Resumo: No presente estudo procuraremos dissertar sobre a ação de usucapião, em seus aspectos material e processual. A ação de usucapião está prevista no CPC no Livro IV – Dos Procedimentos Especiais, Título I – Dos Procedimentos Especiais de Jurisdição Contenciosa, disciplinada nos artigos 941 a 945. É, dessa forma, uma ação de conhecimento, de jurisdição contenciosa, classificada como procedimento especial, com particularidades que a diferenciam do procedimento ordinário.
Palavras-chave: Usucapião; Procedimento especial; civil; constitucional.
Sumário: 1.Introdução. 2. Usucapião: considerações preliminares. 3 Previsões constitucionais sobre o usucapião. 3.1 O usucapião especial urbano ou pro morare; 3.2 O usucapião especial rural ou pro labore. 4. Disposições do novo código civil. 5 O usucapião extraordinário. 6 O usucapião ordinário. 7. Conclusões. 8. Bibliografia
1. Introdução
A usucapião é modo originário de aquisição do domínio, através da posse mansa e pacífica, por determinado espaço de tempo, fixado na lei. É uma das formas de aquisição da propriedade, do domínio sobre o bem, forma originária, independente de relação com o antigo proprietário.
CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA define usucapião como sendo: “a aquisição da propriedade ou outro direito real pelo decurso de tempo estabelecido e com a observância dos instituídos em lei[1]”.
Por conseguinte, através da ação de usucapião, possibilita-se que, caso haja a ocorrência de determinada situação de fato, que, sem ser perturbada, se alongou pelo intervalo de tempo determinado na lei, essa situação fática se transforme em uma situação jurídica. Assim, se o possuidor, sem ser molestado em sua posse (que por isso é mansa e pacífica), exerce sobre a coisa os poderes inerentes ao domínio por um certo lapso de tempo, permite-lhe a lei obter declaração judicial capaz de conferir-lhe o domínio, depois da respectiva transcrição.
A atitude do proprietário que, descurando-se de suas obrigações, abandona o bem, atenta contra a sua função social, prescrita na Constituição e, portanto, esvazia-lhe a proteção que o direito outorga à qualidade dominial do particular remisso.
O justo destaque que a função social da propriedade vem obtendo no atual panorama constitucional, com reconhecimento expresso em mais de um dispositivo da Lei Magna (art. 5º, XXIII, e 170, III), torna-a capaz de vincular o exercício absoluto da garantia do direito de propriedade.
CELSO RIBEIRO BASTOS[2] ensina que “a função social visa a coibir as deformidades, o teratológico, os aleijões, digamos assim, da ordem jurídica”.
JOSÉ AFONSO DA SILVA[3] afirma que a Constituição está alinhada com a doutrina da função social da propriedade urbana, que “é formada e condicionada pelo direito urbanístico a fim de cumprir sua função social específica”. Entre estas funções destaca o autor a de propiciar habitação, trabalho e demais funções sociais da cidade. O direito de habitação ou moradia se apresenta como direito fundamental nos dias atuais estando intimamente ligado a questão da propriedade.
A Constituição Federal em seu artigo 170, II e III, inscreve a propriedade privada e sua função social como princípios da ordem econômica, dando à propriedade uma importância maior do que considerá-la mero direito individual. A Carta Magna em seu art.5º, XXII e XXIII também inseriu a função social como direito fundamental ao lado do direito de propriedade.
Sobre o assunto, esclarece o Professor INGO WOLFGANG SARLET[4]:
“…cremos ser possível afirmar que os direitos fundamentais sociais, mais do que nunca, não constituem mero capricho, privilégio ou liberalidade, mas sim, premente necessidade, já que a sua supressão ou desconsideração fere de morte os mais elementares valores da vida e da dignidade da pessoa, em todas as suas manifestações. A eficácia (jurídica e social) do direito à moradia e dos direitos fundamentais sociais deverá, portanto, ser objeto de permanente e responsável otimização pelo Estado e pela sociedade, na medida em que levar a sério os direitos (e princípios) fundamentais correspondente, em última análise, a ter como objetivo a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, por sua vez, a mais sublime expressão da idéia de justiça…”
No presente estudo procuraremos dissertar sobre a ação de usucapião, em seus aspectos material e processual. A ação de usucapião está prevista no CPC no Livro IV – Dos Procedimentos Especiais, Título I – Dos Procedimentos Especiais de Jurisdição Contenciosa, disciplinada nos artigos 941 a 945.
É, dessa forma, uma ação de conhecimento, de jurisdição contenciosa, classificada como procedimento especial, com particularidades que a diferenciam do procedimento ordinário.
2 – Usucapião: considerações preliminares
A usucapião é modo originário de aquisição da propriedade ou de qualquer outro direito real de gozo (como usufruto, superfície, servidão, uso, habitação, enfiteuse, concessão de uso), mediante posse do bem, com animus domini, posse mansa, pacífica e ininterrupta, pelo prazo previsto em lei.
Os requisitos da ação de usucapião dependem da espécie do instituto que esteja sob análise, conforme veremos a seguir, são comuns, entretanto, os seguintes: posse, tempo, animus domini e objeto hábil[5].
Quanto aos requisitos pessoais para a ação de usucapião, temos que o autor deve ser pessoa capaz e que tenha qualidade para adquirir por esse meio (art.1244 e 197-198 do Código Civil). O condômino, em princípio, não pode usucapir contra os demais comunheiros.
No que tange aos requisitos reais: deve ser o objeto a ser usucapido suscetível de posse e que não esteja fora do comércio. Os bens públicos, como os terrenos de marinha, por exemplo, em princípio não podem ser usucapidos, embora possam ser objeto de concessão de uso especial para fins de moradia[6]. É interessante notar que Abaixo transcrevemos algumas decisões recentes do STJ que dispõe sobre o assunto em comento:
“REINTEGRAÇÃO DE POSSE. BEM PÚBLICO. IMÓVEL INSUSCETÍVEL DE USUCAPIÃO. ALEGAÇÃO REJEITADA. ESBULHO RECONHECIDO. I – Tendo o Tribunal a quo reconhecido o esbulho praticado contra o imóvel do autor da ação de reintegração de posse, bem como rejeitado a alegação de usucapião, por se tratar de bem público, haveria de ter julgado totalmente procedente o pedido, não apenas parcialmente, como o fez. É evidente a contradição da sentença – a cujas conclusões remete o acórdão recorrido – porque em um trecho de sua fundamentação consta que o pedido deve ser julgado totalmente procedente e, do dispositivo, consta que se julga parcialmente procedente a ação. II – Recurso especial provido.” (REsp 953151 / SP RECURSO ESPECIAL 2007/0112842-7 Relator(a) Ministro FRANCISCO FALCÃO T1 – PRIMEIRA TURMA Data do Julgamento 11/09/2007 Data da Publicação/Fonte DJ 08/10/2007 p. 239 REPDJ 22/11/2007 p. 205)
“AÇÃO DISCRIMINATÓRIA. USUCAPIÃO. TERRAS DEVOLUTAS.
Trata-se de ação discriminatória ajuizada em decorrência de extinção de ação anterior por desaparecimento de volumes em incêndio no fórum da comarca. Nas instâncias ordinárias, reconheceu-se a inexistência da coisa julgada e a inocorrência da alegada litispendência, porque a ação foi extinta sem resolução do mérito; o caso seria de continência. Afastou-se a impropriedade do procedimento adotado, uma vez que a ação discriminatória não é obstada pelo registro das terras em nome do particular nem exige sua previa invalidação. Rejeitou-se, ainda, o litisconsórcio necessário com todos os antecessores dominiais. Além de que, na cadeia dominial, foram apontados diversos vícios e há comprovação de falsidade de assinatura. Por fim, ausentes os requisitos para o usucapião extraordinário previstos na legislação, (principalmente o DL estadual n. 14.916/1945). Consignou também o acórdão recorrido que a natureza das terras foi comprovada a contento, devido aos vícios na cadeia dominial e à inexistência do usucapião extraordinário. Destaca o Min. Relator que, para o estado-membro provar que as terras são devolutas, ele tem de infirmar o domínio particular, embora haja o registro, bem ou mal, em nome da recorrente, daí a via da discriminatória ser adequada. Outrossim, é absurda a pretensão de chamar todos os transmitentes à lide, pois a cadeia dominial retroage ao século XIX, o que inviabilizaria qualquer discriminação de terras devolutas, além de que foge ao objeto da ação. Quanto ao usucapião, observou que é evidente se reconhecida a competência federal para tratar do assunto, não poderia o estado-membro, em 1945 (lei estadual), pretender regular a questão já vedada por norma federal desde 1933. Inclusive o STF já firmou entendimento de que o usucapião de terras públicas é vedado desde o advento do CC/1916 (Súm. n. 340-STF). Ressaltou, ainda, que, se a falsidade do documento de registro paroquial não tivesse sido comprovado, restaria a discussão acerca de sua natureza jurídica. Ademais, a posse não se presume, vedação essa que vale tanto para a prova da sua existência no mundo dos fatos como para o dies a quo da afirmação possessória. Por último, afastou a multa de 1% sobre o valor da causa, considerando que os embargos de declaração opostos tiveram propósito de prequestionamento. Com esse entendimento, a Turma conheceu parcialmente do recurso e nessa parte deu-lhe provimento. REsp 847.397-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 12/2/2008.
OCUPAÇÃO. ÁREAS PÚBLICAS. TERRACAP.
Foi ajuizada ação de manutenção de posse contra a Terracap – Companhia Imobiliária de Brasília – de uma área de terra de 35 hectares. O acórdão recorrido admite que o terreno litigioso pertence ao Poder Público e classifica-o, sem muita segurança, como terras devolutas. Ainda que se trate de terras devolutas, elas não perdem a natureza de bem público. Cuidando-se, no caso, de bem público integrado ao patrimônio imobiliário do Distrito Federal e administrado pela Terracap, o imóvel não é passível de apossamento por particular nem tampouco de usucapião (Súm. n. 340-STF). O autor não tem a posse do terreno, mas a mera detenção decorrente da tolerância ou permissão do Poder Público. Cuida-se de uma ocupação precária, ainda que exercida por vários anos. Por isso mesmo, é passível de reclamação da Administração a qualquer tempo. A Turma conheceu do recurso e deu-lhe provimento a fim de julgar improcedente a ação. O autor é beneficiário da justiça gratuita, somente pagará as custas processuais e os honorários arbitrados em duzentos reais, caso se verifiquem as hipóteses do art. 12 da Lei n. 1.060/1950. Precedentes citados: REsp 341.395-DF, DJ 9/9/2002, e REsp 146.367-DF, DJ 14/3/2005. REsp 489.732-DF, Rel. Min. Barros Monteiro, julgado em 5/5/2005. (Sublinhamos)
Além disso, a súmula 340 do STF já previa que: “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”.
Bens de família e bens societários podem ser objeto de usucapião. Senão vejamos:
“IMÓVEL. USUCAPIÃO. BEM DE FAMÍLIA
Cuida-se de ação reivindicatória sob a alegação de que os réus ocupam indevidamente parte do imóvel. Esclarecem que, em 1952, seu pai, por escritura pública de compra e venda e instituição de bem de família, adquiriu o imóvel residencial. Acrescentam que, em virtude do falecimento de seus progenitores, adquiriram por sucessão o mesmo imóvel há mais de trinta anos. Os demandados ocuparam uma parte do bem imóvel, onde edificaram um barracão. A Turma não conheceu do recurso ao entendimento de que o compromisso de compra e venda, ainda que desprovido de registro, é título hábil a embasar a ocorrência de usucapião ordinária. A circunstância de haver sido instituído o imóvel, em sua integralidade, como bem de família pelo antecessor dos autores não constitui motivo impeditivo ao aperfeiçoamento da usucapião. Precedentes citados: REsp 32.972-SP, DJ 10/6/1996, e REsp 171.204-GO, DJ 1º/3/2004. REsp 174.108-SP, Rel. Min. Barros Monteiro, julgado em 15/9/2005. (grifamos)
USUCAPIÃO. BEM. SOCIEDADE. ECONOMIA MISTA.
A Turma reiterou o entendimento segundo o qual o bem pertencente à sociedade de economia mista pode ser objeto de usucapião. REsp 647.357-MG. Rel. Min. Castro Filho, julgado em 19/9/2006. Informativo do STJ n.° 297. Período: 18 a 22 de setembro de 2006”
3. Previsões Constitucionais sobre o usucapião
3.1. O usucapião especial urbano ou pro morare
Essa espécie de usucapião surge com a Constituição da República de 1988 e é posteriormente regulamentado pelo Estatuto da Cidade.
O art. 183 da Constituição Federal e, na sua esteira, o art. 9º do Estatuto da Cidade disciplinaram o usucapião especial urbano, assim tratado no art. 1.240 do Código Civil:
“Art. 1.240 – Aquele que possuir como sua área urbana até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.
Os requisitos para esse usucapião, portanto, são a área máxima de 250m², a utilização como moradia, a posse tranqüila e sem oposição e não possuir o requerente outro imóvel.
Nos moldes estabelecidos pelo art. 183 da CF, será objeto dessa forma de usucapião somente “área urbana”. Estão excluídas, pois, da incidência normativa as áreas rurais, cujo usucapião é disciplinado pelo art. 191.
A doutrina distingue os imóveis rurais e urbanos utilizando dois critérios: o da destinação e o da localização.
Pelo critério da destinação levamos em consideração o uso do imóvel ou a finalidade a que é destinado: é urbano se destinado á moradia; é rural se destinado a fins agrícolas ou pastoris. Pelo segundo critério, da localização, tem-se em vista a situação espacial em que o imóvel se encontra. É urbano se for situado em zona urbana; é rural o imóvel situado na zona rural, independentemente do fim a que é destinado. O art. 183 adota o critério da localização. Assim, é irrelevante a destinação que se dê ao bem, bastando que se situe dentro da zona urbana.
O constituinte de 1988 fixou como limite máximo ao usucapião previsto no art. 183 “área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados”.
Pareceu ao Legislador Constitucional que essa área refletiria o ponto de equilíbrio: atenderia às necessidades de moradia do possuidor sem causar grandes penalizações ao proprietário da área a ser usucapida.
CELSO RIBEIRO BASTOS ensina que, para se chegar à metragem máxima permitida constitucionalmente, deve-se somar a área útil e a área comum de modo a se verificar o limite total, conforme exposto abaixo:
A inteligência correta dos limites usucapíveis com fundamento nesse preceito é o de que o imóvel não poderá ter mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, seja de terreno, seja de área construída. Prevalece o que for maior. Assim, cai dentro do instituto em causa o terreno que tenha duzentos e cinqüenta metros quadrados cuja área construída não exceda esse limite. Frise-se: esta área construída dentro do limite máximo de duzentos e cinqüenta metros quadrados não configura uma área autônoma a ser somada à do terreno. Isto porque não pode haver o usucapião do simples terreno, uma vez que a Constituição exige moradia do usucapiente ou de sua família. Portanto, desde que não ultrapasse os limites de duzentos e cinqüenta metros quadrados da área do terreno, a construção está abrangida pelo benefício constitucional[7].
As posses que embarquem áreas superiores ao limite constitucional estão excluídas da incidência do art. 183. Nada impede, contudo, que o possuidor de áreas maiores peça em juízo que se lhe conceda o domínio de parte da área possuída – limitada aos 250 metros quadrados – restituindo-se ao proprietário o quantum excedente.
3.2. O usucapião especial rural ou pro labore
O art. 191 da Constituição Federal dispõe sobre o usucapião rural, nestes termos:
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
A regra supracitada foi reproduzida no art. 1.239 do Código Civil. Prestigia-se com isso o possuidor que há mais de cinco anos torna a terra produtiva por seu trabalho e nela mora com a família, dando inequívoca finalidade social à terra.
O Estatuto da Terra em seu art. 2º. § 1º. Dispõe que: “a propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando: a) favorece o bem·estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dos recursos naturais; d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivam”.
Diversamente do usucapião extraordinário e ordinário, reguladas nos arts. 550 e 551 do Código Civil, no usucapião rural não se poderá habilitar pessoa jurídica uma vez que a Constituição, em seu art. 191, exige que a gleba tenha se tornado produtiva pelo trabalho do interessado e de sua família e que aquele instale no imóvel a sua moradia.
Vemos, assim, que no Usucapião Especial Rural, além da posse continuada e do fator tempo, soma-se um terceiro elemento, qual seja, o trabalho. Não basta a posse continuada por um determinado lapso temporal. É preciso que o pretendente a usucapir demonstre, além disso, que, com seu trabalho ou de sua família, tornou a área produtiva.
Dessa forma, o usucapião especial prestigia o trabalho do agricultor, garantindo a função social da terra, transferindo a propriedade daquele que a deixou inerte para o possuidor que a tornou produtiva.
4. Disposições do novo Código Civil
O novo Código Civil Brasileiro trata do usucapião no Livro III – Do Direito das Coisas – Título III – Capítulo II – Da aquisição da propriedade imóvel – Seção I – Da usucapião – Arts.. 1238 a 1244 e no Capítulo III – Da aquisição da propriedade móvel – Seção I – Da usucapião.
O vigente Código assume uma nova perspectiva com relação à propriedade, ou seja, seu sentido social. Como o usucapião é o instrumento originário mais eficaz para atribuir moradia ou dinamizar a utilização da terra, há um novo enfoque no instituto.
5. O usucapião extraordinário
O artigo 1238 do Código Civil de 2002 reduziu o prazo do usucapião extraordinário de 20 para 15 anos, independente de título e boa-fé, podendo, ainda, esse prazo ser reduzido para 10 anos “se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo”. § único do art. 1238.
Na usucapião extraordinária, o possuidor, independentemente dos requisitos do justo título e boa-fé, adquirirá a propriedade do bem com a demonstração da posse do mesmo, pelo prazo legal, variando se conforme seja móvel ou imóvel. Caso o bem seja imóvel, é necessária a comprovação de posse, sem oposição ou interrupção, por quinze anos ( artigo 1.238, caput, do Código Civil) . Haverá, contudo, a redução do prazo para dez anos, se houver comprovação que o possuidor estabeleceu no imóvel sua moradia habitual, ou nele realizou obras ou serviços de caráter produtivo (parágrafo único do artigo 1.238 do CC). Caso o bem, objeto da usucapião seja móvel, exige-se a posse por cinco anos, a teor do que dispõe o Código Civil em seu artigo 1.261.
O usucapião extraordinário, de quinze anos, tal como está descrito no caput do art.1.238, independe de título e boa-fé. Há também o disposto no parágrafo único do mesmo artigo que prevê um prazo menor de dez anos para aquisição da propriedade quando o possuidor houver realizado obras ou serviços de caráter produtivo. Esta última hipótese dirige-se para o imóvel rural, mas não exclui a aplicação também para o imóvel urbano.
Assim, é desnecessária a investigação subjetiva da boa-fé do possuidor no caso concreto. Prevalece, em ambos os casos, o aspecto objetivo da posse. O juiz deverá, então, ao examinar a utilização do imóvel e a intenção do usucapiente de lá se fazer presente para residir ou realizar obras de caráter produtivo. A modificação possui evidente caráter social ao ampliar a possibilidade de usucapião.
6. O usucapião ordinário
No que tange à usucapião ordinária, o artigo 1.242 do Código Civil vigente estabelece que o possuidor deverá demonstrar o exercício da posse sobre bem imóvel, contínua e incontestavelmente, durante dez anos. Também lhe são exigidos os requisitos de justo título e boa-fé.
Como se nota, trata-se aqui do mesmo prazo de dez anos do usucapião extraordinário do parágrafo único do art.1.238 do Código Civil. No entanto, lá se trata do usucapião extraordinário que dispensa justo título e boa-fé, mas que exige o requisito da moradia ou realização de serviços de caráter produtivo no local. No caso em foco, “pode ocorrer que o usucapiente, ao requerer a aquisição da propriedade, o faça com fundamento no art. 1.242, mas, subsidiariamente, pro preencher os requisitos do art.1.238, peça que o juiz reconheça o usucapião extraordinário, se forem discutíveis a boa-fé ou o justo título[8]”.
O parágrafo único do art.1.242 dispõe o seguinte:
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
SILVIO VENOSA explica que a hipótese “contempla mais uma facilidade em prol da aquisição da propriedade, que pode ser denominada usucapião documental ou tabular[9]”. O dispositivo visa proteger o proprietário aparente, isto é, aquele que já possuía uma inscrição dominial que fora cancelado por vício de qualquer natureza.
6.1. O Estatuto da Cidade: o usucapião coletivo
O Estatuto da Cidade – Lei 10.257/2000 – ao regulamentar o artigo 182 e 183 da Constituição Federal, estabeleceu as diretrizes gerais da política urbana. Entre os instrumentos previstos na referida lei, está o usucapião especial de imóvel urbano, seja na sua forma individual ou coletiva, disciplinando-o nos artigos 9º a 13º da Lei 10.257/2000. Neste tópico nos deteremos no usucapião em sua forma coletiva.
Os dispositivos constitucionais supracitados dispõem sobre a política urbana, e visam ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, além de garantir o bem estar dos habitantes e regular o usucapião especial urbano.
A finalidade do usucapião coletivo é tornar possível não apenas a regularização fundiária das favelas urbanas brasileiras, mas também a sua urbanização.
O que o legislador pretendeu quando da criação do usucapião coletivo foi disponibilizar um instrumento que permitisse a regularização fundiária e a urbanização de toda a área. Assim, temos que o usucapião coletivo é um importante instrumento da política urbana, principalmente porque transfere a iniciativa de regularização aos próprios ocupantes de tais áreas.
O art. 10 do Estatuto da Cidade estabelece os requisitos para essa nova forma de usucapião ora sob comento:
“Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 2o A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis.
§ 3o Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas.
§ 4o O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio.
§ 5o As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes.”
Assim, em resumo, temos os seguintes requisitos para utilização do usucapião coletivo: a) a área tenha mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados; b) ocupação da área por população de baixa renda; c) ocupação da área para fins residenciais; d) que a posse da respectiva área seja sem oposição e ininterrupta pelo prazo de cinco anos; e) composse, ou seja, é exigida a posse em comum; f) possuidores não proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
O Estatuto da Cidade ainda traz várias previsões de cunho processual, como o sobrestamento de todas as ações petitórias ou possessórias futuras quando houver a ação de usucapião (art.11), a previsão da legitimidade para a ação (art.12), a possibilidade de alegação de usucapião especial urbano como matéria de defesa[10] (art.13), e o rito sumário para as ações de usucapião (art.14).
Relativamente às partes legítimas para propositura da ação de usucapião especial urbana, estão indicadas no Art. 12 do Estatuto da Cidade: I – o possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente; II – os possuidores, em estado de composse; e III – a associação de moradores da comunidade regularmente constituída, como substituto processual, desde que devidamente autorizada pelos associados.
É necessário esclarecer que todo o grupo que pleiteia a usucapião deverá preencher os requisitos fixados pela lei e se for julgada improcedente para algum deles, sua área deverá ser delimitada na sentença, pois trata-se de parte privada que não poderá ser incorporada ao imóvel dos demais condôminos, muito menos sob a figura de área comum.
Falando sobre aspectos processuais, o Estatuto da Cidade prevê que o rito utilizado no processo de usucapião especial será o sumário e que é obrigatória a intervenção do Ministério Público, que atuará como fiscal da lei, o que já era previsto no Art. 944 do Código de Processo Civil.
O usucapião coletivo veio preencher lacuna no sistema jurídico possibilitando concretização dos ditames constitucionais instituídos no artigo 183 da Constituição Federal, sobretudo, como meio para urbanização e organização das favelas que permeiam a grande dos centros urbanos do país.
7. Aspectos processuais da ação de usucapião
O procedimento da ação de usucapião varia de acordo com o tipo de usucapião sob análise. Quanto à ação prevista no Estatuto da Cidade já analisamos neste trabalho em tópico próprio.
“O art.941 e seguintes do CPC prevêem o estabelece o procedimento da usucapião de terras particulares nos seguintes termos:
Art.941 compete a ação de usucapião ao possuidor para que se Ihe declare, nos termos da lei, o domínio do imóvel ou a servidão predial.
Art. 942. O autor, expondo na petição inicial o fundamento do pedido e juntando planta do imóvel, requererá a citação daquele em cujo nome estiver registrado o imóvel usucapiendo, bem como dos confinantes e, por edital, dos réus em lugar incerto e dos eventuais interessados, observado quanto ao prazo o disposto no inciso IV do art. 232.
Art. 943. Serão intimados por via postal, para que manifestem interesse na causa, os representantes da Fazenda Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios.
Art. 944. Intervirá obrigatoriamente em todos os atos do processo o Ministério Público.
Art. 945. A sentença, que julgar procedente a ação, será transcrita, mediante mandado, no registro de imóveis, satisfeitas as obrigações fiscais.”
A ação de usucapião é uma ação declaratória[11]. A ação é declaratória porque basta o preenchimento dos requisitos estabelecidos na lei para que o possuidor adquira desde logo a propriedade da coisa. De outro lado, por não ser constitutiva a ação, a usucapião pode ser alegada também como matéria de defesa em reivindicatória.
Na ação de usucapião deve o autor informar[12]:
“a origem e o caráter da posse (posse própria, com animus domini), o seu início, os atos de senhoria (afinal, se a posse é fato, é poder sobre a coisa, cumpre descrever os atos correspondentes), o tempo de exercício, a união de posses anteriores (accessio possessionis ou successio possessionis), juntando os respectivos comprovantes, e individualizar a coisa (orientando-se pela L. 6.015/73, art. 225-6 e 167, n. 28 e pela planta de situação e locação elaborada por profissional habilitado). Deve constar da inicial, também, o número do cadastro do imóvel perante a Prefeitura ou perante o INCRA (se rural), pois sem esse dado o Registro de Imóveis não abre a matrícula”.
Deve, ainda, o autor expor os fundamentos de fato e de direito juntar a planta do imóvel, pedir a citação da pessoa em cujo nome estiver registrado o imóvel, bem como a citação dos confrontantes e, por edital, a citação dos interessados incertos.
“PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO. CITAÇÃO. CONFRONTANTE. AUTOR. RESCISÓRIA. DESCABIMENTO. 1 – Se o móvel da ação rescisória é a falta de citação de confrontante (ora autor), em ação de usucapião, a hipótese é de ação anulatória (querella nulitatis) e não de pedido rescisório, porquanto falta a este último pressuposto lógico, vale dizer, sentença com trânsito em julgado em relação a ele. Precedentes deste STJ. 2 – Recurso conhecido em parte e, nesta extensão, provido para decretar a extinção do processo rescisório sem julgamento de mérito (art. 267, VI do CPC).” REsp 62853 / GO RECURSO ESPECIAL 1995/0014604-5, Relator Ministro FERNANDO GONÇALVES , T4 – QUARTA TURMA, DJ 01/08/2005 p. 460
“PROCESSUAL CIVIL – USUCAPIÃO RECONHECIDA POR SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO – NULIDADE DO PROCESSO POR FALTA DE CITAÇÃO DO PROPRIETÁRIO – ALEGAÇÃO DE DOMÍNIO BASEADA EM REGISTRO DO IMÓVEL EM CIDADE DIVERSA DAQUELA EM QUE SITUADO O BEM – CITAÇÃO DESNECESSÁRIA – VALIDADE DO PROCESSO. 1. O Art. 942 do CPC exige a citação do proprietário do bem usucapiendo para validade do processo. 2. Não há como falar em nulidade do processo à míngua de citação auto-intitulado proprietário, cujo título foi registrado em cartório de estado diverso daquele em que está localizado o imóvel. 3. É suficiente a citação daquele que figura como titular do domínio no CRI da cidade em que situado o bem usucapiendo.” REsp 402799 / MG RECURSO ESPECIAL 2002/0000882-6 Relator(a) Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS T3 – TERCEIRA TURMA Data do Julgamento 06/04/2006 Data da Publicação/Fonte DJ 15/05/2006 p. 200
Deve haver a intimação dos representantes das Fazendas Federal, Estadual e Municipal, bem como a intervenção do Ministério Público no processo. É interessante neste ponto mencionar o teor da Súmula 11 do STJ que dispõe que: A presença da União ou de qualquer de seus entes, na ação de usucapião especial, não afasta a competência do foro da situação do imóvel.
Adotar-se-á o rito ordinário, caso haja contestação, cumprindo ao autor provar sua posse, por testemunhas, perícias e outros. No caso de usucapião especial adotar-se-á o rito sumário:
“USUCAPIÃO ESPECIAL. FÉRIAS. PROCEDIMENTO SUMÁRIO. Trata-se de recurso em que se discute a tempestividade de apelação interposta em ação de usucapião durante o período de férias. O Min. Relator aduziu que, se a ação de usucapião conduz-se pelo rito sumário e as ações submetidas a tal processamento não têm os prazos suspensos durante as férias, evidentemente que a protocolização da apelação, pela recorrente, somente em 14/2/2000, se fez a destempo, visto que fluía o lapso recursal desde 3/1/2000, após o recesso de final de ano. Isso posto, a Turma conheceu do recurso, mas lhe negou provimento. Precedentes citados: REsp 363.942-PR, DJ 22/3/2004; REsp 3.822-MG, DJ 10/6/1996; REsp 37.319-SP, DJ 21/3/1994, e REsp 37.714-SP, DJ 18/10/1993.” REsp 401.400-PR, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 10/4/2007.
Por fim, caso não haja contestação, o juiz proferirá a sentença. Após a sentença[13]:
“a parte deve apresentar, perante o registro de imóveis, com cópia da sentença e da petição inicial, Mandado ou Ofício contendo todos os requisitos para a abertura da matrícula, previstos no art. 167 da Lei 6.015/73”.[14]
Convém juntar, também, cópia do Cadastro Imobiliário Municipal, caso não tenha sido mencionado na petição inicial (às vezes pode ter sido providenciado após o ajuizamento da ação).
E recolhe-se, finalmente, na Recepção do Cartório, a importância (em torno) de R$ 50,00 de emolumentos e selo de autenticação.
8. Conclusões.
À guisa de conclusão é importante destacar, conforme ensina INGO SARLET[15], que a Constituição de um Estado democrático de Direito “não poderá jamais negligenciar o patamar de desenvolvimento social, econômico e cultural da comunidade, sob pena de comprometer seriamente sua força normativa e suas possibilidades de atingir uma plena efetividade”. O Professor SARLET[16] conclui em outro trecho que:
“cumpre assinalar, aproximando as noções de eficácia jurídica e efetividade (eficácia social), que nem a previsão de direitos sociais fundamentais na Constituição (o que, portanto, vale igualmente para o direito à moradia) nem mesmo a sua positivação na esfera infraconstitucional poderão, por si só, produzir o padrão desejável de justiça social, já que fórmulas exclusivamente jurídicas não fornecem o instrumental suficiente para a sua concretização”.
Verificamos com isso que a usucapião, em suas diversas modalidades, mostra-se como importante instrumento na regularização da questão fundiária, favorecendo, inclusive, a concretização do princípio constitucional da função social da propriedade.
O valor da ação de usucapião decorre também da valorização da posse dos bens para atingir a finalidade social do instituto. A ação encontra fundamento na garantia da ordem pública e na paz social tendo em vista a segurança jurídica tão buscada pela população em geral que, confiantes na estabilidade da junção dos requisitos posse, animus domini e tempo garantem a estabilidade necessária à vida em sociedade. Não haveria tranqüilidade social se tal instituto jurídico não encontrasse o respaldo e aplicação pelos operadores do direito.
Bacharel em Direito pela UFPE. Analista Judiciário do TRE/PB
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