Vítima e multa reparatória no Código de Trânsito brasileiro

A vitimização no trânsito no país é de extrema gravidade. Mais de cinqüenta mil pessoas morrem por ano em acidentes de trânsito no Brasil e, nem o Poder Público investe suficientemente em campanhas educativas e nem a sociedade civil se toca da tragédia que abala os lares de quase todo os brasileiros.


Todos nós, sem exceção, somos vítimas diretas ou não da baderna que é o trânsito brasileiro. O trânsito é um dos bastiões da impunidade e cada vez mais pessoas são vitimizadas. Famílias inteiras são assassinadas por irresponsáveis no trânsito, sendo que a resposta estatal (penal e administrativa) é vergonhosa.


As vítimas são deixadas muitas vezes em situação de total desamparo pelo Poder Público (quando sobrevivem) e os investimentos por parte do Poder Público para reduzirmos essa vitimização a níveis civilizados são irrisórios.


A proteção das vítimas passa pelo fortalecimento do Direito Administrativo no trânsito e com a atuação eficaz e preventiva dos agentes de trânsito. É muito fácil falar em princípio da intervenção mínima do Direito Penal no trânsito, mas ninguém quer assumir a conta da vitimização de trânsito no Brasil.


É nefasta a influência de políticos no âmbito municipal, muitas vezes tentando impedir o agente de trânsito de agir dentro da legalidade, fiscalizando e aplicando as multas administrativas dentro da legalidade.


Em muitos lugares no Brasil, o direito administrativo do trânsito é tão frágil que policiais que atuam eficazmente no sentido de defender a coletividade são removidos de suas unidades, atendendo a pedidos de políticos ou pessoas influentes, em claro detrimento dos reais interesses da sociedade civil.


Vê-se que a vítima de trânsito está completamente abandonada, pois enquanto os órgãos de trânsito tentam aplicar a cultura da prevenção nos municípios, algumas pessoas, com o interesse claramente pessoal ou político, fazem passeata, protestam em via pública, determinam que os comerciantes fechem os estabelecimentos comerciais etc, com o claro intuito de intimidar os agentes de trânsito.


Todavia, quando uma pessoa é vitimizada num acidente de trânsito, não aparece uma voz na multidão para fazer uma passeata ou exigir ajuda para a vítima ou sua família.


Talvez, por isso, tenha o novo Código Brasileiro de Trânsito inovado (e deixado perplexos alguns estudiosos) com a introdução de um instrumento de efetivo auxílio à vítima criminal que é o instituto da polêmica multa reparatória.(01)


Cezar Roberto Bittencourt ensina que tem predominado o entendimento de que o dano sofrido pela vítima do crime não deve ser punido, mas reparado pelo agente. Enfim, os argumentos são os mais variados, mas acabam todos produzindo sempre uma mesma e injusta conseqüência: o esquecimento da vítima do delito, que fica desprotegida pelo ordenamento jurídico e abandonada por todos os organismos sociais que, de regra, preocupam-se somente com o agente, e não com a vítima. Na realidade, diz o mestre, como tivemos oportunidade de afirmar, “os acenos que mais se aproximaram de uma pálida tentativa de reparar uma das mais graves injustiças que o Direito Penal, historicamente, tem cometido com a vítima referem-se à multa reparatória”.(02)


Na tradição de nossos códigos de trânsito, só conhecíamos a multa administrativa. Portanto, sem nenhuma possibilidade de converter-se em pena privativa da liberdade, mesmo quando a multa indevidamente não fosse paga. Não era assim na legislação de trânsito mais antiga, germânica, italiana, francesa, suíça e de outros países mais civilizados. As infrações de trânsito, mesmo leves, constituíam infrações penais, com suas características e conseqüências, aplicadas pela Justiça Penal. Com o surto moderno da descriminalização, isto é, retirar o caráter de crime das infrações menos graves, foram transformadas, em geral, em infrações administrativas. As conseqüências sociais decepcionaram, como registram insignes mestres, dentre eles G. Vassali, W. Middendorff, G. Kaiser, J. Chazel e outros, também nos EUA.(03)


O artigo 297 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97) prevê que, em caso da ocorrência de vítimas em crime de trânsito, a penalidade de multa reparatória consiste no pagamento, mediante depósito judicial em favor da vítima, ou de seus sucessores, de quantia calculada com base no disposto no § 1o do artigo 49 do Código Penal, sempre que houver prejuízo material resultante do crime. Diz ainda o parágrafo primeiro do referido artigo que a multa reparatória não poderá ser superior ao valor do prejuízo demonstrado no processo.


A multa reparatória, paga diretamente à vítima, e não recolhida aos cofres públicos traz em seu espírito uma conquista singular para as vítimas, já que as mesmas, poderão muitas vezes, serem ressarcidas de seus danos sem terem de recorrer posteriormente ao juiz cível em busca da reparação do prejuízo acarretada pelo crime de trânsito.


Importante registrar ainda que a multa reparatória não tem nenhuma ligação com a multa administrativa aplicada pelo agente de trânsito durante a lavratura do auto de infração.


Arnaldo Rizzardo registra que, inicialmente, cumpre lembrar que acerbas críticas foram levantadas pelos criminalistas e que, em seu entendimento, nem seria de aplicar a multa em questão, máxime porque não prevista nas figuras tipificadas como infrações, sequer como crimes. Damásio E. de Jesus revela o pensamento generalizado; “O artigo 297, isolado entre as outras disposições, sem maiores explicações, permite ao intérprete, numa primeira visão, ficar em dúvida sobre a natureza da multa reparatória: medida de natureza penal (pena alternativa) ou civil, ligada à antecipação da reparação do dano”.(04)


Discute-se, inclusive, sobre a constitucionalidade ou não da referida multa reparatória (Pela inconstitucionalidade, entre outros: William Terra de Oliveira, Paulo José da Costa Júnior e Maria Elizabeth Queijo) e acerca de sua natureza jurídica, se penal ou cível.


Luiz Flávio Gomes ensina que a razão central da introdução dessa multa entre nós reside no seguinte: as vítimas, em geral, particularmente as de delito de trânsito, contam com a dificuldade enorme de receber o quantum da indenização devida. Enquanto corre a ação penal, podem ingressar com ação civil. Mas esta nem sempre é rápida e, de outro lado, existe o risco de conflito de julgados (civil e penal). De outra parte, sabe-se que a vítima pode executar civilmente a sentença penal condenatória. Ocorre que esta é ilíquida. Sendo assim, o melhor sistema parece ser o contemplado no novo CTB.(05) 

É de se registrar que o prejuízo que poderá ser objeto da multa reparatória e a ser mensurado nos autos do processo é o material, incluindo o pessoal, mas excluindo-se o prejuízo moral. Havendo prejuízo moral, deve ser buscado o seu ressarcimento na seara cível. Na indenização civil do dano, o valor da multa reparatória deverá ser descontado, a fim de se evitar o enriquecimento indevido por parte da vítima.


O espírito do instituto pode ser observado nas seguintes decisões:


“Resta a prestação pecuniária imposta em favor da família da vítima, contra a qual se insurge. Cem salários mínimos, convenha-se, não se afigura quantia excessiva; a vida da vítima valia muito mais, certamente. E aqui está a se tratar de pena, solvendo a importância estipulada, não faz o réu favor algum a ninguém”(TACRIM-SP – AC 1211661/1 – Relator Luiz Ambra).


“Nos crimes de trânsito, se dos autos não há prova do prejuízo material resultante do delito, inadmissível se torna a incidência da multa reparatória prevista no artigo 297, § 1o, da Lei 9.503/97” (Ap. 1.172/697/1 – 5a. Câmara – J. 10.05.00 – Relator Paulo Vitor – RT 783/634).


O instituto é polêmico e causa uma certa adversidade entre os doutrinadores, mas superada essa dificuldade inicial de torná-lo efetivo e comum no dia forense, com certeza demonstrar-se-á que é um dos melhores instrumentos de assistência ao grupo de vitimizados que são os decorrentes de crimes de trânsito.


Por fim, registro que esse tema e outros relativos às vítimas criminais estão abordados em meu livro “Vítima e Direito Penal”, que será lançado em abril de 2002 pela Editora Mandamentos, Belo Horizonte, MG, (www.mandamentos.com.br).


 


Notas de fim:

(01) Rogério Felipeto lembra que a multa reparatória, como inovação que é, vem recebendo as mais diversas críticas. Ao seu ver, elas podem ser reputadas á nova percepção que o legislador passou a ter da vítima, que é estranha a nossa tradição protecionista e garantista do acusado, comum a nosso sistema jurídico. Com efeito, a sistemática toda se coloca no sentido de proteger o indivíduo (acusado) de uma sanha punidora do Estado, que nem sempre corresponde á realidade. FELIPETO, Rogério. Reparação do dano causado por crime. Belo Horizonte, Del Rey, 2001, p. 120.

(02) BITENCOURT, Cezar Roberto. Alguns aspectos penais controvertidos do código de trânsito. RT 754/480.

(03) ABREU, Waldyr de. Código de trânsito brasileiro – infrações administrativas, crimes de trânsito e questões fundamentais, São Paulo, Saraiva, 1998, p. 140.

(04) RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao código de trânsito brasileiro, 3 ed, São Paulo, RT, 2001, p. 648.

(05) GOMES, Luiz Flávio. Código de trânsito brasileiro (Lei 9503/97) – parte criminal: primeiras notas interpretativas in Estudos de Direito Penal e Direito Processual Penal, São Paulo, RT, 1999, p. 25.

Informações Sobre o Autor

Lélio Braga Calhau

Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Pós-Graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Direito do Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho (RJ). Segundo diretor-secretário do ICP – Instituto de Ciências Penais do Estado de Minas Gerais. Autor do livro Resumo de Criminologia, 4ª edição, Impetus, 2009. Membro da American Society of Criminology


Equipe Âmbito Jurídico

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