Resumo: A história da democracia no Brasil é recente. Sua construção e consolidação ainda clamam por uma melhor compreensão dos preços que a democracia cobra, como a livre expressão nas arenas públicas e sua importância, assim como a necessidade de se assegurar a real igualdade de condições básicas que habilitem todos os cidadãos a uma participação efetiva na edificação das diretrizes normativas, tornando-se atores da vida política nacional; elementos estes indispensáveis ao desenvolvimento econômico e social do país. Em momentos de crise poítica e ética, os recorrentes apelos à modelos totalitários, a história já registrou, aqui e alhures, são incapazes de prover os resultados desejados, reproduzindo, ao revés, padrões históricos de injustiça e involução social.
Palavras-chave: Democracia. Igualdade. Espaço Público. Liberdades.
Abstract: The history of democracy in Brazil is incipient. Its construction and consolidation still claim for a better understanding of the prices that democracy imposes, such as the free expression in public arenas and its importance, as well as the need to secure actual and equal basic conditions that allow citizens to effective take part in the building of normative policies, and therefore taking part as actors in the country’s political agenda; these elements are essential to the economic and social development of the country. And during political and ethical crisis, history has shown that recurrrent references to totalitarian models are incapable of producing the desired results and, rather, will often reproduce patterns of historic injustice and social regression.
Keywords: Democracy. Equality. Public Sphere. Freedoms.
Em 1981, o professor Amartya Kumar Sen[1] publicou trabalho[2] a respeito da fome e da miséria no mundo e sua correlação com eleições democráticas e liberdade de imprensa. Mais tarde, com a obra Desenvolvimento como Liberdade[3], reafirmou boa parte de suas premissas, ao assentar sobre bases empíricas sólidas a constatação de que a democracia e a redução da desigualdade socioeconômica caminham juntas.
Neste sentido, a contribuição principal de uma constituição para o Estado é senão o fortalecimento do ambiente democrático, lançando seus pilares fundamentais e estabelecendo o caminho a ser seguido para sua instalação, proteção e aprimoramento. Logo se conclui, assim, que a democracia não é apenas um regime político desejável para a promoção do bem-estar coletivo dos membros da comunidade política, mas também condição de possibilidade para a erradicação das diversas formas de alienação e desfavorecimento de determinados segmentos da população, pelo que se torna a constituição seu instrumento formal e material de realização.
A democracia é o governo de todos e para todos, e não apenas de “alguns”. Assim, a inspiração iluminista que a consagrou também lançou nos textos constitucionais contemporâneos, como corolários lógicos de sua construção, os pilares da igualdade e da liberdade como seus principais sustentáculos. A igualdade condiciona a moralidade intrínseca do texto constitucional, sem contudo deixar de refletir as distintas cores e formas, ou razões e argumentos, que compõem a diversidade de preferências políticas, morais e religiosas. A seu turno, as liberdades importam, a um só tempo, na autorrealização pessoal e coletiva enquanto materializadoras do livre exercício das faculdades e escolhas elementares a respeito da própria vida, como ir e vir, fazer o que a lei não proíbe, contratar, trabalhar, casar etc.; e também em instrumentos assecuratórios, alimentadores e reprodutores da democracia, como a participação política, a liberdade de expressão, o direito de reunião pacífica e o acesso livre à informação pública, entre outros.
Mas, há motivos de sobra em nossa incipiente experiência democrática para se suspeitar que, decorrido quase um século e meio desde a edição da Lei Áurea e a fundação da República, liberdade e igualdade não sejam conquistas consolidadas no Brasil. E que muito há ainda por ser feito para tirar o País do acostamento da estrada democrática; ou, em algumas situações mais graves, da contramão. A verificação irrefutável do abissal descompasso entre algumas das promessas da Constituição de 1988 e a situação socioeconômica de ingentes parcelas da sociedade brasileira põe em xeque a realização da democracia em sua plenitude, na medida em que, para muitos, nada mudou nos cem anos que mediaram o início da República e a promulgação da Constituição cidadã. Ademais, as fendas em nosso semi-árido terreno social radiografam a porosidade da estrutura jurídico-política que pretende alicerçar nossa progressão rumo a uma sociedade justa e igualitária.
Igualdade e liberdade constituem pontos cardeais de referência para a navegação dos poderes constitucionalmente estabelecidos pelo mares do político e do jurídico. E suas atividades principais – deliberação parlamentar, jurisdição constitucional e implementação de políticas públicas – são meios e não fins em si próprios. Estão a serviço das diretrizes constitucionais e seus destinatários, os cidadãos, sendo-lhes vedado enveredar por trilhas estranhas ao espaço democrático, únicas legitimadas pelo consentimento deliberativo da sociedade. E se debilidades existem, é possível delas inferir que a atuação dos Poderes do Estado, em sua vasta área de abrangência, é ainda deficiente, por incapaz de cumprir os desideratos que lhe justificaram a existência.
Mas, o Estado constitucional, como instituidor e produto da democracia, não é um projeto acabado, nem assim se pretende. É uma obra em andamento, assim como a própria democracia, ambos adquirindo contornos e conteúdos que variam ao longo da história das sociedades. Não diferente, no Brasil, com suas peculiaridades e vicissitudes. Entretanto, a autorreflexão da comunidade política não pode abjurar a experiência que os registros históricos oferecem, nem seu compromisso com a realidade hodierna. De onde se veio, onde se está e para onde se pretende ir são requisitos inafastáveis da inteligência reflexiva, seja da sociedade, seja da comunidade que pensa o Direito. Em outras palavras, há que se reconhecer os erros do passado e admitir que muito ainda há por ser feito.
Neste cinquentenário do golpe de 64, por incrível coincidência cronológica (ou não), o País atravessa um momento de diversas transformações rápidas no espaço público, com a erupção espontânea e quase simultânea, em distintas localidades, de manifestações populares várias, nenhuma das quais se deve deixar de identificar motivações e aspirações, porque, de uma forma ou de outra, revelam tensões existentes em nossa sociedade. Maior ainda deve ser o cuidado com as interpretações dos fatos levadas a cabo por órgãos de comunicação de massa, pois, como a história já demonstrou, nem sempre traduzem sua realidade.
O espaço público é o lugar por excelência da exposição das razões políticas pelos membros da comunidade, da negociação dos interesses contrapostos, do diálogo e da troca de ideias. Lá, revelam-se sentimentos de esperança e receio, cuja conjugação pública enseja conflitos. E no seio destes, dá-se a evolução da dúvida para a opinião, possibilitando, eventualmente, certezas. Opiniões, portanto, não se produzem por “formadores de opinião”; elas se formam na consciência dos indivíduos, conforme exercem o direito ao uso da razão no espaço público. Logo, elas viabilizam-se no e pelo diálogo. E, por isso mesmo, opiniões diferem-se dos fatos, em estrutura e conteúdo. No mesmo diapasão, e mais importante ainda, há que se distinguir excessos e essência, sob pena de se confundir a moldura com a tela.
Repise-se a relevância de se relembrar a história para evitar erros do passado. Embora difiram as condicionantes e contingências, no afã de se atender à tão desejada paz social, já se voltam a ouvir propostas sofismáticas para a solução imediata dos profundos e graves problemas existentes, muitos dos quais serviram de combustível para as manifestações. Como já indica o velho provérbio alemão, não há soluções fáceis para problemas complexos. Noutro giro, cumpre salientar, por ser o que realmente importa, aquele elemento que direta ou indiretamente, sutil ou explicitamente, tem sido comum a todas as manifestações: a demanda por accountability dos agentes do Estado. Conceito este de difícil tradução para o vernáculo, mas que possui robusta matriz democrática, uma vez que aproxima representantes e representados, porquanto reclama por prestação de contas e pela justificação do exercício do poder na medida certa do dever.
Nada disto, todavia, subtrai os méritos e virtudes de uma sociedade que, como tantas outras localizadas abaixo da linha equatorial, labora diturnamente para livrar-se das redes de opressão veladas, da desigualdade escamoteada e das dificuldades econômicas, sociais e políticas de toda ordem. Se é verdade que a caminhada ainda é longa na persecução dos ideais de liberdade e igualdade, também se deve reconhecer que muito já se fez.
Entretanto, não se devem perder de vista as constatações de Amartya Sen, de que não prospera o desenvolvimento onde ausentes liberdades e igualdade. E que o exercício das primeiras possa coexistir pacificamente com as desigualdades inerentes à diversidade e complexidade, mas que não se tornem uma afronta a parâmetros razoavelmente justificáveis do que seja dignidade humana. Esse, o desafio.
A história não é um dado; antes, um construído. É como uma grande esfera em contínuo movimento, dentro da qual se agitam os milhares de cidadãos; agitação esta cuja resultante é a própria história em seu caminho oscilante. Ou, nas belas palavras de Antônio Machado: “caminante, no hay camino, se hace camino al andar”.
Advogado. Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UCAM/RJ. Ex-professor do Departamento de Direito da PUC-Rio. Sócio do Escritório Leonardo Lobo Advogados no Rio de Janeiro
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