no artigo 300 do Código de Processo Civil, inaplicável o disposto no artigo 304 do CPC. Sentença de extinção do feito desconstituída. Exame do mérito. Art. 1.013, §3º do CPC. 2. A Constituição da República atribui ao Poder Público o dever de proteger a fauna e veda as práticas que submetam os animais à crueldade. 3. O Supremo Tribunal Federal já analisou o conflito entre os direitos fundamentais de manifestação cultural e de proteção dos animais, decidindo pela não utilização de animais em eventos que lhes inflijam tratamento cruel. 4. No caso, restou comprovado por laudos periciais que a atividade de perseguição e captura a que se submetem as galinhas, os porcos e os javalis nos “Jogos Germânicos” é capaz de gerar-lhes estresse psicológico, uma vez que são animais sencientes, que sentem emoções como angústia e pavor, assim como pode lhes causar lesões físicas devido à brutalidade da competição. 5. Descabimento de condenação da parte requerida ao pagamento de honorários advocatícios em Ação Civil Pública. Princípio da Simetria. APELO PROVIDO EM PARTE. (Apelação Cível, Nº 70084603760, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Lúcia de Fátima Cerveira, Julgado em: 16-12-2020)
(grifo nosso)
Dessa sentença, depreende-se a ideia de que, por mais óbvia que pareça a ausência de comunicação verbal ou pensamento racional nos animais, o ser humano, ao violar os direitos dos integrantes da fauna, ignora um pressuposto social básico: mesmo não adotando um modo de viver alicerçado no veganismo, é preciso saber coexistir com outras espécies.
Logo, diante de todos os argumentos tecidos até aqui, é notório que o intelecto desenvolvido de cada indivíduo não o credencia à superioridade frente a nenhum animal não humano. Romper com esse padrão de agir é o caminho para relegar à insignificância que lhe cabe, a ação de maltratar.
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2 ROSA, Thaise dos Santos. Os direitos fundamentais dos animais como seres sencientes. Justiça e Sociedade, Porto Alegre, V. 2, N. 1, p. 395-433, 2017. Disponível em: https://bityli.com/tYbepE. Acesso em: 16 dez. 2021.
[3] O dicionário on-line Dicio, sui generis é algo “único; que não se parece com nenhum outro […]”.
[4] O parágrafo 1º, do artigo 32, da Lei nº 9.605/98, estende essa penalização a “[…] quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos”.
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