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Violência: o sentido implícito de direito, coerção, liberdade, democracia e autoridade

Resumo: A partir das reflexões de Hannah Arendt, este artigo objetiva observar como a compreensão errônea de Direito, coerção, liberdade, democracia e autoridade está ligada à noção da violência como ferramenta para alcance de uma sociedade mais ordenada. A violência instrumental leva na realidade à modificação desses conceitos, abrindo espaço para uma nova banalidade do mal.[1]

Palavras-chave: Hannah Arendt; Violência; Banalidade do mal; Direito; Democracia.

Abstract: From the questions proposed by Hannah Arendt, this article aims to observe how an equivocated comprehension of law, liberty, democracy and authority is connected to the notion of violence as a tool to achieve a more organized society. The instrumental violence leads, actually, to a new banality of evil.

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Keywords: Hannah Arendt; Violence; Banality of evil; Law, Democracy.

Sumário: Introdução – A visão atual do vocábulo violência e sua influência implícita – Conclusão – Referências bibliográficas

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo uma reflexão sobre a concepção atual das palavras direito, coerção, liberdade, democracia e autoridade. Esses vocábulos aparecem conectados por um terceiro: a violência, que faz papel de sentido tácito, alterando o que realmente se deveria entender sobre tais conceitos. Essa reflexão, baseada nas ideias de Hannah Arendt, contribui para que o indivíduo esteja mais atento às armadilhas que essa ideia subjetiva traz à sociedade atual.

A VISÃO ATUAL DO VOCÁBULO VIOLÊNCIA E SUA INFLUÊNCIA IMPLÍCITA

A violência é vista hoje de formas distintas pelos indivíduos. Existem aqueles que a entendem como extremamente necessária, considerando que no Direito sempre há a coerção, a possibilidade de ligação de atos de força à sanção, e Direito é poder. Nessa visão, desvirtua-se o sentido da palavra, tornando Direito o mesmo do alemão Gewalt (poder ou violência).

Mas sendo uma possibilidade de coação, coação esta que nem sempre é usada, seria mesmo a violência totalmente associada à coerção e ao poder? Por outro lado, há aqueles, como Hannah Arendt, que entendem que essa violência não só não é estritamente necessária, como pode levar a caminhos obscuros já vividos e que ainda rondam nossa sociedade.

A partir de nosso sistema jurídico, cuja base é a liberdade, Arendt se pergunta o que viria a ser esta liberdade, uma vez que considera que há uma antinomia entre a liberdade prática e a não-liberdade teórica, ou seja:

“[…] em todas as questões práticas, e em especial nas políticas, temos a liberdade como uma verdade evidente em si mesma, e é sobre essa suposição axiomática que as leis são estabelecidas”, enquanto “em todos os campos de esforço teórico e científico, pelo contrário, procedemos de acordo com a verdade não menos evidente do nihil ex nihilo, do nihil sine causa, isto é, na suposição de que até mesmo ‘nossas próprias vidas são, em última análise, sujeitas à causação’.” (ARENDT, 2005, p. 189).

Analisando os sistemas totalitários, com suas pretensões de subordinarem todas as esferas da vida às exigências da política e ao consequente descaso com os direitos civis, a autora coloca a dúvida da coincidência da política com a liberdade e até mesmo de sua compatibilidade. Apesar de a sociedade considerar evidente o pensamento de separação entre esses dois conceitos, Arendt afirma que a “raison d’être” da política é a liberdade e essa liberdade é vivida basicamente na ação, ato que afirma assegurar a pluralidade, lei da Terra, condição de toda vida política. Esse princípio de liberdade surge, portanto, com a criação do homem, é o princípio do começo, sendo essa ação “um lembrete sempre presente de que os homens, embora tenham de morrer, não nasceram para morrer, mas para iniciar algo novo”. (ARENDT, 2/2005, p. 175)

Partindo então da sugestão de “pensar o que estamos fazendo”, deve-se refletir sobre a concepção da necessidade da violência, como forma de privação dessa liberdade tão essencial para a continuidade da política. Por que aceitamos a coerção como forma de medo, cuja utilidade é servir de princípio da ação? Por que nos proclamamos não-tirânicos se ainda utilizamos as ferramentas desse sistema? A violência que é tão aparente não nos causa revolta, já que não nos identificamos com os outros, não andamos de mãos dadas, como sugere Habermas. E sem esse reconhecimento, não há pluralidade, não há essa condição política de que precisamos para evoluir como sociedade.

Deve-se ter cuidado na construção dessa sociedade como ‘melhor’, revendo nosso sistema e consertando as ideias que construímos que levam a caminhos distintos do que queremos. Uma dessas ideias é a de que o Direito, especificamente as leis, são garantia de proteção contra o cerceamento da liberdade que os sistemas tirânicos e totalitários trazem. Revendo as experiências totalitárias, não seria difícil notar que não é criada nova legalidade nem substituída a existente. A política usada promete coisas “maravilhosas”, que mesmo hoje, aos olhos dos que não aprendem com situações passadas, pareceriam uma solução: a política pode dispensar o consensus iuris porque promete libertar o cumprimento da lei de todo ato ou desejo humano; e promete a justiça na terra porque afirma tornar a humanidade a encarnação da lei. (ARENDT, 2006, p. 514) E mesmo assim, tentados a acreditar nessa resposta totalitária, afirmamos veementemente que somos democráticos, não totalitários.

O que não se percebe tão claramente é que totalitarismo e democracia são sistemas que se completam. A existência de um totalitarismo sem um pouco de democracia ou de uma democracia sem um pouco de totalitarismo é improvável. O problema é que estamos tão preocupados em deixar claro, em nossas leis, em nossos hábitos, que os termos são contrários, que acabamos por cair no total absurdo de usar de meios totalitários para impor a democracia atual. E um desses meios, talvez o mais perigoso, é a banalização da violência, abrindo caminho para uma banalização do terror, em que se percebe que, quase identicamente ao que acontecia nos regimes totalitários, os termos ‘culpa’ e ‘inocência’ se esvaziam de sentido e às vezes até se confundem. Aquele terror que Arendt analisa, que elimina o indivíduo pelo bem da espécie, é o que se pode observar, embora um pouco mais suavizado, em nossa sociedade, na qual “qualquer sujeito pobre pode ser impunemente filmado e fotografado e humilhado quando detido pela política, e assim as tevês e os jornais ditam a sentença antes que se abra o processo”. (GALEANO, 1999, p. 298)

Não estamos utilizando o terror totalitário quando afirmamos que “bandido bom é bandido morto”? O que ocorre é que, por trás disso, está a ideia de um terror que executa sem mais delongas as sentenças de morte que a natureza supostamente pronunciou, ou que a história decretou. E acreditamos nessas ideias, como alemães e russos acreditaram, respectivamente, que natureza e história deixam de ser força estabilizadora da autoridade para as ações dos homens mortais e se tornam elas próprias movimentos.

Devemos ter em mente também que esta legalidade a que tanto nos agarramos no ímpeto de sermos democráticos, é a mesma que dá início a uma brecha na qual a violência pode atuar, já que impõe limites aos atos, mas não os inspira, sendo que a grandeza das leis nas sociedades livres está em que apenas dizem o que não se deve fazer, mas nunca o que se deve fazer. Portanto, como classificar se o ato é violento, se é injusto, se não se sabe o significado de seus contrários? Pior, como conhecer esses significados, se não nos empenhamos sequer em pensar no que estamos fazendo?

Vamos então praticando pequenos crimes, sem que os percebamos, que juntos vão se somando e abrindo mais caminhos para a atuação violenta. O que se vê perdido é o senso de coerência. Como não se tem uma noção do todo, adotam-se pequenas partes. Por exemplo: um aluno de Direito, que acumula opiniões provenientes de seus formadores, consegue afirmar que a vida é um direito absoluto, de todos o mais importante e o que deve ser mais conservado e, ao mesmo tempo, defender o aborto em todos os casos, em todas as situações, como ferramenta de controle da população menos favorecida. O que faz com que essa pessoa não perceba a incoerência em que incorre? Faltou atuar a visão do todo, olhando se estas opiniões são ou não compatíveis, como a faltou também àquele aluno que, ansioso por se tornar um penalista, usando o direito penal garantista e mínimo, ao ver um caso de pedofilia, afirma que criminosos não têm cura, que devem ser mortos ou, no mínimo, ficar na cadeia para sempre. Quer-se impor uma limitação à liberdade do outro, ao mesmo que tempo que se quer aumentar a própria.

Essa noção leva à tão temida desumanização do homem, que é visto como mera estatística, funcionário e engrenagem do sistema, a burocracia perfeita de que Hitler falava quando afirmou que chegaria o dia em que na Alemanha se consideraria uma desgraça ser jurista. Para fugir da insegurança trazida pela ausência de máximas morais e mandamentos religiosos, na qual os indivíduos têm que decidir sobre cada caso quando ele surge, pela falta de regras, muitos se refugiam na dedução lógica, caindo na situação de súditos perfeitos ao sistema, já que não distinguem fato e ficção nem verdadeiro e falso. E, segundo Arendt,

“[…] o perigo de trocar a necessária insegurança do pensamento filosófico pela explicação total da ideologia e por sua Weltanschauung[2] não é tanto o risco de ser iludido por alguma suposição geralmente vulgar e sempre destituída de crítica quanto o de trocar a liberdade inerente da capacidade humana de pensar pela camisa-de-força da lógica, que pode subjugar o homem quase tão violentamente quanto uma força externa.” (ARENDT, 2006, p. 522)

As incompreensões vividas pelos indivíduos contemporâneos se dão, portanto, em todas as esferas conceituais. Ao mesmo tempo que não se sabe o que é liberdade, também não se sabe o que é democracia. José Saramago, durante um discurso, chega a afirmar:

“[…] o poder do cidadão, de cada um de nós, limita-se, na esfera política, repito, na esfera política, a tirar um governo de que não gosta e a por outro do que talvez venha a gostar, nada mais; as grandes decisões são tomadas numa outra esfera, e todos sabemos qual é. As grandes organizações financeiras internacionais, os FMIs, as organizações mundiais de comércio, os bancos mundiais (…) nenhum desses organismos são democráticos. E como é que podemos continuar a falar em democracia se aqueles que efetivamente governam o mundo não são elegidos direito democraticamente pelo povo? Quem é que escolhe os representantes dos países nessas organizações? Os respectivos povos? Não. Onde está então a democracia?” (SARAMAGO, 2009)

Deve-se refletir que qualquer forma de imposição da democracia é antidemocrática, bem como a tolerância forçada é intolerante. Esse fundamentalismo ocidental tem como consequência a violação de seus próprios fundamentos, o que se torna um paradoxo. Ao utilizarmos a violência como forma de dar continuidade ao sistema democrático, não percebemos a incoerência em que incorremos, já que, afinal, deveria ser o respeito o controlador dessas ações. Certamente, para os cidadãos que vivem em países “não-democráticos” e têm que receber “doses” de democracia por outros países, essa democracia deve ter duplo sentido, assim como “Gewalt, sendo o outro sentido, sustentamos, a violência.

Há ainda outro conceito que se confunde com violência: a autoridade. Segundo Arendt:

“(…) visto que a autoridade sempre exige obediência, ela é comumente confundida com alguma forma de violência. Contudo, a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesmo fracassou. A autoridade, por outro lado, é incompatível com a persuasão, a qual pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação. Onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso. Contra a ordem igualitária da persuasão ergue-se a ordem autoritária, que é sempre hierárquica.” (ARENDT, 2005, p. 129)

A autora entende que, como a definição de autoridade deve ser contraposta à coerção pela força, bem como à persuasão através de argumentos, deveríamos nos perguntar não o que é autoridade, mas o que foi, tendo ela já desaparecido do mundo. E, ainda assim, continuamos falando em autoridade, vendo-a como força, violência, quando na realidade esta nem se faz mais presente.

CONCLUSÃO

Conforme demonstrado acima, pode-se afirmar que a palavra violência é tida como implícita nas ideias de Direito, coerção, liberdade, democracia e autoridade, uma vez que traz a esses conceitos novas concepções, que entendemos que devem ser modificadas de forma urgente, com o afastamento desse vínculo de palavras. Será necessária, portanto, a utilização da lei como ferramenta nesse processo de construção real dos conceitos que cercam a sociedade.

 

Referências:
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. (Coleção Debates)
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
ARENDT, Hannah. Trabalho, obra, ação. In: Cadernos de ética e filosofia política, 7, 2/2005, p. 175-201.
GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. São Paulo: L&PM, 1999.
SARAMAGO, José. Falsa democracia. YouTube. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=m1nePkQAM4w>. Acesso em: 20 jul. 2009.
Notas:
[1] Trabalho orientado pelo Prof. Adamo Dias Alves, Doutorando em Direito e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela PUC/MG. Professor Assistente da Faculdade de Direito da UFJF, ex-coordenador do curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas de Diamantina – FEVALE (2011-2012).
[2] A tradução remete à expressão ‘visões de mundo’.

Informações Sobre o Autor

Lília Carvalho Finelli

Técnica em Gerenciamento de Empresas pelo SEBRAE/MG. Acadêmica de Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Estagiária Voluntária da Divisão de Assistência Judiciária DAJ da FDUFMG


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Equipe Âmbito Jurídico

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