Coisa julgada e prescrição – aplicação no caso concreto – teoria da tríplice identidade – repercussão nos direitos trabalhistas


A discussão versa sobre caso concreto em que há discussão acerca dessas matérias, tendo em visto que a parte reclamada alegou que, na hipótese de não acolhimento da coisa julgada, o julgador deveria reconhecer a prescrição, porque se entendesse ser o pedido diverso a ação anterior não teria interrompido a o lapso prescricional.   


Vivemos em um Estado de Democrático de Direito que, como fórmula política escolhida, traduz os ideais de um povo em determinado momento histórico em busca da efetivação de uma convivência pacífica e harmônica. A coisa julgada constitui exatamente a concretude de um ideário político no sentido de efetivar a segurança jurídica que almeja um Estado preocupado com estabilidade das relações socais. Com efeito, é dever do ente político estatal resolver os conflitos de interesses qualificados por uma pretensão resistida. É ele que deve manter a ordem, promover a segurança, proteger as pessoas e seus bens.


A Carta Magna apresenta em seu artigo 1º, inciso III, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana, considerando este ser como valor fundamental. Algo que vale por si mesmo, pela simples razão de existir. Quer-se, com isso, dizer que o ser humano, independentemente de seu status social, tem valor imensurável; não constitui um instrumento, mas um fim em si mesmo. Immanuel Kant, citado por Ingo Wolfgang Sarlet, conceitua a dignidade da pessoa humana “como fim não como meio, o que serve para robustecer toda linha do pensamento voltada contra qualquer tendência de coisificação ou instrumentalização do ser humano”.


Exsurge da concepção Kantiana que o ser humano, como valor em si mesmo, é relevante, não somente em sua dimensão individual, mas também social, por isso, a proteção voltada para o homem, no contexto jurídico pós-moderno, deve ser observada sob todos os aspectos. Assim, a honra, a dignidade, a inviolabilidade da intimidade, a integridade física, a liberdade, bem como o direito ao alimento, à moradia, educação, saúde, lazer e segurança devem ser assegurados, porque é o mínimo para garantia de uma vida digna.


Ora, tanto a coisa julgada, quanto a prescrição são institutos que visam garantir a segurança jurídica no sentido de viabilizar a harmonia social.


O Direito pátrio atribui à coisa julgada o status de direito fundamental, conferindo-lhe a autoridade de imutabilidade, visto que nem mesmo por ato do Poder Legislativo derivado pode ser alterada. Com efeito, conceitua-se coisa julgada como a qualidade que torna imutável e indiscutível o comando da sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário. Traduz a preclusão endo e/ou pan-processual. Sob o primeiro enfoque, tem-se a coisa julgada formal e, pelo segundo, a coisa julgada material.


A coisa julgada formal tem alcance limitado ao processo em que foi proferida a sentença, impedindo que naquele feito se reabra a discussão sobre as questões decididas; já a coisa julgada material tem alcance mais amplo, tornando o conteúdo da sentença indiscutível em qualquer outro processo. Tal conteúdo pode ter caráter declaratório, constitutivo ou condenatório, o certo é que não pode mais ser discutido em outra demanda. Trata-se de uma medida política para assegurar a estabilização do comando da sentença que se torna lei entre partes.


Por ser de grande relevância, o artigo 301, § 3º, do CPC estabelece que ocorre a coisa julgada quando se repete ação já decidida por sentença contra a qual não caiba mais recurso. Adota, como requisito para configuração desse fenômeno, a teoria da tria eadem, ou seja, da teoria da tríplice identidade, segundo a qual duas demandas são idênticas quando têm as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, conforme se vê no § 2º do dispositivo citado. O pedido, por sua vez, se desdobra em pedido imediato e mediato. O primeiro é o provimento jurisdicional e o segundo, o bem da vida pretendido.


Para verificação desse fenômeno é necessário que na ação julgada e na nova ação proposta estejam presentes todos os elementos que a lei discrimina, ou seja,  que  as partes, a causa de pedir e o pedido sejam idênticos em todos os aspectos. Assim, devem estar presentes os mesmos demandantes, a mesma relação jurídica, o mesmo provimento jurisdicional e os mesmos bens da vida pretendidos.


Dessa forma, se em uma ação já julgada as partes são iguais, a relação jurídica é a mesma e os bens pretendidos idênticos, mas há divergência quanto ao provimento jurisdicional, não há coisa julgada. Isto porque a hermenêutica que se deve realizar da teoria da tríplice identidade é aquela que corresponde a seu fim primordial, que é exatamente garantir a segurança jurídica não apenas no aspecto da harmonia social, mas, principalmente, de efetivação da justiça, no sentido de conferir a cada um aquilo que é seu.


Neste diapasão, se alguém ingressa em juízo buscando um provimento jurisdicional que se revela inadequado para a tutela de seu direito, nada obsta que possa ajuizar nova ação pleiteando a tutela adequada. Pensar do contrário seria um atentado ao próprio Estado Democrático de Direito, que assegura o amplo acesso a Justiça, em busca da efetivação da justiça. 


Nesse passo, se numa ação trabalhista o reclamante pede o reconhecimento de vínculo de emprego com empresa “A”, pedido também a responsabilidade solidária da empresa “B” e, tendo o julgador entendido, pela análise das provas, que o vínculo deveria se formar com a empresa  “B” e não com a empresa “A”, julgando improcedentes os pleitos, por não ter havido pedido no sentido inverso, nada obsta que o reclamante  ajuíze nova ação pleiteando o vinculo laboral com “B” e a responsabilidade subsidiária de “A”. Trata-se de provimento jurisdicional diverso. Portanto não há coisa julgada porque o pedido imediato não é idêntico ao da primeira ação.


A coisa julgada, no caso exemplificado, somente se restringe à formação da relação de emprego com a empresa “A”, porém isto não impede que esta venha responder a outro título.


E como fica a Prescrição?


É certo que o direito de ação sujeita-se a prazo, que  deve ser avaliado segundo a atitude do titular do direito violado, porque a norma pátria prevê as hipóteses em pode tal lapso temporal ser interrompido, suspenso e até mesmo impedido de correr, como se vê  nos artigos 197 a 204 do Código Civil.


A prescrição, segundo a nova concepção adotada no sistema pátrio, consiste na perda da pretensão, ou seja, do direito de exigir a tutela jurisdicional face à inércia do titular de um direito violado. Pode ser aquisitiva ou extintiva. No Direito do Trabalho a prescrição extintiva apresenta-se mais relevante. Traduz, por via oblíqua, uma renúncia tácita aos direitos laborais.


Via de regra, nasce a prescrição no momento em que o direito é violado. Trata-se da aplicação da teoria da actio nata, também aplicável nas relações trabalhista.


No caso acima ilustrado, se decorridos mais de dois anos do fim da relação jurídica, ainda assim, não ocorreu a prescrição para a nova ação. Isto porque o simples fato de não ser acolhida a coisa julgada, em razão da inexistência de identidade de pedido, não significa dizer que isso implique em prescrição.  Ora, esses dois institutos jurídicos não se fundam na mesma circunstância factual. Não se confundem e nem são incompatíveis entre si, ao ponto de um excluir o outro.


A coisa julgada decorre do fato da demanda já haver sido objeto de prestação jurisdicional, traduzindo uma preclusão, que impede nova análise das questões decididas. A prescrição, por sua vez, impede a atuação jurisdicional, traduzindo a perda do direito da pretensão e, por via, reflexa, a perda do direito material pretendido diante da inércia do titular. Em outras palavras, é a própria análise da demanda que fica obstada.


No caso, o bem da vida pretendido que sofre os reflexos do fenômeno da prescrição constitui o objeto do pedido mediato da ação, que são os direitos trabalhistas não atingidos pelo lapso prescricional porque foram objeto de ação anteriormente ajuizada em face das empresas “A” e “B”. Isto porque os bens da vida pleiteados nas duas ações são os mesmos, ou seja, o pedido mediato é o mesmo, não havendo, portanto, a inércia da titular do direito.


Dessa forma, como o pedido mediato é idêntico ao da primeira, houve interrupção da  prescrição. Enquanto o pedido imediato é diverso, o que implica na não ocorrência a coisa julgada. Logo, nenhum dos institutos estão presentes na situação ilustrada. E, assim, deve o julgador decidir o caso normalmente porque o prazo prescricional começou a correr a partir do trânsito em julgado da primeira ação.



Informações Sobre o Autor

Francisca Reis da Silva Barros


logo Âmbito Jurídico