VAQUEJADA: THE CONTRADICTION OF THE CONSTITUTION IN RELATION TO THE PROHIBITION OF THIS PRACTICE
Wilber Alarcon Borges[1]
Resumo: A vaquejada é uma prática esportiva, cultural, inertemente cruel, dependendo do ponto de vista e de quem está a conceituando, em que dois vaqueiros trabalham em sincronia para derrubar o boi dentro de uma marca específica num campo de areia. Ocorre que, nem sempre foi assim, pois antigamente era tida como essencial à atividade dos fazendeiros de gados, porquanto para levá-los aos fazendeiros, para, então, receberem os tratamentos adequados. Diante disso, a Constituição trouxe duas disposições que são, como se mostrará a seguir, evidentemente contrárias entre si. Partindo disto, o presente estudo teve como problemática a seguinte pergunta: existe contradição da constituição em relação à proibição da prática da vaquejada? Para tanto, buscou-se descrever o que estabelece a doutrina, legislação e jurisprudência sobre a vaquejada, além de tecer considerações sócio-histórico-econômico-culturais sobre ela. Por isso, foi necessário estabelecer a relação da vaquejada e seu conteúdo conforme lei e jurisprudência, analisar as ADIs 4.983, 5.728 e 5.772, finalizando com os direitos dos animais e o que diz a própria Magna Carta sobre o assunto. Por isso foi utilizada a pesquisa qualitativa, com objetivo descritivo de análise documental. Ante o que será exposto, foi possível compreender a contradição dentro da constituição.
Palavras-chaves: VAQUEJADA. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO DOS ANIMAIS. CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
Abstract: Vaquejada is a sporting, cultural, inertly cruel practice, depending on the point of view and who’s defining, in which two cowboys work synchronously to bring down the ox within a specific mark on a sand field. However that it was not always so, as it was once considered essential to the activity of cattle ranchers, as to bring them to the ranchers, and then to receive the proper treatments. Against this, the Constitution has two provisions which are, as will be shown below, evidently contrary to each other. From this, the present study had as its problematic the following question: is there a contradiction of the constitution regarding the prohibition of the practice of the vaquejada? To this end, we described what establishes the doctrine, legislation and jurisprudence about the vaquejada, as well as making socio-historical-economic-cultural considerations about her. Therefore, it required to establish the relationship of the vaquejada and its content according to law and jurisprudence, to analyze ADIs 4.983, 5.728 and 5.772, ending with animal rights and what the constitution itself says about it. Therefore, the qualitative research was used, with descriptive objective of document analysis. This way i’ll can be understood the contradiction within the constitution.
Keywords: VAQUEJADA. DIRECT ACTION OF UNCONSTITUTIONALITY. RIGHT OF ANIMALS. FEDERAL CONSTITUTION.
Sumário: Introdução. 1. Considerações sócio-histórico-econômico-culturais da vaquejada. 2. Vaquejada: a lei e a jurisprudência. 3. Vaquejada atual: entre a cultura, o negócio e a crueldade. 4. Vaquejada: o direito dos animais e a Constituição Federal. Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A vaquejada consiste em uma prática aparentemente esportiva, na qual dois vaqueiros tentam derrubar o touro puxando-o pelo rabo, o que, muitas das vezes, leva-o ao desenluvamento – nome técnico dado ao arrancamento do rabo pela retirada violenta da pele e tecidos da cauda.
Mesmo considerando o exposto, há ainda quem defende tamanho maus tratos.
Diante dessa divergência de opiniões, foi proposta a ADI n. 4.983, cujo objeto é a Lei n. 15.299/2013, a qual regulamenta a prática da vaquejada como atividade desportiva e cultural no Estado do Ceará. Nesse mesmo lapso, foi promulgada a EC 96/2017, que acrescentou o §7º ao mesmo dispositivo da CF, considerando não cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, as quais deverão ser regulamentadas por lei específica que deverá assegurar o bem-estar dos animais envolvidos.
Em reflexo, houve a proposição das ADIs n. 5728 e 5772, cujo objeto de ambas é a EC 96/2017.
Ainda frente a este alvoroço, foi sancionada a Lei n. 13.364, a qual, dentre outras providências, elevou a vaquejada à condição de manifestação cultural nacional e de patrimônio cultural imaterial.
Diante deste contexto, pode-se inferir a existência de uma dissonância no ordenamento jurídico quanto à proibição ou não da prática, o que acarretou numa contradição dentro da própria CF, dado que o mesmo dispositivo permite e proíbe a prática.
Ademais, assim como a briga de galo, sabe-se que a prática desportiva da vaquejada é extremamente lucrativa. Aliás, tudo aponta que escolheram os animais para ganharem dinheiro e se divertirem.
É justamente nesta acepção, que surge o interesse no estudo do tema “Vaquejada: a contradição da Constituição em relação à proibição desta prática”, com relevância social, econômica e jurídica. Primeiramente, as relevâncias social e econômica serão demonstradas ao passo que o reconhecimento da prática como ato de extrema crueldade e negócio pode causar uma grande alteração na economia de milhares de pessoas que sobrevivem desta, principalmente no Nordeste.
Em seguida, a relevância jurídica será demonstrada à medida que a será constatada uma contradição dentro do próprio texto constitucional. É nesta ótica que surge o seguinte questionamento: existe contradição na Constituição em relação à proibição da prática da vaquejada?
Para responder a indagação, o presente trabalho tem como objetivo debater sobre a existência da contradição na Constituição em relação à proibição da prática da vaquejada, tendo como objetivos específicos: 1) conceituar sócio-histórico-econômico-culturalmente a vaquejada, 2) descrever o que estabelece a doutrina, legislação e jurisprudência sobre a vaquejada.
Para tanto, como tópicos orientadores do estudo, temos: 1) considerações sócio-histórico-econômico-culturais sobre a vaquejada; 2) vaquejada: a lei e a jurisprudência; 3) vaquejada atual: entre a cultura, negócio e crueldade; e, finalizando, 4) vaquejada: direitos dos animais e a Constituição Federal. Vejamos adiante.
A origem da vaquejada nos remonta ao sertão nordestino, por volta dos séculos XVII e XVIII (CASCUDO, 1976), quando o gado era criado, marcado e solto na mata, ou seja, sua origem encontra-se ligada às festas de apartação. Bezerra bem explica:
“Na verdade, tudo começou aqui pelo Nordeste com o Ciclo dos Currais. É onde entram as apartações. Os campos de criar não eram cercados. O gado, criado em vastos campos abertos, distanciava-se em busca de alimentação mais abundante nos fundos dos pastos (BEZERRA, 1978, p. 7)”.
Passados alguns meses, geralmente no mês de junho, época em que finda o período chuvoso, os coronéis contratavam peões para entrar na mata e buscar o gado marcado, para fazer a separação do gado. É o que Bezerra explica:
“Para juntar gado disperso pelas serras, caatingas e tabuleiros, foi que surgiu a apartação. Escolhia-se antecipadamente uma determinada fazenda e, no dia marcado para o início da apartação, numerosos fazendeiros e vaqueiros devidamente encourados partiam para o campo, guiados pelo fazendeiro anfitrião, divididos em grupos espalhados em todas as direções à procura da gadaria (BEZERRA, 1978, p. 7)”.
Isso permite entender que era algo bem elaborado, com estratégias bem definidas para garantir o sucesso da empreitada:
“O gado encontrado era cercado em uma malhada ou rodeador, lugar mais ou menos aberto, comumente sombreado por algumas árvores, onde as reses costumavam proteger-se do sol, e nesse caso o grupo de vaqueiros se dividia. Habitualmente ficava um vaqueiro aboiador para dar o sinal do local aos companheiros ausentes. Um certo número de vaqueiros ficava dando o cerco, enquanto os outros continuavam a campear. Ao fim da tarde, cada grupo encaminhava o gado através de um vaquejador, estrada ou caminho aberto por onde conduzir o gado para os currais da fazenda. O gado era tangido na base do traquejo, como era chamada a prática ou jeito de conduzi-lo para os currais (BEZERRA, 1978, p. 7-8)”.
Às vezes, encontravam-se os barbatões, aqueles bovinos mais bravos, os quais tinham um sistema de captura ainda mais trabalhoso:
“Quando era encontrado um barbatão da conta do vaqueiro da fazenda-sede, ou da conta de vaqueiro de outra fazenda, era necessário pegá-lo de carreira. Barbatão era o touro ou novilho que, por ter sido criado nos matos, se tornara bravio. Depois de derrubado, o animal era peado e enchocalhado. Quando a rés não era peada, era algemada com uma algema de madeira, pequena forquilha colocada em uma de suas patas dianteiras para não deixa-la correr. Se o vaqueiro que corria mais próximo do boi não conseguia pega-lo pela bassoura, o mesmo que rabo ou cauda do animal, e derrubá-lo, os companheiros lhe gritavam:
– Você botou o boi no mato! (BEZERRA, 1978, p. 8)”
Ademais, o objetivo era a manutenção do gado do fazendeiro, a exemplo do beneficiamento, castração, ferra, tratamento das eventuais feridas, dentre outros.
Dentro deste contexto surge a figura do vaqueiro, tido como herói, pois enfrentava a mata fechada na procura dos bovinos, fazendo verdadeiras acrobacias com seus equinos para escaparem das eventuais lesões causadas pela mata cerrada, a exemplo das arranhaduras de espinhos e pontas de galhos secos (OLIVEIRA, 2016). Por conseguinte, sua raiz encontra-se diretamente ligada à procura dos animais na caatinga nordestina para a reagrupação do rebanho. Andrade explica:
“[…] o animal bravio selvagem, o ‘barbatão’ que logo ganhava fama, atraindo os vaqueiros mais em sua perseguição. Para a sua captura convocavam-se vaqueiros das várias ribeiras que em verdadeira festa iam perseguir o animal bravio (ANDRADE, 1986, p. 122)”.
Mais do que o festejo “mais tradicional do ciclo do gado nordestino” (CASCUDO, 1976, p. 783), a vaquejada consiste em uma forma de viver de uma comunidade específica. Aires e Assunção asseveram:
“Há estilos de ser e de viver que se conectam à sociedade, bem como há particularidades que são executadas cotidianamente em seus eventos. Na vaquejada promove-se estilos de vida que se configuram pela maneira como atuam e representam o mundo no evento, a saber: o tipo de vestimenta, o cavalo, as brincadeiras e as festas (AIRES; ASSUNÇÃO, 2018, p. 6)”.
Então, verifica-se que as vestimentas também são partes importantes para a figura do vaqueiro, pois se diferem das roupas comuns. Aires e Assunção explicam:
“As vestimentas nas vaquejadas são compostas de acessórios que diferem desta paisagística comum, embora seja comum às pessoas usarem bonés, calças jeans e camisetas em seu cotidiano. As botas de couro, as perneiras, os chicotes dos vaqueiros e dos patrões são instrumentos que demarcam referências para dizer quem é quem na vaquejada (AIRES; ASSUNÇÃO, 2018, p. 6)”.
Em verdade, a gênese da vestimenta encontra-se ligada à gênese da prática. O traje era uma forma de proteger-se das espécies espinhentas da caatinga (FELIX; ALENCAR, 2011).
Além disso, há ainda o aspecto da performance. O ato performático, nas palavras de Paul Zumthor (2010, p. 166), “[…] implica competência. Além de um saber-fazer e de um saber dizer, a performance manifesta um saber no espaço e tempo […] que é emanada no corpo”. Para Aires e Assunção (2018), esse é o ato pelo qual fazem o próprio marketing, usando de quaisquer meios disponíveis, a exemplo: a tradição familiar, na qual demonstram a continuidade de campeões que sua família pode oferecer, a posição social, na qual o locutor do evento realça sua participação em determinado grupo empresarial, e a derrubada do boi, apresentando uma habilidade diferencial ao derrubar o boi.
A performance é tão importante, que caso o vaqueiro não faça um show apropriado, a plateia e os patrões começam a vaiar, como formar de demonstrar a falta de confiança e insatisfação em relação ao competidor (AIRES; ASSUNÇÃO, 2018).
Não obstante, os cowboys dessa comunidade conseguem, através da vaquejada, demonstrar que são verdadeiramente machos. O objetivo disto é demonstrar não somente ao patrão, como ao público em geral, inclusive as mulheres, que o vaqueiro é mais apto, tenaz que os demais (AIRES; ASSUNÇÃO, 2018, p. 9)
Portanto, vê-se a vaquejada como uma festa organizada pela população rural, de forma a contribuir economicamente para a comunidade, formando uma tradição cultural. Giddens (2000) assevera que as tradições consistem na repetição de rituais, os quais evoluem ao longo do tempo. Isto é o que ocorre com a vaquejada, ano após anos a prática vem sendo reiterada e torna-se parte da identidade daquele povo. Cascudo assim descreveu:
“Os touros e novilhos se agitavam inquietos e famintos, tangiam, com grandes brados, um animal para fora da porteira. Arrancava este como um foguetão. Um par de vaqueiros corria lado a lado. Um seria o ‘esteira’ para manter o bicho numa determinada direção. O outro derrubaria. Ao pôr-do-sol acabava-se (CASCUDO, 1976, p. 34)”
Já por volta da metade do século XX, alguns destes vaqueiros iniciaram a exposição de suas habilidades ao público, através da Corrida do Mourão, em Rio Grande do Norte (OLIVEIRA, 2016). Com a repercussão desse “grande espetáculo”, a organização destes eventos passou a ser organizada pelos senhores de engenho, os quais ofereciam aos vaqueiros apenas um agrado (OLIVEIRA, 2016), pois à época o espetáculo ainda não almejava o lucro.
Porém, como é natural do ser humano almejar o lucro, o tempo foi passando e parte dos fazendeiros começou a transformar a prática em um verdadeiro show, na qual cobravam uma taxa de participação, com a reversão do monte em prêmio aos vencedores, retirada a parte da organização do evento (OLIVEIRA, 2016).
Atualmente, a vaquejada é completamente diferente do que fora outrora. O show consiste em uma competição, com a figura de dois vaqueiros. Um deles, denominado batedor de esteira, irá levar o boi para o outro, denominado puxador. Quando os cowboys se aproximam um do outro, o boi ficará emparelhado até que seja derrubado, puxando-o pelo rabo, dentro das duas últimas faixas de cal. Ao final, a dupla, agora montada em cavalos de linhagem, que conseguir a maior quantidade de pontos recebe o prêmio (OLIVEIRA, 2016). De forma mais técnica, Silva Júnior define:
“Os cavaleiros competem em duplas, montados seus cavalos belos e com arreios caprichados e bem cuidados, e disputam correndo em raia de aproximadamente 50,00 m a 80,00 m de comprimento, com terreno limpo e macio, onde procuram derrubar o garrote ou touro que parte celeremente da porteira de saída buscando escapar da perseguição dos cavalos. A derribada do boi é feita mediante puxada pelo rabo, a ser realizada até o limite final da pista. Ao lado da pista, acomodam-se os expectadores sentados em camarotes e nas bancos sobrepostas(sic), onde ficam torcendo por seus cavaleiros favoritos (SILVA JÚNIOR, 2016).”
Ademais, a festa que outrora somente acontecia no fim da época chuvosa, agora possui um calendário bem organizado, com os eventos marcados durante todo o ano, e, às vezes, até mais de um por local e/ou dia.
Outrossim, encontra-se dividida entre duas classificações, quais sejam: profissional e amador. São tidos como profissionais os contratados pelos parques dos respectivos eventos ou por algum fazendeiro de bois ou dono de haras (FELIX; ALENCAR, 2011). Em seu turno, são amadores aqueles que praticam apenas para matar o tempo livre, ou apenas por gostar, como bem define o próprio significado da palavra.
Após essa restruturação, a vaquejada foi ganhando mais e mais repercussão, sendo que, hodiernamente é considerada um esporte e prática cultural, nos termos da lei, conforme veremos a seguir.
Ao longo da evolução da sociedade humana, em geral, esta optou por regulamentar o uso dos animais. Para Lourenço:
“O principal fator que motivou o surgimento de normas especificamente voltadas à tutela e proteção dos animais reside na percepção, pertencente tanto à comunidade científica como ao senso comum, a respeito da analogia dos processos anatômico-fisiológicos relacionados à manutenção da vida e do bem-estar experimental existente entre animais e homens (LOURENÇO, 2017, p. 4).”
No Brasil, a legislação somente se direcionou aos animais pela primeira vez em 10 de setembro de 1924, através do Decreto Federal n. 16.590, o qual vedava concessão de licenças para corridas de touros, garraios, novilhos, brigas de galo e canários e quaisquer outras diversões desse gênero que causassem sofrimento aos animais.
Feitas as considerações iniciais, a legislação e jurisprudência mais atuais serão analisadas de acordo com a ordem cronológica, como se segue.
Primeiramente, registre-se a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, de 27 de janeiro de 1978, a qual já parte da premissa de que todo animal possui direitos e que o respeito aos animais deve ser ensinado desde a infância. Logo em seu primeiro artigo já prega que todo animal nasce igual “diante da vida” e tem “o mesmo direito à existência” (ONU, 1978).
A declaração prossegue proibindo os maus-tratos e atos cruéis, conforme art. 3, alínea “a”(ONU, 1978), asseverando, em seu artigo 2, que o homem não deve explorar os animais, tendo “o dever de colocar a sua consciência a serviço dos outros animais” (ONU, 1978). Inclusive, se for necessário matar um animal, o ato deve ser imediato, “sem dor ou angústia” (ONU, 1978).
Máxime, em seu art. 10 estipula que, em hipótese alguma, qualquer que seja o animal, o homem poderá submetê-lo para o próprio entretenimento, pois tais atos não são compatíveis com a dignidade do animal (ONU, 1978).
Por fim, as cenas em que haja a violência contra os animais estão proibidas em qualquer meio audiovisual, salvo se o objetivo for expor uma afronta aos direitos dos animais, nos termos de seu art. 13, alínea “b” (ONU, 1978).
Ora, vê-se a vaquejada como um completo desrespeito à convenção em tela, ao qual o Brasil é signatário.
Mais adiante, a Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei de Crimes Ambientais – LCA) considera crime a prática de maus tratos contra “animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”, conforme se extrai de seu art. 32 (BRASIL, 1998), cominando a pena de “detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa” (BRASIL, 1998).
Ademais, pelo texto da lei, nem mesmo os fins didáticos ou científicos extinguem a tipicidade, desde que haja recursos alternativos, nos termos do §1º deste mesmo artigo (BRASIL, 1998). Outrossim, aumenta-se a pena de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço) se o animal vier a falecer, nos termos do §2º (BRASIL, 1998).
Vale ressaltar que a pena é muito branda e a efetividade acaba não sendo alcançada, tendo em vista que nas penas privativas de liberdade de até 4 (quatro) anos, pode haver a substituição pelas penas restritivas de direito, o que acaba não inibindo a prática da conduta.
Quanto aos maus tratos, o Decreto Federal n. 24.645, de 10 de julho de 1934, trazia um rol exemplificativo de maus-tratos, a exemplo: atos de abuso ou crueldade em qualquer animal; manutenção de animais em locais anti-higiênicos ou que impossibilite a respiração, movimento ou descanso, ou os privem de ar ou luz, dente outras, vejamos:
“Art. 3º Consideram-se maus tratos:
I – praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal;
II – manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz;
III – obrigar animais a trabalhos excessívos ou superiores ás suas fôrças e a todo ato que resulte em sofrimento para deles obter esforços que, razoavelmente, não se lhes possam exigir senão com castigo;
IV – golpear, ferir ou mutilar, voluntariamente, qualquer órgão ou tecido de economia, exceto a castração, só para animais domésticos, ou operações outras praticadas em beneficio exclusivo do animal e as exigidas para defesa do homem, ou no interêsse da ciência […] (BRASIL, 1934).”
Todavia, o que mais interessa é o inciso XXIX, do art. 3º, do decreto retro, o qual delineia a realização ou promoção de “touradas e simulacro de touradas, ainda mesmo em lugar privado” como maus-tratos (BRASIL, 1934).
Já em 3 de junho de 1997, demonstrando uma linha condizente com o ordenamento jurídico brasileiro, o STF julgou como inconstitucional a farra do boi:
“COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ESTÍMULO – RAZOABILIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – ANIMAIS – CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’ (STF – RE: 153531 SC, Relator: FRANCISCO REZEK, j. 03/06/1997, 2ª Turma, DJe 13-03-1998 PP-00013 EMENT VOL-01902-02 PP-00388).”
A primeira desvirtuação ocorre com a Lei n. 10.220, de 11 de abril de 2001, a qual estipula que os vaqueiros são atletas profissionais:
“Art. 1o Considera-se atleta profissional o peão de rodeio cuja atividade consiste na participação, mediante remuneração pactuada em contrato próprio, em provas de destreza no dorso de animais equinos ou bovinos, em torneios patrocinados por entidades públicas ou privadas (BRASIL, 2001).”
Além disso, as entidades promotoras devem contratar um “seguro de vida e de acidentes em favor do peão de rodeio”:
“Art. 2º […]
Também estipula atualização anual do seguro, penalidades à entidade promotora que não o fizer, especificações sobre a apólice, 8 (oito) horas diárias de jornada de trabalho, “conforme os usos e costumes de cada região” (BRASIL, 2001). Igualmente, traz disposições quanto ao contrato com menor entre 16 e 21 anos, o qual deverá conter o consentimento de seu responsável legal (BRASIL, 2001).
Nesse intervalo, em 29 de junho de 2005, novamente o STF vem e declara inconstitucional outra forma de maus tratos aos animais:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 11.366/00 DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ATO NORMATIVO QUE AUTORIZA E REGULAMENTA A CRIAÇÃO E A EXPOSIÇÃO DE AVES DE RAÇA E A REALIZAÇÃO DE ‘BRIGAS DE GALO’. A sujeição da vida animal a experiências de crueldade não é compatível com a Constituição do Brasil. Precedentes da Corte. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente (STF – ADI: 2514 SC, Relator: Min. EROS GRAU, j. 29/06/2005, Tribunal Pleno, DJe 09-12-2005 PP-00004 EMENT VOL-02217-01 PP-00163 LEXSTF v. 27, n. 324, 2005, 42-47).”
Em seguida, em 14 de junho de 2007, reitera o mesmo posicionamento ao declarar inconstitucional as rinhas:
“INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 7.380/98, do Estado do Rio Grande do Norte. Atividades esportivas com aves das raças combatentes. ‘Rinhas’ ou ‘Brigas de galo’. Regulamentação. Inadmissibilidade. Meio Ambiente. Animais. Submissão a tratamento cruel. Ofensa ao art. 225, § 1º, VII, da CF. Ação julgada procedente. Precedentes. É inconstitucional a lei estadual que autorize e regulamente, sob título de práticas ou atividades esportivas com aves de raças ditas combatentes, as chamadas ‘rinhas’ ou ‘brigas de galo’ (STF – ADI: 3776 RN, Relator: CEZAR PELUSO, j. 14/06/2007, Tribunal Pleno, DJe DIVULG 28-06-2007 PUBLIC 29-06-2007 DJ 29-06-2007 PP-00022 EMENT VOL-02282-04 PP-00716 LEXSTF v. 29, n. 343, 2007, p. 104-109 RT v. 96, n. 865, 2007, p. 118-121).”
Notadamente, a Corte tem entendido que tais práticas são incompatíveis com o ideal adotado pelo ordenamento jurídico. É a mesma linha de pensamento de Steinmetz (2009), segundo o qual os maus tratos estão para os animais como a tortura está para os seres humanos, salientando que esta não pode ser ponderada e afastada por outro princípio. Em suma, o objetivo é garantir o bem-estar animal, entendido como:
“[…] a garantia de atendimento às necessidades físicas, mentais e naturais do animal, a isenção de lesões, doenças, fome, sede, desconforto, dor, medo e estresse, a possibilidade de expressar seu comportamento natural, bem como a promoção e preservação da sua saúde […] (BRASIL, 2007).”
Dentro deste contexto, encontra-se em fase de aprovação o Projeto de Lei n. 215 de 2007, o qual iria instituir o Código Federal de Bem-Estar Animal, de iniciativa do Deputado Federal Ricardo Tripoli. É nesse mesmo sentido que tramita o Projeto de Lei n. 3.676 de 2012, de iniciativa do ex-Ministro Eliseu Padilha, apensado ao projeto de lei retro, cominando penas e estipulando que:
“Art. 4º. O valor de cada ser deve ser reconhecido pelo Estado como reflexo da ética, do respeito e da moral universal, da responsabilidade, do comprometimento e da valorização da dignidade e diversidade da vida, contribuindo para livra-los de ações violentas e cruéis (BRASIL, 2012).”
Em continuação, o Deputado Federal deu iniciativa ao Projeto de Lei n. 6.799 de 2013, aguardando apreciação pelo Senado Federal, o qual dispõe que:
“Art. 3º – Os animais domésticos e silvestres possuem natureza jurídica sui generis, sendo sujeitos de direitos despersonificados, dos quais podem gozar e obter a tutela jurisdicional em caso de violação, sendo vedado o seu tratamento como coisa (BRASIL, 2013).”
Novamente em âmbito internacional, o Código Civil francês, em 1º de janeiro de 2013, incluiu o art. 515-14 com a seguinte redação: “Os animais são seres vivos dotados de sensibilidade. Sob a reserva das leis que os protegem, os animais estão submetidos ao regime de bens” (FRANÇA, 2013). Entretanto, o que se vê à frente é um verdadeiro retrocesso legislativo.
O movimento retrógrado ganha força em 8 de janeiro de 2013, com a Lei n. 15.299 de 8 de janeiro de 2013, a qual regulamentou a vaquejada como “atividade desportiva e cultural do Estado do Ceará” (CEARÁ, 2013). Outrossim, conceituou a vaquejada como uma competição na qual “uma dupla de vaqueiro a cavalo persegue o animal bovino, objetivando dominá-lo” (grifei). Os critérios de avaliação são a destreza e perícia, in verbis:
“Art. 2º. Para efeitos desta Lei, considera-se vaquejada todo evento de natureza competitiva, no qual uma dupla de vaqueiro a cavalo persegue animal bovino, objetivando dominá-lo.
Dentre suas medidas, estabelece que os apetrechos necessários à prática do esporte devem ser adequados para não prejudicar a saúde dos animais, excluindo, ainda, o vaqueiro que ferir o animal de maneira injustificada e intencional. Já quanto ao local, ela estabelece os seguintes requisitos:
Ainda dentro da ótica desta lei, a vaquejada qualificar-se-á em amadora e profissional, através da inscrição patrocinada dos vaqueiros. Continuando, estabelece que os organizadores do evento deverão adotaras medidas necessárias para proteger a saúde e integridade física de todos os envolvidos. Inclusive, é obrigatória a presença de uma equipe de paramédicos de plantão durante a realização das provas, mas nada diz sobre veterinários de plantão.
Em reflexo, em 17 de junho de 2013, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.983, cujo objeto é a Lei n. 15.299/13. Aliás, seu julgamento ocorreu em 6 de outubro de 2016. No acórdão, o relator Min. Marco Aurélio ressaltou os precedentes supracitados, aduzindo que no Supremo Tribunal Federal (2016) vem “predominando o entendimento a favor de afastar as práticas de tratamento inadequado a animais, mesmo dentro de contexto culturais e esportivos”.
Ocorre que, mesmo tendo em vista os precedentes do tribunal, houve divergência entre os votos, estando no palco o direito à manifestação cultural contra a o direito à proteção ao meio ambiente. Em suma, 5 (cinco) votos foram favoráveis à vaquejada e 6 (seis) votos foram contra. Segue a ementa:
“VAQUEJADA – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ANIMAIS – CRUELDADE MANIFESTA – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – INCONSTITUCIONALIDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância do disposto no inciso VII do artigo 225 da Carta Federal, o qual veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Discrepa da norma constitucional a denominada vaquejada (ADI 153531, Relator(a): Min. FRANCISCO REZEK, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 03/06/1997, DJ 13-03-1998 PP-00013 EMENT VOL-01902-02 PP-00388).”
Em seu voto, o Relator Ministro Marco Aurélio conclui que:
“[…] a crueldade intrínseca à vaquejada não permite a prevalência do valor cultural como resultado desejado pelo sistema de direitos fundamentais da Carta de 1988. O sentido da expressão “crueldade” constante da parte final do inciso VII do § 1º do artigo 225 do Diploma Maior alcança, sem sombra de dúvida, a tortura e os maus-tratos infringidos aos bovinos durante a prática impugnada, revelando-se intolerável, a mais não poder, a conduta humana autorizada pela norma estadual atacada. No âmbito de composição dos interesses fundamentais envolvidos neste processo, há de sobressair a pretensão de proteção ao meio ambiente. (ADI 153531, Relator(a): Min. FRANCISCO REZEK, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 03/06/1997, DJ 13-03-1998 PP-00013 EMENT VOL-01902-02 PP-00388). (grifei)”
Contudo, mesmo diante da reiteração do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional aprovou a Lei n. 13.364, de 29 de novembro de 2016, a qual “eleva o Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, à condição de manifestações da cultura nacional e de patrimônio cultural imaterial” (BRASIL, 2016).
A lei, como reflexo dos princípios basilares do nosso Estado Democrático de Direito não deveria ir contra os direitos dos animais, reconhecidos até universalmente.
Como alhures apontado, a vaquejada não é mais o que fora outrora.
De prática necessária à manutenção do gado, passou a um espetáculo cujo escopo é a exaltação do falso-herói vaqueiro, desprezando o sofrimento do bovino.
Hodiernamente, a vaquejada é vista como um grande empreendimento. O pesquisador Cascudo (1976) aponta que a vaquejada deixou de ser uma prática cultural, para ser um verdadeiro esporte da aristocracia rural, uma “festa pública, nas cidades com publicidade e alto-falante, fotografias e aplausos citadinos” (CASCUDO, 1976, p. 29).
Ademais, segundo qualquer site especializado em vaquejadas, a exemplo do Portal Vaquejada (c2014), a vaquejada é um evento milionário, atraindo grandes empresários. Assim, levando em consideração o montante movimentado por ano, ou mesmo por evento, é inegável a quantidade inumerável de pessoas que sobrevivem deste esporte. A parte mais absurda é ver esses mesmos sujeitos ganhando dinheiro à custa do sofrimento alheio.
Portanto, de tradição só resta a atrocidade cometida contra o gado, qual seja: puxá-lo pelo rabo para que caia no chão. Conforme Figueireiro e Gordilho (2016, p. 6), “os animais são açoitados e violentados físico-psicologicamente, objetivando-se – deliberadamente – alcançar seu desequilíbrio emocional e consequente arremesso desabalado no palco em que sofrerá a inevitável queda”. Os autores asseveram que, embora não exposto ao público, durante o confinamento, os bois são açoitados e insultados, levando choque e até mesmo sofrendo a humilhação da inserção de pimenta e mostarda pelo ânus, dentre outras formas de maus tratos.
Mais uma prova da lucratividade da prática é demonstrada após a impetração da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.983, pelo Ministério Público Federal (MPF) em 17 de junho de 2013, o qual almejava a inconstitucionalidade da Lei n. 15.299/2013, quando o Governo do Ceará salientou os proveitos econômicos que dela viriam.
É sabido que os animais possuem sensibilidade e, por isso, devem ter sua integridade física resguardada. Mesmo com isso, Dias afirma:
“Os animais usados em vaquejadas sofrem luxações e hemorragias internas, devido ao tombo. E não é só o sertanejo que participa da derrubada do boi. Hoje em dia, já vêm entrando em cena empresários, profissionais liberais e outras categorias profissionais, como se essa prática fosse um esporte. Todo esse tormento que sofrem os animais é para ganhar prêmios oriundos de rateio das inscrições pagas pelo vaqueiro (DIAS, 2000, p. 201).”
Machado vai mais longe, enfatizando que tais atos devem ser punidos, inclusive em coautoria:
“Atos praticados ainda que com caráter folclórico ou até histórico, como a ‘farra do boi’ estão abrangidos pelo art. 32 da Lei 9.605/98, e devem ser punidos não só quem os praticam, mas também, em co-autoria [sic.], os que os incitam, de qualquer forma. A utilização de instrumentos nos animais, quando da realização de festas ou dos chamados ‘rodeios’ ou ‘vaquejadas’, tipifica o crime comentado, pois concretiza maus-tratos contra os animais (MACHADO, 2011, p. 885).”
Trata-se de crueldade. A crueldade é sempre crueldade e isso independe da forma pela qual é praticada, ou de quem é a vítima. O seu sujeito ativo poderá praticá-la de maneira sádica, brutal, ou mesmo de forma passiva. Porém, independe disto, o sujeito ativado sempre interpretará a situação diferente de quem a sofre. Isto quer dizer que o sujeito passivo definitivamente irá fazer um juízo de valor completamente diferente de quem pratica. Por isso, o próprio ato de perseguir o animal para derrubá-lo a fim de satisfazer o público já é, por si, um ato extremamente cruel com o bovino.
Nesse ínterim, é oportuno esclarecer que a vítima não é somente o bovino, entrando nessa posição também os cavalos utilizados pelos vaqueiros. Assim, não somente o boi poderá sofrer uma lesão irreversível, o que acarreta no seu sacrifício, como também o cavalo está sujeito a lesões como tendinites, miopatias focal, fratura e outras.
Não obstante, segundo o estudo publicado na Brazilian Journal of Veterinary Research and Animal Science (2004), os equinos podem sofrer úlcera gástrica, refluxo gastresofágico e desordens no intestino. Ademais, “a presença de gastrite quase sempre reflete um desajuste no equilíbrio da fisiologia gástrica em decorrência de alguma inconveniência ligada às práticas de manejo” (BUONORA, et al., 2004).
Nesse sentido, segundo uma pesquisa realizada por pós-graduados da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (LOPES, BATISTA, et al., 2009), as condições dos parques de vaquejada são horríveis, e isso leva os equinos a apresentarem diversas alterações nos exames físicos, bioquímicos e hematológicos.
Isto posto, Lourenço (2017) aponta em seu estudo que o objetivo deste esporte consiste na submissão dos animais envolvidos a um estresse intenso, tanto em relação ao ambiente de confinamento, quanto da angustiosa perseguição, finalizando com a brutal derrubada puxando um de seus membros mais sensíveis.
Nesse seguimento, vale destacar o parecer da Professora Irvênia Prada:
“[…] a cauda dos animais é composta, em sua estrutura óssea, por uma sequência de vértebras, chamadas coccígenas ou caudais, que se articulam umas com as outras. Nesse gesto brusco de tracionar violentamente o animal pelo rabo, é muito provável que disto resulte luxação das vértebras, ou seja, perda da condição anatômica de contato de uma com a outra. Com essa ocorrência existe a ruptura de ligamentos e de vasos sanguíneos, portanto, estabelecendo-se lesões traumáticas. Não deve ser rara a desinserção (arrancamento) da cauda, de sua conexão com o tronco (LEITÃO, 2002, p. 23).”
A pesquisadora continua explicando que as lesões na cauda podem repercutir em lesões ao longo da coluna:
“Como a porção caudal da coluna vertebral representa a continuação dos outros segmentos da coluna vertebral, particularmente da região sacral, afecções que ocorrem primeiramente nas vértebras caudais podem repercutir mais para frente, comprometendo inclusive a medula espinhal que se acha contida dentro do canal vertebral. Esses processos patológicos são muito dolorosos, dada a conexão da medula espinhal com as raízes dos nervos espinhais, por onde trafegam inclusive os estímulos nociceptivos (causadores de dor). Volto a repetir que além de dor física, os animais submetidos a esses procedimentos vivenciam sofrimento mental (LEITÃO, 2002, p. 23).”
Todavia, engana-se quem acha que o problema está só na puxada. Dependendo do jeito que um animal de grande porte cair ao chão, em alta velocidade, suas patas e pescoço podem ser seriamente comprometidos, isso sem levar em consideração as feridas externas e outras sérias lesões de ordem ortopédicas (LOURENÇO, 2017).
Em continuação, Lourenço (2017) afirma que existe uma regra de ouro para curar essa hipermetropia existente nessa multidão que defende. Para o autor, basta trocar a figura do boi por um humano e toda crueldade seria revelada. Ele assevera que a repugnância moral equivalente que passará a existir após a substituição é a mesma que deve ser aplicada quando é o animal que está sofrendo.
Voltando-se aos cavalos, também vítimas, um estudo realizado pela Universidade Federal de Campina Grande concluiu que:
“[…] nas condições da pesquisa, tendinite, tenossinovite, exostose, miopatias focal e por esforço, fraturas, osteoartrite társica são afecções locomotoras traumáticas prevalentes em equinos de vaquejadas; tendinite e tenossinovite são afecções locomotoras traumáticas de maior ocorrência em equinos de vaquejadas; osteoratrite társica primárias e secundárias, são mais ocorrentes em equinos adultos de maior idade, explorados em vaquejadas e, conforme as evidências referenciadas; o percentual das ocorrências de afecções locomotoras traumáticas em equinos de vaquejada constitui-se um dano de conotação clínica relevante (OLIVEIRA, 2008, p. 51).”
Nesse diapasão, fica nítido os maus-tratos praticados contra os animais envolvidos tão somente para o movimento deste negócio.
Além da questão da crueldade, propriamente dita, há também a questão ética, indagando-se sobre a moralidade de divertir-se com o sofrimento alheio, o que, inevitavelmente, leva ao questionamento do valor inserido na culturalidade da prática. A esse passo, certo é o posicionamento de Cunha Filho:
“Deste modo, as coisas do passado jamais podem ser consideradas como integrantes do patrimônio cultural, apenas pelo critério de serem antigas; por tal razão isolada, não adquirirem o direito serem reproduzidas como um encargo da tradição, sem que sejam considerados os impactos que provocam nos projetos desenhados para o futuro, previsto na Constituição Federal, esta que nos determina construir uma sociedade livre, justa e solidária, em que se respeite a dignidade humana, dos outros seres e da própria natureza (CUNHA FILHO, 2013).”
Alfim, a vaquejada ser ou não uma manifestação cultural, não impede seu julgamento pelo viés ético, ou mesmo a responsabilização de quem a financia, inclusive de quem compra os ingressos. Sua qualificação como manifestação cultural não a impede de ser caracterizada como algo bom à sociedade, não garante sua preservação, ou mesmo a imunidade moral ou legal.
Atualmente, após as diversas evoluções do direito, os animais possuem dignidade, sendo seres secientes dotados de sensibilidade. Entretanto, nem sempre foi assim.
Na antiguidade clássica grega, a dignidade era algo intrínseco do ser humano, o que o distinguia dos demais seres (SOUZA; SOUZA, 2018). Sabe-se que haviam várias escolas da filosofia à época, contudo, todas elas são uníssonas ao afirmar que os animais são desprovidos de valores, sendo meros meios para os homens (SOUZA; SOUZA, 2018).
Na idade média, surgiu meio avanço. Havia duas linhas de pensamento. Para Santo Agostinho, os animais não possuíam alma racional, o que os impediam de fazer parte de acordos políticos, refutando a ideia de que seria pecado matar animais (GORDILHO, 2008).
Por outro lado, Tomás de Aquino dividia os pecados em: contra Deus ou contra si e seus semelhantes (SINGER, 2010). O filósofo entendia que “não havia espaço para coisas desse tipo” (SOUZA; SOUZA, 2018).
Já na idade moderna, René Descartes, filósofo e matemático francês, mais uma vez trouxe a humilhação aos animais em sua obra Discurso do método:
“[…] O que não parecerá de modo algum estranho aos que, sabendo quantos “autômatos”, ou máquinas moventes, a indústria dos homens pode criar, utilizando poucas peças em comparação com a grande quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras partes existentes no corpo de cada animal, hão de considerar esse corpo como uma máquina, a qual, tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente melhor ordenada do que nenhuma das que podem ser inventadas pelos homens (DESCARTES, 2006 (1637), p. 95)”
Um pouco mais a frente, Kant defendia uma pequena proteção aos animais, mas não porque se preocupava com os mesmos, e, sim, porque deveríamos nos preocupar conosco (SOUZA e SOUZA, 2018), pois “aquele que é cruel para com os animais, também se torna insensível no seu trato com os homens” (RACHELS e RACHELS, 2013, p. 146). Ademais, o pensamento de que o animal seria um mero instrumento do homem permanece.
Hodiernamente, existem várias legislações a respeito que desconstroem esse conceito ultrapassado e antiquado, conforme visto anteriormente.
Cabe aqui destacar o posicionamento da Carta Constitucional, do art. 215 ao 216-A, tecendo disposições referentes à Cultura. Importante salientar o art. 215, pelo qual o Estado deve garantir “a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional” (BRASIL, 1998), apoiando e incentivando “a valorização e a difusão das manifestações culturais” (BRASIL, 1998).
Fica evidente a proteção que a Lei Maior oferece à cultura, inclusive no que tange ao seu fomento. Para José Afonso (2001, p. 48), o direito à cultura constitui-se de duas faces: porquanto garante seu pleno exercício de um lado, e, de outro, garante o direito de reivindica-lo.
Avançando ao capítulo VI, no inciso VII, §1º, do art. 225, a Constituição Federal dispõe:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
[…]
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade (BRASIL, 1988).”
Ora, vê-se que a Lei Básica encontra-se alinhada ao movimento do constitucionalismo verde, elencando a proteção da fauna como um princípio, de modo a tolher a crueldade contra os animais. Assim asseveram Krell e Lima:
“Na verdade, houve uma prévia ponderação do legislador constituinte, que optou por privilegiar um determinado comportamento em razão da necessidade de assegurar a efetividade do direito previsto no caput do art. 225 e de sua relevância, ante uma possível colisão com outros princípios constitucionais […]. Ao contrário dos princípios, as regras não permitem uma ponderação com princípios ou valores constitucionais. A Constituição de 1988 podia ter estabelecido a proteção animal em forma de princípio ou “norma fim de Estado” […]. Não o fez, mas escolheu a forma mais direta e protetiva, instituindo uma regra proibitiva no próprio texto do art. 225 da Constituição Federal (KRELL e LIMA, 2015, p. 19). (grifei)”
Com isso, verificando-se a crueldade, não há que se falar em ponderação com os demais princípios constitucionais, pois a ponderação já está definida na própria Magna Carta, a qual não relativizou o conteúdo do princípio (LOURENÇO, 2017). Inclusive, neste seguimento foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal por anos, através do julgamento do Recurso Extraordinário 153.531/SC, Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.514/SC e Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.776/RN, supracitadas.
Portanto, “Qualquer tentativa legislativa que vise regulamentar um uso que é inerentemente cruel incorre no vício, pois, de inconstitucionalidade” (LOURENÇO, 2017, p. 95). O autor continua explicando que “Não há possibilidade de transigirmos ou consentirmos com a norma constitucional. Ela não parte de um ponto de vista relativista” (LOURENÇO, 2017, p. 95).
Neste aspecto, fica clara a obrigação do Poder Público de velar pela não sujeição dos animais à crueldade. Contrapondo o pensamento antigo, avulte-se o pensamento de Regan:
“E é realmente crucial, a similaridade básica é simplesmente esta: cada um de nós é um sujeito da experiência da vida, uma criatura consciente com um bem-estar individual que tem importância para nós, qualquer que seja a nossa utilidade para os outros […]. E todas essas dimensões de nossa vida, incluindo nosso prazer e dor, nossa diversão e sofrimento, nossa satisfação e frustação, a continuação de nossa existência ou nossa inesperada morte – tudo faz diferença para a qualidade da vida que vivemos, como experiência, para nós enquanto indivíduos. E o mesmo é verdade para esses animais com os quais nos preocupamos… eles também devem ser vistos como sujeitos da experiência da vida, com valor inerente por si próprio (REGAN, 2013, p. 31).”
Ademais, conforme Tribe (2009, p.57), não é de hoje que se estende os direitos e obrigações próprios dos seres humanos aos entes não-humanos, como as pessoas jurídicas, o espólio, a massa falida, entre outros. Nesta sendo, não há que se questionar que os animais podem ser sujeitos de direitos e obrigações, desde que devidamente representado, seja pelo seu responsável, seja pelo Ministério Público, quando silvestre (FIGUEIREIRO e GORDILHO, 2016).
Deveria estar claro. Mas não está.
Em 6 de junho de 2017 foi promulgada a Emenda Constitucional n. 96, a qual acrescentou um parágrafo a mais no art. 225 da Carta Política. Sua redação é a seguinte:
“§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos (BRASIL, 1988).”
Ora, certamente é maior das afrontas ao constitucionalismo no Brasil, bem como ao entendimento do Supremo Tribunal Federal, que, aliás, menos de 2 (dois) meses antes julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.983, declarando inerentemente cruel a prática da vaquejada.
Ocorre que, a bancada ruralista, favorecida pelos proveitos econômicos que a vaquejada pode oferecer, fez tanta pressão no parlamento que foi inserido um texto inconstitucional dentro da própria Constituição Federal. É inconcebível acreditar que é possível puxar o animal pelo rabo, derrubá-lo no chão, por vezes de costas ao chão, sem causar ferimento ao bovino.
Mais inconcebível ainda é acreditar que o argumento de defesa de um dos votantes a favor da prática foi de que com a regulamentação o emprego de 700 mil empregos no Nordeste estaria garantido. Afirmar isso é a mesma coisa que defender o caso de arremesso de anões. Cite-se a explicação de Tripoli e Ministra Carmen Lúcia no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.983/CE:
“Em defesa da legislação questionada, também não prospera o argumento de que as vaquejadas são práticas de relevância econômica, pois a Constituição da República condicionou a geração do lucro e de empregos à preservação do meio ambiente, cuja defesa foi elevada à categoria de princípio da ordem econômica, possibilitando ao Poder Público interceder para que a exploração econômica não se sobreponha à tutela ambiental. Sempre haverão os que defendem o que vem de longo tempo e se encravou na cultura do nosso povo. Mas cultura se muda e muitas foram levadas nessa condição até que houvesse outro modo de ver a vida, não somente a do ser humano (ADI 4983 ED-AgR, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-037 DIVULG 23-02-2017 PUBLIC 24-02-2017).”
Notadamente, nítida fica a contradição do texto constitucional.
CONCLUSÃO
Como já exposto no decorrer do texto em epígrafe, a pesquisa realizada buscou debater sobre o problema ventilado, utilizando como base para a elaboração do referencial teórico a legislação, doutrina e jurisprudência que tratam do conteúdo. Além do mais, procuramos tecer considerações acerca do conceito da vaquejada, sob o ponto de vista da cultura, economia e história num aspecto mais social.
Conforme apontado, a vaquejada passou de uma técnica inerente à atividade agropecuária, no sertão nordestino, para uma atividade essencialmente lucrativa, principalmente aos grandes magnatas do ramo, donos de haras e fazendeiros de gado. Inclusive, verificou-se que atualmente a prática é tida como um esporte, sendo um verdadeiro espetáculo, o qual acarreta no emprego de vários.
Todavia, tanto quanto esporte e prática cultural, a vaquejada constitui-se uma prática inerentemente cruel, dado ao abalo físico e psicológico sofrido não somente pelos bovinos, como também aos equinos, em decorrência da prática, dado os estudos apontados por outras áreas do saber.
Aliás, esse é o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal ao ser provocado a julgar as demandas pertinentes ao tema, como a briga de galo, farra do boi, e mesmo a vaquejada, através da ADI 4.983/CE, cujo objeto é a constitucionalidade da Lei cearense n. 15.299/13, a qual elevou a vaquejada à prática à qualidade de atividade desportiva e cultural do Estado do Ceará.
Ora, a vaquejada trata-se especificamente de maus-tratos aos animais envolvidos. Mesmo que as leis que a disciplinam tragam garantias aos participantes envolvidos, incluindo os vaqueiros, gados e equinos, não há como prosperar a ideia de que isso seja sequer possível na prática. A vaquejada é inerentemente cruel, decidiu o STF e os próprios estudos das áreas pertinentes demonstram isso.
Portanto, a Magna Carta não pode trazer uma proibição a qualquer prática que prejudique a fauna, e, logo em seguida, permitir tamanha crueldade só por ser algo cultural. Não é razoável decidir que a farra do boi e a briga de galo, por exemplo, são proibidas e, logo após, promulgar uma Emenda à Constituição Federal permitindo a selvageria contra os animais indefesos.
Onde ficam os direitos dos animais? Onde fica o bom senso? A lucratividade proveniente da vaquejada é suficiente para sobrepor a moral do homem moderno civilizado? Esse é um entendimento que não merece prosperar. As coisas do passado não merecem permanecer na reiteração simplesmente por serem culturais, pois, se fosse assim, a escravidão ainda seria permitida no Estado Democrático pátrio.
Ante todo o dito e demais exposto, partindo da premissa de que o Estado e a coletividade devem promover a proteção da fauna, vedando-se as práticas que submetam os animais à crueldade (BRASIL, 1988) e não são tidas como cruéis as práticas desportivas, entendidas como manifestações culturais, com a utilização de animais (BRASIL, 1988), incluindo a vaquejada, conforme já visto, é possível entender que existe, sim, uma dissonância dentro do texto constitucional da Lei Maior.
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[1]Acadêmico de Direito do Centro Universitário São Lucas.
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